A ação criminosa de cabo e capitão choca o País, o Estado reage com firmeza e abre guerra à banda podre da PM do Rio O País todo assistiu estarrecido aos vídeos de quatro câmeras de segurança de estabelecimentos comerciais de uma rua do Rio de Janeiro nos quais se veem dois bandidos assaltando e matando um homem e, ato contínuo, dois PMs roubando os ladrões - que, ao final, seguem calmamente e em liberdade. A vítima é o coordenador do AfroReggae, Evandro João Silva, 42 anos, e a tragédia aconteceu na madrugada do domingo 18, na rua do Carmo, no centro. Se isso não fosse suficiente para atingir em cheio a alma de qualquer cidadão, duas novas informações, dadas posteriormente, completariam o trabalho. A primeira: Silva talvez pudesse ter sido salvo, já que ainda se movimentava quando a viatura policial passou e não prestou socorro. A segunda: um dos policiais é capitão e sua função era justamente fiscalizar os PMs que trabalhavam naquela região naquela madrugada. A reação do governo e do comando da PM foi firme e imediata. Os policiais envolvidos são o capitão Dennys Leonard Nogueira Bizarro e o cabo Marcos de Oliveira Salles, e ambos já estão presos administrativamente. Os assassinos continuavam foragidos até o fechamento desta edição, na sexta-feira 23. O cadáver de Silva foi sepultado no cemitério do Caju. Agora, são só lágrimas: a família dele chora, os integrantes do AfroReggae choram, e até outros bandidos em presídios manifestaram tristeza e comoção. Silva desenvolvia o projeto Rebelião Cultural para os carcerários em Bangu II, III e IV. A sociedade, de modo geral, também está de luto e se indigna. A reação do governador Sérgio Cabral não foi diferente de qualquer outro cidadão. "Vagabundos! Safados!" foram alguns dos termos usados por ele para extravasar sua revolta. Partiu do governador a decisão de demitir o relações-públicas da Polícia Militar do Rio, o major Oderlei Santos, que classificou o episódio de mero "desvio de conduta". Cabral disse que "ele se comportou como um advogado de defesa de policiais" e reagiu com veemência: "Isso eu não admito. Há registros contundentes de um mau comportamento de um capitão e policiais militares, mas temos a grande maioria combatendo o crime, dando as suas vidas." Sobre os PMs criminosos, o governador disse o que todos esperavam ouvir: "Têm que ser banidos da corporação e responder criminalmente pelo que fizeram." O horror gerado pelo fato registrado nas câmeras, segundo a psiquiatra Vera Lemgruber, provoca apatia, sensação de desânimo, inutilidade, desamparo, incapacidade de reação - os sentimentos são individuais, mas o fenômeno é coletivo. "Essas sensações podem levar à depressão e se alastrar para outras áreas da vida, como a profissional e a pessoal", diz ela. A longo prazo, o efeito catastrófico se pulveriza na "certeza" de que "nada adianta" e de que ninguém presta. Ação e habilidade para lidar com o caso é o que pede o coordenador-executivo do grupo AfroReggae, José Júnior. À ISTOÉ, ele disse que tudo o que vimos até agora pode ser apenas a ponta do iceberg. "Um capitão não iria se sujar por uma jaqueta e um par de tênis. Quando os policiais achacaram os bandidos, só um criminoso é liberado. Cadê o outro? Isso deu a entender que os PMs soltaram um deles para arrumar dinheiro. Seria uma espécie de pagamento de resgate", raciocina ele. O chefe do Ministério Público do Rio, procurador-geral de Justiça Cláudio Lopes, pede pena de latrocínio para todos os envolvidos, tanto os policiais militares quanto os bandidos. "Merecem uma condenação por latrocínio, como dispõe o Código Penal." O presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Luiz Zveiter, fala sobre a possibilidade de uma parceria imoral entre os policiais e os bandidos.
Eliane Lobato e Wilson Aquino
LUTO Integrantes do AfroReggae pedem que justiça seja feita |
"Parece que foi coisa de encomenda. A impressão é de que os policiais sabiam que o fato ia acontecer e foram coniventes." A conivência, para a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Margarida Pressburger, é um conceito que tem de ser repensado por todos.
"A sociedade é conivente quando dá um dinheirinho para o policial que a flagrou num delito de trânsito, por exemplo, para escapar de uma multa. Conheço gente que faz isso", diz. Margarida lembra que não se pode culpar todos os policiais pelos atos criminosos de alguns.
"Recebo denúncias de PMs que invadem barracos em favela para roubar e recebo, também, elogios para outros policiais que protegem esses mesmos cidadãos." Em depoimento na delegacia, o capitão Bizarro negou a omissão de socorro. Cínico, alegou que não percebeu o corpo da vítima estirado na calçada. Quem viu as imagens dezenas de vezes, como o líder do Afro- Reggae, José Junior, não aceita a tese.
"A câmera mostrou os bandidos fugindo tranquilamente com as coisas do Evandro e 17 segundos depois chegou a viatura. Evandro foi baleado e ficou caído numa calçada pequena. Ali é apertadinho não tinha como os PMs não vê-lo. Ele estava vivo ainda, se mexendo", disse José Junior. Para o antropólogo Gilberto Velho, o horror exibido pelas câmeras não é novo - "vem de décadas" -, a novidade é a prova do crime gravada.
E aponta o que defende como solução: "Reforma da polícia, ouvidoria externa e independente, acabar com a fusão entre polícias civil e militar, melhorar os salários e oferecer treinamento regular." É uma pena que nada, entretanto, poderá aliviar a dor de Inácio João da Silva, 75 anos, pai de Silva.
"Se eu estivesse cara a cara com o chefão da polícia, queria pedir para ele pôr os culpados na cadeia, para eles mofarem lá. Não em prisão administrativa. Policial que faz isso é mais bandido do que os bandidos. Disseram que não viram o Evandro, mas a jaqueta e o tênis eles enxergaram bem. Agora, só nos resta pedir justiça", diz
Um obcecado por tirar jovens do crime O professor de informática Evandro João da Silva, 42 anos (foto), trabalhava há nove no AfroReggae. Ele entrou para o grupo como instrutor de jovens da favela de Parada de Lucas, onde nasceu. Para muitos, ele apresentou o complexo mundo dos computadores e abriu portas profissionais. Mas sua obsessão era mesmo afastar garotos pobres do mundo do crime. "Quando estava estudando, meu filho queria ser analista de sistemas. Mas fez pedagogia para cuidar das crianças e ia se formar no fim do ano. Ele era muito querido por todo mundo" disse o pai dele, o cozinheiro Inácio João da Silva, 75 anos. Alegre, inteligente e sempre solícito para prestar ajuda, Silva logo foi alçado ao cargo de coordenador do núcleo de Parada de Lucas, gerenciando todos os projetos do AfroReggae na comunidade. Depois, foi promovido a coordenador da equipe técnica do grupo, tornando-se responsável por projetos culturais e pelo atendimento psicológico e pedagógico dos núcleos do AfroReggae. "Evandro era um cara do bem, é uma perda irreparável que se torna mais dolorosa pela maneira como tudo aconteceu", afirmou o coordenador-executivo do AfroReggae, José Júnior. Ultimamente, Silva atuava em projetos para ressocializar presos. "Ele trabalhava nas áreas mais explosivas do Rio e nunca teve problemas", lembrou José Júnior. Há três anos, Silva conseguiu realizar o sonho da maioria dos moradores de morros: mudou-se para um pequeno apartamento no centro do Rio, local onde acabou sendo assassinado. |
Colaborou Renata Cabral
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