O REINO, O PODER E A GLÓRIA: AS IGREJAS EVANGÉLICAS ALEMÃS E O REGIME NAZISTA
Alderi Souza de Matos
Em todas as épocas, a igreja e os cristãos têm sido tentados a afastar-se dos seus compromissos básicos e perder de vista a sua identidade e a sua missão. A sedução de valores, ideologias e ambições conflitantes com o evangelho pode ser fatal para a vida e o testemunho dos seguidores de Cristo. Ao invés de confessarem e buscarem o reino, o poder e a glória de Deus (Mt 6.13), eles podem almejar o seu próprio reino, poder e glória, ou os do mundo. Por isso, a história cristã está repleta de violações do primeiro mandamento (“Não terás outros deuses diante de mim” – Ex 20.3) na forma de idolatrias religiosas ou seculares como as muitas que têm emergido na sociedade contemporânea.
Historicamente, uma das grandes pedras de tropeço na caminhada da igreja tem sido o seu relacionamento com o estado. Desde o século 4º, com a aliança entre a igreja e o Império Romano, ficou mais difícil evitar que aquilo que César exige entre em conflito com o que Deus requer (Mt 22.21). Embora o estado tenha uma esfera legítima de atuação, afirmada pelas Escrituras, a simbiose eclesiástico-estatal tem sido muito problemática para a igreja. As concessões feitas à esfera política podem tornar impossível que se obedeça antes a Deus do que aos homens (At 5.59). Em casos extremos, os cristãos e a igreja se rendem totalmente aos poderosos deste século (1 Co 2.6, 8), especialmente àqueles que fazem do poder o seu deus (Hc 1.11). As atitudes dos protestantes alemães em face do nazismo estão cheias de ensinos e advertências para os cristãos dos dias atuais.
1. Antecedentes
Desde a conversão das tribos teutônicas, religião e política se tornaram intimamente associadas no Sacro Império Romano Germânico, havendo constantes interferências mútuas entre as duas esferas. Contribuíam para isso as atitudes ambivalentes da igreja medieval, que por um lado se ressentia das intromissões do poder civil, mas ao mesmo tempo cortejava os governantes visando obter, preservar ou ampliar privilégios. Nesse aspecto, os reformadores protestantes não romperam com o status quo. Eles não só mantiveram concepções elevadas acerca do papel da autoridade secular, mas defenderam uma associação estreita entre a igreja e o estado, num contexto de uniformidade política e religiosa. Lutero, com a sua doutrina dos dois reinos (igreja e estado, ambos ordenados por Deus, porém com esferas distintas de responsabilidade), contribuiu em muito para que os protestantes alemães tivessem um alto apreço pelo estado e suas instituições.
No século 19, o nacionalismo se tornou uma poderosa força ideológica na Europa, reunindo elementos como veneração dos heróis, culto da raça, exclusivismo, xenofobia e não raro anti-semitismo. Na Alemanha, uma conjugação de fatores políticos, sociais e culturais contribuiu desde cedo para o desenvolvimento do princípio nacional. Em seu Discurso à Nação Alemã (1808), considerado a carta magna do nacionalismo germânico, o filósofo Johann Gottlieb Fichte elevou o conceito de nação ao status de uma revelação divina. No início do século 20, as ambições imperialistas – outro aspecto do nacionalismo extremado – desencadearam a I Guerra Mundial (1914-1918), que horrorizou o mundo pela pavorosa carnificina que produziu. A Alemanha vencida teve de aceitar um humilhante tratado de paz. Após a guerra surgiu a República de Weimar, controlada pelos socialistas, que não contou com a simpatia de boa parte do povo alemão.
2. A ascensão do nazismo
Nesse contexto entrou em cena Adolf Hitler, um austríaco de origem católica que detestava tanto os católicos como os protestantes. Com a sua ideologia política, o nacional-socialismo ou “nazismo”, ele conseguiu, como o fascismo já havia feito na Itália, explorar as desilusões do pós-guerra e os ressentimentos suscitados pela paz imposta e pela crise econômica. No dia 30 de janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler da república alemã e começou a implementar o seu programa totalitário. O princípio fundamental do novo regime era a unidade absoluta do povo alemão sob a direção do Führer (“líder”), mediante o controle de todas as áreas da sociedade. A noção de raça ocupava um lugar central na nova ideologia e os seus teóricos davam ênfase aos conceitos de povo, solo, sangue e germanidade. Todas as pessoas, ideais ou instituições não alemãs eram tidas como contaminadas, em especial aquelas relacionadas com os judeus, considerados a fonte de todos os males modernos, a “raça destruidora da cultura”, que havia legado ao mundo o cristianismo, o capitalismo e o marxismo. A raça autêntica ou “ariana” iria restaurar a pureza do passado.
Sucessivamente, os judeus alemães foram proibidos de ocupar cargos públicos, casar-se com arianos e perderam a sua cidadania. Na noite de 9 de novembro de 1938, conhecida como Kristallnacht (“noite dos cristais”), lojas e residências de judeus foram depredadas, sinagogas foram destruídas e houve prisões em massa. Em 1º de setembro de 1939, Hitler, que já havia anexado a Áustria e invadido a Tchecoslováquia, invadiu também a Polônia. Imediatamente a Inglaterra e a França declararam guerra contra a Alemanha – estava iniciada a II Guerra Mundial. Enquanto a guerra prosseguia, os líderes nazistas planejaram a “solução final” – o extermínio de todos os judeus europeus (o Holocausto), o que começou a ser levado a efeito nas câmaras de gás dos campos de concentração. No dia 30 de abril de 1945, quando a derrota se tornou inevitável, Hitler cometeu suicídio, e em 7 de maio a Alemanha se rendeu aos Aliados.
3. Os “cristãos alemães”
Quando Hitler subiu ao poder, muitos líderes eclesiásticos protestantes se rejubilaram, antevendo a possibilidade de uma regeneração nacional. Tomados pelo triunfalismo, fizeram os mais enfáticos elogios ao novo líder nacional. Hermann Grüner proclamou: “O tempo se cumpriu para o povo alemão em Hitler. É por causa de Hitler que Cristo se tornou efetivo entre nós. Portanto, o nacional-socialismo é o cristianismo positivo em ação”. O deão da Catedral de Magdeburgo, referindo-se às bandeiras nazistas expostas em sua igreja, afirmou: “As suásticas em torno do altar irradiam esperança – esperança de que o dia finalmente está prestes a raiar”. O pastor Julius Leutheuser acrescentou que “Cristo veio até nós através de Adolf Hitler”. Uma versão nazista do hino “Noite Feliz” dizia: “Noite de paz, noite santa, tudo está calmo, tudo está luminoso; só o Chanceler, tenaz na luta, vela pela Alemanha noite e dia, sempre a pensar em nós”.
Os partidários protestantes do regime nazista ficaram conhecidos como “cristãos alemães”. Em 1933, sob os auspícios do novo governo, foi criada a Igreja Evangélica Alemã (que incluía luteranos e reformados), visando unificar as vinte e oito igrejas provinciais. A direção da igreja ficou nas mãos de simpatizantes do regime. Apesar de alguns vigorosos protestos, foram introduzidos na igreja o “princípio da liderança” (lealdade ao Führer) e a “conformidade racial” (restrições aos judeus). Em 5 de setembro, reuniu-se o Sínodo Geral da Prússia, que ficou conhecido como “Sínodo Marrom” porque os representantes da maioria “cristã alemã” usavam uniformes nazistas. Essa maioria radical introduziu a chamada “cláusula ariana”, que negava o púlpito aos pastores de ascendência judaica. No dia 27, foi eleito bispo dessa nova igreja nacional um ardoroso nazista, Ludwig Müller. Porém, a lua-de-mel entre os “cristãos alemães” e Hitler durou pouco. Qualquer igreja, mesmo que fosse uma emanação do nazismo, podia minar a lealdade dos cristãos ao estado, e Hitler não tolerava qualquer limite ao seu poder. Com a criação do Ministério dos Assuntos Religiosos, em 1935, os “cristãos alemães” e seu bispo foram postos de lado.
4. A Igreja Confessional
Logo após o “Sínodo Marrom”, foi criada por iniciativa de Martin Niemöller a Liga Emergencial de Pastores, para os quais a “cláusula ariana” era um status confessionis, uma questão sobre a qual a igreja devia tomar uma posição. Em janeiro de 1934, sete mil pastores (de um total de dezoito mil) haviam se filiado à liga. No dia 22 de abril, cinco mil ministros e leigos se reuniram em Ulm e criaram a “Igreja Confessional” (uma referência às confissões de fé da Reforma). De 29 a 31 de maio, um sínodo dessa igreja reuniu-se num subúrbio de Wuppertal, no Estado da Renânia do Norte e Westfália, e aprovou um célebre documento, redigido em grande parte pelo teólogo suíço Karl Barth, que ficou conhecido como Declaração de Barmen. A declaração convidava a Igreja Evangélica Alemã a retornar às verdades centrais do cristianismo e rejeitava as pretensões totalitárias do estado. Os Artigos 1, 2 e 5 afirmavam: “Repudiamos o falso ensino de que a igreja deve aceitar como base da sua mensagem, além e à parte da Palavra de Deus, outros eventos e poderes, personagens e verdades, como se fossem revelação de Deus... que existem áreas da nossa vida nas quais não pertencemos a Jesus Cristo, mas a outros senhores... que o estado pode ultrapassar a sua missão específica, tornando-se uma diretriz única e totalitária da existência humana...”
Todavia, a Igreja Confessional não quis tornar-se uma igreja rival e muito menos derrubar o regime. Seu objetivo era preservar a integridade da igreja e defender a fé cristã histórica contra as inovações heréticas dos “cristãos alemães”. Reprimido pelo governo e pela igreja oficial, o movimento teve uma vida precária, oferecendo apenas uma resistência relutante. Com a sua tradição luterana de defesa do poder constituído e a sua visão idealista de que o estado é sempre um agente de Deus, os confessionais custaram a reconhecer o quanto a ordem política havia se tornado pervertida. Após a guerra, em outubro de 1945, o pastor Niemöller (que passou oito anos na prisão) e todos os sobreviventes da Igreja Confessional admitiram honestamente terem se enganado e não terem sabido declarar-se abertamente contra o regime nazista, especialmente nos primeiros anos do seu poder. Porém, houve uma notável exceção.
5. Dietrich Bonhoeffer
Bonhoeffer foi um jovem pastor e teólogo que se envolveu ativamente no movimento de resistência contra Hitler. Nascido em Breslau em 1906, ele estudou teologia nas Universidades de Tübingen e Berlim, graduando-se em 1927. Nos anos seguintes, tornou-se professor de teologia sistemática em Berlim, conheceu Karl Barth e foi ordenado ministro luterano. Desde logo, em suas aulas, palestras e sermões, começou a questionar a ideologia nazista e o envolvimento das igrejas com o regime. Ao lado de Niemöller, foi um dos criadores da Liga Emergencial de Pastores, que se opôs à institucionalização do anti-semitismo na Igreja Evangélica Alemã. Por um ano e meio, pastoreou duas congregações luteranas em Londres, desafiando as organizações ecumênicas internacionais a assumirem posições mais firmes contra o nazismo e a apoiarem a Igreja Confessional, reconhecendo-a com a única representante da igreja evangélica da Alemanha. Regressando à pátria em 1935, foi convidado para dirigir um seminário clandestino da Igreja Confessional. Declarado um “pacifista e inimigo do estado”, perdeu o seu cargo docente na Universidade de Berlim e posteriormente foi proibido de residir naquela cidade. Nesses anos, escreveu duas obras famosas: O Preço do Discipulado e Vida em Comunidade.
Em 1939, pouco antes do início da guerra, Bonhoeffer foi para os Estados Unidos a fim de fugir da repressão, mas regressou para a Alemanha um mês depois. Escrevendo ao seu ex-professor Reinhold Niebuhr, disse: “Devo passar esse tempo difícil de nossa história nacional com o povo cristão da Alemanha. Não terei o direito de participar da reconstrução da vida cristã na Alemanha após a guerra se não partilhar das provações dessa hora com o meu povo”. Devido a contatos com militares ligados à resistência, foi nomeado agente civil da Abwehr, o órgão de inteligência das forças armadas, passando a residir em Munique. Envolveu-se com a “Operação 7”, um plano para retirar judeus da Alemanha, o que atraiu as suspeitas da polícia secreta, a Gestapo. Em abril de 1943, poucos meses após ter ficado noivo, foi detido e enviado para Berlim, até que se descobriram evidências do seu envolvimento com alguns conspiradores contra o regime. No dia 9 de abril de 1945, depois de ser transferido para várias prisões, Bonhoeffer e seis outros membros da resistência foram enforcados no campo de concentração de Flossenbürg, um mês antes da rendição da Alemanha. Ao ser sentenciado no dia anterior, dissera a um colega de prisão: “Este é o fim – para mim, o início da vida”.
Conclusão
O nacionalismo perverso do Terceiro Reich afetou todas as igrejas alemãs, inclusive a católica, que também teve os seus momentos de luzes e sombras naqueles dias aflitivos. A experiência das igrejas protestantes soa como uma grave advertência às igrejas de todos os países no sentido de não traírem o seu compromisso cristão e não se renderem aos ídolos do mundo moderno. Esses ídolos muitas vezes são sistemas políticos ou religiosos opressivos, e devemos nos solidarizar com os cristãos que precisam viver em tais circunstâncias. Mais comumente, porém, a igreja se vê atraída por formas mais sutis de infidelidade, seja conformando-se à mentalidade e valores da cultura circundante, seja isolando-se da sociedade com os seus desafios e oportunidades. Cristãos valorosos e coerentes como Niemöller, Bonhoeffer e seus companheiros nos conclamam a pensar sobre o que Cristo significa para o contexto em que vivemos, quais as implicações do evangelho para a hora presente, como praticar um discipulado genuíno nestes tempos conturbados, sendo instrumentos da justiça e da misericórdia de Deus.
Perguntas para reflexão:
1. Como foi possível que tantos protestantes alemães ficassem tão iludidos com o nazismo a ponto de não verem a perversidade dessa ideologia?
2. Que advertências o apoio incondicional das igrejas alemãs a Hitler nos traz numa época em que muitos cristãos novamente se sentem fascinados por líderes poderosos?
3. À luz das Escrituras, qual deve ser a nossa atitude em relação aos governantes civis?
4. Quando é que o Estado e seus agentes deixam de ser “ministros de Deus” (ver Rm 13.4,6) para se tornarem ministros de Satanás?
5. Os cristãos têm o direito de afastar do poder um governante tirânico, mesmo através da força?
Sugestões bibliográficas:
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 4ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1995.
BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. 3ª ed. rev. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1997.
BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003.
BOOM, Corrie Ten; SHERRILL, John; SHERRILL, Elizabeth. O refúgio secreto. 5ª ed. Venda Nova, MG: Betânia, 1980.
GRINGOIRE, Pedro, pseud.; NOGUEIRA, Julio Camargo. Martinho Niemoeller: o homem que enfrentou Hitler. 2ª ed. São Paulo: Casa São Paulo, 1940.
LUTZER, Erwin W. A cruz de Hitler: como a cruz de Cristo foi usada para promover a ideologia nazista. São Paulo: Editora Vida, 2003.
ZERNER, R. Bonhoeffer, Dietrich. Em ELWELL, Walter A. (Ed.). Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1988-1990. Vol. I, p. 205s.
sábado, 22 de janeiro de 2011
O REINO, O PODER E A GLÓRIA: AS IGREJAS EVANGÉLICAS ALEMÃS E O REGIME NAZISTA
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