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quarta-feira, 2 de março de 2011

Imagens da discriminação


Para socióloga, Lei Maria da Penha não basta para reduzir número de agressões a mulheres no País

26 de fevereiro de 2011 | 16h 00
IVAN MARSIGLIA - O Estado de S. Paulo


Tire as próprias conclusões sobre a cena, que pode ser vista no


. Aconteceu no dia 15 de junho de 2009, mas por motivos até agora pouco claros, caiu na rede semana passada, após uma reportagem do Jornal da Band. Nas imagens, uma escrivã de polícia acusada de receber propina é confrontada por agentes da Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo. Eles exigem que ela se dispa para que verifiquem a denúncia de que tem dinheiro escondido. Ela responde exigindo que a revista seja feita por policiais femininas, direito garantido por lei. "Pode me revistar, só não quero ficar pelada na frente de homem. Isso é constrangimento ilegal", ela afirma. "Chega. Perdi a paciência, pode meter o grampo nela", diz o delegado Eduardo Henrique de Carvalho Pinto, e, enquanto um policial algema a suspeita, que cai no chão, outros homens tiram a calça jeans e a calcinha da suspeita. Mostram à câmera R$ 200 que seriam produto de corrupção.



O processo por abuso de autoridade durante a ação, que foi registrada pelos próprios corregedores, já estava arquivado. Mas, após a repercussão, o governador Geraldo Alckmin pediu explicações ao secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto - que afastou o delegado Eduardo e seu colega, Gustavo Henrique Gonçalves. Na quinta-feira, foi a vez da corregedora, Maria Inês Trefiglio Valente, que justificara em entrevista a performance dos colegas.

Para a socióloga Wânia Pasinato, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, independentemente da culpa da escrivã, trata-se de caso flagrante de desrespeito aos direitos da mulher. Na entrevista a seguir, ela discorre sobre a discriminação vigente nas corporações policiais e põe em dúvida a capacitação dos profissionais da segurança pública no tratamento de questões de gênero - inclusive na experiência, válida, como diz, das delegacias da mulher. E discute os números da pesquisa divulgada esta semana pela Fundação Perseu Abramo: a cada 2 minutos, 5 mulheres são agredidas no País.



A cena da escrivã acusada de corrupção sendo revistada e desnudada à força por policiais da corregedoria é algo habitual?
Se é habitual é difícil dizer. Veja que esse vídeo levou um ano e meio para vir a público. O que sabemos é que dentro da corporação existe muita discriminação contra mulheres. Ela aparece na limitação de seu ingresso, nas dificuldades que encontram para ascender na carreira, na relação difícil com a chefia. O vídeo tem muitos elementos para discussão - não apenas de gênero. A questão da corrupção é um deles: se a escrivã é culpada, tem que responder administrativa e criminalmente. Mas a cena toda mostra que, em nenhum momento, ela se nega a ser tocada ou revistada. O que ela coloca é uma condição, que é direito não só dela como de qualquer mulher, de ser revistada por uma policial. E vale notar que há duas delas na sala.

Em determinado momento, a escrivã pede para não ser revistada na frente dos homens, mas o delegado insiste que tem que estar lá para conferir o flagrante. Ele está correto?
Uma policial poderia ter feito a revista com o delegado na sala ao lado. A porta poderia até ficar entreaberta para ele ouvir o diálogo. Mas o que me chamou a atenção é que essas duas policiais - que não são da civil, parecem ser da Guarda Metropolitana - não se movem! Elas não interferem nem tentam mediar a situação em favor da escrivã. Nessa inação entram outros elementos: o peso da hierarquia, as suscetibilidades por pertencerem a corporações distintas...

Outra mulher, a corregedora Maria Inês Trefiglio Valente, justificou o arquivamento do inquérito por considerar que os delegados agiram ‘dentro do poder de polícia’ e acabou afastada. Como entender isso?
É algo que também chama a atenção. Inclusive porque a doutora Maria Inês não só foi delegada de uma delegacia da mulher, mas pertenceu ao serviço técnico de coordenação dessas delegacias. Mais: foi muito atuante, com um discurso em prol dos direitos das mulheres. Mas parece que tudo isso se perdeu quando houve o seu deslocamento para outra instituição. Parece que, por não mais atuar em um órgão especializado, o olhar de gênero dela se fecha, sofre um bloqueio. O que é interessante, pois há um debate sobre a especialização dessas delegacias da mulher. Há muito investimento em capacitação sobre gênero, na oferta de um atendimento especializado, na decisão de que policiais que trabalham ali sejam preferencialmente do sexo feminino, com domínio de técnicas de atenção e acolhimento. E, no entanto, a gente não só vê pouco efeito dessa capacitação no atendimento às vítimas de agressões, como parece que a formação se perde quando as profissionais deixam a delegacia da mulher para assumir outros postos.

Não seria razoável esperar que qualquer delegacia pudesse atender bem mulheres vítimas de agressões?
Sim, e é preciso reforçar isso. Após 25 anos de existência das delegacias da mulher, como a única política de enfrentamento especializado desse tipo de violência no Brasil, é preciso dizer que elas são uma referência para as mulheres. Não dá para simplesmente propor que essas delegacias sejam fechadas e suas policiais diluídas pelos DPs comuns. Mas faz sentido o reforço que instituições como a Secretaria de Políticas para as Mulheres têm dado para que o atendimento seja qualificado em toda a parte. Porque isso é trabalho de polícia. Qualquer policial tem que atender bem.

A que conclusões chegou na pesquisa ‘Delegacias de Defesa da Mulher e Juizados Especiais Criminais: Contribuições para a Consolidação de uma Cidadania de Gênero’?
Essa foi a minha pesquisa de doutorado, à época em que se discutiam os juizados especiais criminais (chamados de Jecrim), quando os casos de violência contra a mulher passaram a ser julgados nesses espaços. Na ocasião, houve um fluxo enorme de ocorrências policiais no juizado, causando inclusive surpresa, pois os juízes não sabiam sequer como lidar com o problema. Até esse momento, persistia a famosa prática do arquivamento do boletim de ocorrência, que nem se convertia em inquérito policial. Delegados realizavam apenas as tais mediações de conflito: chamavam o agressor para conversar, davam uma bronca e aquilo não ia para a frente. Foi um avanço. Mas minha análise, diferente daquela das feministas, era de que continuava sendo conveniente que a mulher mantivesse o poder de decidir se o agressor seria ou não processado. As feministas consideram que isso trouxe um grande ônus para as mulheres, que passaram a ser alvo de novas ameaças porque o agressor sabia desse poder de decisão delas. Embora eu concorde em parte com esse tipo de argumento, acho também que formalizar para as mulheres o direito de se manifestarem sobre o que esperam de um processo judicial também é uma forma de dar poder a elas. Evidentemente, isso só faz sentido em um contexto de promoção de direitos mais amplo. Não basta dizer à mulher que ela decida se representa ou não contra o agressor, mas é preciso informá-la sobre o significado e consequências disso - além de oferecer a ela atendimento psicológico em caso de separação judicial ou, em caso contrário, espaços e instâncias que a ajudem a reconfigurar sua relação conjugal. É o debate que está ocorrendo agora com a Lei Maria da Penha: aliar medidas punitivas e de criminalização da violência com um conjunto de políticas públicas mais amplo.

Só na segunda-feira, após a divulgação do vídeo, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antonio Ferreira Pinto, determinou o afastamento dos dois delegados. Por que esse tipo de caso só tem consequências quando divulgado?
Infelizmente, na maior parte dos casos só assim alguma coisa acontece. Acho positivo que, hoje, esse tipo de caso repercuta dessa maneira. Nem sempre foi assim. Mas é preciso que, uma vez havendo esse repúdio da sociedade, o governo se mova. Há alguns dias o Ministério Público já se manifestou contra o arquivamento do inquérito contra os corregedores. Porque a escrivã está respondendo às acusações na Justiça. Vamos esperar que o mesmo ocorra sobre o abuso de que foi vítima. E que se chegue a um desfecho rápido. É muito grave quando se tem um órgão de corregedoria que não acolhe esse tipo de denúncia. Não por acaso, os boletins do Disque 180, da Central de Atendimento à Mulher, registram que as delegacias da mulher são ao mesmo tempo o serviço mais procurado por elas e as campeãs de queixas quanto ao atendimento.

Recentemente, o estupro seguido de morte da vendedora Vanessa de Vasconcelos Duarte chocou o País. Para alguns analistas, o Brasil deveria adotar para esse tipo de crime a terminologia 'femicídio', usada por países como o México e a Guatemala. Faz sentido?
Acho que não. Essa é terminologia se aplica a crimes ocorridos estritamente por questão de gênero. Mesmo nesses países que você citou trata-se de uma categoria ampla demais, com contornos indefinidos. Ainda mais se aplicados ao contexto brasileiro. Estamos vivendo uma situação relativamente nova de aumento da participação de mulheres na violência urbana. Inclusive com mortes, decorrentes de envolvimento no tráfico de drogas ou outras atividades criminosas, que nada têm a ver com gênero. Então, é preciso entender as razões desse crescimento dos homicídios de mulheres antes de se pensar na utilidade desse tipo de categoria analítica. Senão, corremos o risco de criar uma terminologia absolutamente uniforme, em que tudo vira violência baseada no gênero e se perdem as especificidades dessa violência.

A Fundação Perseu Abramo divulgou uma pesquisa recentemente que revelou que a cada 2 minutos, 5 mulheres são agredidas no Brasil. Por que esse comportamento persiste em nossa sociedade?
A pesquisa mostra que houve uma redução de 8 para 5 mulheres agredidas a cada 2 minutos na última década. É uma diminuição pequena se levarmos em conta que já se vão 30 anos de discussão da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Mas ela tem que ser comemorada.

Uma das hipóteses levantadas pelos pesquisadores é que essa redução, ocorrida entre 2001 e 2010, se deva à Lei Maria da Penha. A sra. concorda?
Sim. A Lei Maria da Penha contribuiu muito, especialmente pela exposição pública que teve. É uma lei que caiu na boca do povo. Embora não exista um número nacional de registros de ocorrências nas delegacias, é possível notar um aumento no número de queixas. Em especial, nota-se um crescimento no número de queixas de ameaças - antes mesmo da agressão, o que pode sugerir que essas mulheres estão se adiantando para evitar a situação de violência. Isso é positivo. São dados que podem estar mostrando um movimento da sociedade na direção de reduzir sua tolerância com a violência contra a mulher. Há, por outro lado, recuos. Como no caso daquele juiz de Alagoas que chamou a Lei Maria da Penha de "diabólica". Ele havia sido afastado das funções, mas foi reconduzido ao cargo há alguns dias.

Dos 8% de homens que admitiram na pesquisa já ter agredido a companheira, 76% disseram ter agido mal, mas 14% justificaram o ato, enquanto outros 10% dizem ‘não saber’. O que isso revela?
Pesquisas de opinião como essa servem muito para mostrar a opinião média da sociedade. Que, infelizmente, ainda é essa. A violência contra a mulher no Brasil ainda encontra certa legitimidade nos discursos. Ditados populares como o que sustenta que "o homem pode não estar sabendo por que bateu, mas a mulher sabe por que apanhou" ainda encontram espaço. As raízes culturais da violência acompanham a sociedade brasileira desde sua constituição. São uma herança de nossa colonização. Não são raízes fáceis de serem removidas. No entanto, são raízes culturais - e, portanto, passíveis de transformação ao longo de gerações. Não sei se nossos filhos e netos vão viver situações diferentes, mas é preciso ainda investir muito na educação. Mostrar que a violência é errada, o respeito entre homens e mulheres tem que prevalecer em qualquer relação - seja entre crianças, colegas de trabalho ou casais. Pois como portadores de direitos da cidadania essa igualdade está garantida em nossa Constituição. Temos que transformar o que é formal em um direito de fato, vivido pelas pessoas.





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