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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

uso político das doações no Rio de Janeiro

Sobram roupas, mantimentos e histórias de uso político das doações no Rio de Janeiro

Arthur Guimarães
Enviado especial do UOL Notícias
Em Petrópolis (RJ)

De dentro da quadra de esportes do “Brizolão” de Corrêas, uma nova montanha surge na paisagem serrana de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Com cerca de cinco metros de altura, o monte de roupas reúne peças doadas por gente de todo o Brasil e, assim como os cartões postais da região, pode ser observado de longe.

Armazenadas precariamente em quilos de sacos fechados, as vestimentas não param de se multiplicar. Novos caminhões chegam a todo instante, vindos de todas as regiões do país. Mas, como assumem os próprios responsáveis pela logística de distribuição, faltam voluntários para dar o encaminhamento adequado à ajuda.

Os pacotes estão sem identificação e correm o risco de tomar chuva mesmo na área coberta – já que não há paredes no espaço e o volume de material está transbordando pelos cantos. A maioria não foi sequer tocada, mais de dez dias após a tempestade que provocou a morte de mais de 800 pessoas nas cidades vizinhas. Ao abrir os sacos, não é possível saber se estará ali uma meia, um lençol, uma toalha ou uma camiseta – e muito menos se a peça está em condições de uso.

A impressão de que há mais roupa do que desabrigados para vesti-las é finalmente confirmada oficialmente. “Roupa não precisa mais. Já deu. Tem muito, mas muito mesmo. E está faltando gente para fazer a triagem e inclusive para receber. Inevitavelmente, vamos acabar tendo que fazer doações mesmo para quem não foi atingido pela água”, assume Claudinei Portugal, presidente do Instituto de Previdência da prefeitura de Petrópolis, que é o responsável pelos cerca de 300 voluntários do “Brizolão”, chamado oficialmente Centro Integrado de Educação Pública (Ciep).

Alimentos vencidos

No vale do Cuiabá, localidade duramente atingida pela enchente em Itaipava, em Petrópolis, a voluntária que cuida das doações no ginásio de Boa Esperança não faz rodeios para dizer que também há incertezas sobre a necessidade de mais alimentos. “Já teve comida que estragou. Lógico que fazemos de tudo para não acontecer isso. Mas estraga, né? Estamos inclusive tentando fazer um pente fino para ver a validade das coisas”, dizia Lilian Nogueira da Silva, confirmando que, até agora, esse tipo de seleção ainda não estava sendo feita corretamente.

Segundo ela, no entanto, os problemas vão além: entre quem trabalha de forma séria, há gente que faz mau uso das doações. “Caminhão chega na cidade procurando onde entregar coisa e tem político colocando gente e placa para receber. Depois, leva para bairro em que ele vai ganhar voto. Daí ele envia para a comunidade e manda dar o recado: ‘foi fulano quem deu’”, afirma. “Tem gente que critica a confusão no Haiti ou na África. Nova Orleans [região dos EUA atingida pelo furacão Katrina] é aqui, amigo.”

Segundo Claudinei, carros de vereadores já foram – e estão - proibidos de entrar nos centros de distribuição. “O cara imbicou lá e disse que ia levar mantimento para não sei onde. Não deixamos. Não pode. Infelizmente, tem isso mesmo. Detectamos esse problema formalmente”, argumenta, sem dizer o nome dos envolvidos "para não dar confusão."

As suspeitas de desvios de mantimentos já começam a preocupar os autores das doações. Em outro município devastado, São José do Vale do Rio Preto, o pastor evangélico Eduardo Bittencourt sintetiza o medo que muitas pessoas tem de ver a sua ajuda ser má utilizada no bairro de Queirós. “O pessoal chega aqui com carro lotado. Quando avisamos que a prefeitura é que está coordenando o recebimento, o cara desiste. Eles dizem que só querem doar para a igreja. Na mão de político preferem não dar.”

Em outro espaço, no ginásio que centraliza as doações em Rio Preto, o volume de alimentos assusta e já lota toda a arquibancada. O esforço para identificar o conteúdo dos sacos de roupas é grande, mas nem sempre dá conta de fazer a triagem de tanto material. Apesar da segurança na porta, lá ainda não está sendo feito um controle rígido sobre quem pode pegar os mantimentos, como em Petrópolis, o que pode dar margem para distorções futuras.

“Não acho que precisa de senha para pegar água. Água todo mundo precisa e tem direito. Nossa cidade foi devastada. Todo mundo foi prejudicado. Se a pessoa não perdeu a casa, está ajudando o vizinho, trabalhando dia e noite. Damos água mesmo”, afirma Paulo Cordeiro de Souza, voluntário que coordena a ação no local, cercado por embalagens e mais embalagens de água. “Não precisamos de burocracia nessa hora.”

Ele nega que esteja sobrando comida – apesar de o município já ter devolvido doações para Petrópolis. “Isso daqui não é para hoje. É para os próximos seis meses. Tem que alimentar muita gente por muito tempo. As pessoas que estão em abrigo não têm nesse momento nem como lavar roupa. Então vamos dando”, afirma. Sobre os boatos de que mantimentos são desviados, ele é ponderado. “Não vou dizer que não acontece. Pode ter sim, como em qualquer lugar tem gente ruim”, diz.

O alto volume de caixas que chegam em caminhões e lotam os centros de armazenamento já foi notado pelos moradores que vivem ao longo da estrada. Aos motoristas que circulam, já virou rotineira a cena de homens com placas dizendo “aceita-se doação”. O apelo, no entanto, é feito por gente que mora em zonas elevadas e que não teve prejuízo algum com a tragédia. “Isso que não queremos. Não pode. Por isso, a prefeitura resolveu centralizar toda a organização. Vira bagunça.

Desova de estoque

Um funcionário de uma importante prefeitura da região serrana fluminense, pedindo para não ser identificado, relatou ainda outra distorção no trabalho de recebimento e distribuição dos donativos. “Tem muita pessoa jurídica que está aproveitando para desovar estoque de produtos encalhados. A empresa já ia ter que jogar fora, então doa e depois ainda consegue o desconto no Imposto de Renda”, afirmou ele.

“Recebemos dois caminhões cheios de biscoito com vencimento para daqui uma semana. Novinho. E biscoito caro. É muito estranho. Aqui ninguém aguenta mais comer esse negócio, mas não pode estragar.”

A qualidade dos materiais doados também nem sempre é confiável. Nas salas repletas de alimentos, sempre há uma pilha de coisas vencidas. “Encontramos farinha com bicho dentro, garrafa de conhaque vazia, pacote de iogurte comido, calcinha com absorvente usado grudado e até um par de dentaduras”, explicou Patrícia Portugal, mulher de Claudinei e outra voluntária que coordena o trabalho no Brisolão Corrêas.

De toda forma, ela não desaconselha as doações. “Ainda precisamos de produto de limpeza, absorvente feminino e muita roupa de cama. Mandaram os colchões, mas falta lençol. Tudo que for para bebê, como mamadeira e kits de limpeza para crianças pequenas, também nos interessa. E anota aí: não precisamos mais de água ou roupa, mas sim de voluntários.”

Histórico

As consequências das chuvas na região serrana do Rio de Janeiro já causaram a morte de mais de 800 pessoas, segundo os últimos números divulgados pelas cidades atingidas. Até a noite de domingo, Nova Friburgo era a cidade mais atingida pela tragédia com 391 mortes, seguida por Teresópolis, com 327, e Petrópolis com 66. Também foram confirmadas 22 mortes em Sumidouro, duas em São José do Vale do Rio Preto e uma em Bom Jardim.

Esse número deve aumentar, pois as equipes de resgate ainda buscam por mais de 400 pessoas desaparecidas.

A chuva que caiu na região serrana do Estado deixou mais de 18 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas e os imensos deslizamentos de terra mudaram a geografia da região, o que atrapalha ainda mais os esforços de resgate feitos por equipes da Defesa Civil, do Corpo de Bombeiros, das Forças Armadas e da Força Nacional de Segurança Pública.




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