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sábado, 29 de janeiro de 2011

Como pensam os brasileiros



Um livro prova que, ao contrário do que propalam os
esquerdistas, a elite nacional é o farol da modernidade


Ronaldo França


Marcos Issa/Argosfoto
Alberto Carlos Almeida: entrevistas para mapear a ética e as concepções de país dos cidadãos de diferentes níveis


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Quadro: Uma questão à flor da pele

A julgar pelo que se lê nos jornais e se ouve nas salas de aula das universidades, o Brasil conta com uma elite retrógrada, de valores quase medievais, empenhada em obter toda sorte de privilégios do estado e em explorar a massa trabalhadora. Essa elite seria tão daninha que qualquer movimento de protesto originado nela, como o "Cansei", já nasceria marcado pela ilegitimidade. Segundo os arautos desse ponto de vista, em posição antípoda estaria um povo de valores imaculados, dono de uma sabedoria e um senso de justiça naturais e pronto a redimir o país de séculos de iniqüidade. Basta um pouco de distanciamento para ver que se trata de um maniqueísmo tolo, típico da rasa cachola esquerdista brasileira. Elite é muito mais do que sinônimo de "rico". Como registram os dicionários, é uma palavra de origem francesa que significa "o que há de melhor numa sociedade ou grupo". Dela fazem parte profissionais liberais, cientistas, atletas, empresários, políticos (não todos, infelizmente). Só uma nação que conta com uma elite com iniciativa, energia criadora, conhecimento avançado e valores democráticos tem chance de desenvolver-se. É por meio de suas ações e de seu exemplo que o conjunto da população termina ascendendo também, tanto no plano educacional e cultural como no profissional. Isso está longe de ser teoria romântica. É fato verificável no bloco dos países que hoje compõem o clube dos desenvolvidos.

Ao deixar de lado os estereótipos falidos, é possível verificar que a realidade brasileira estampa feições que costumam passar despercebidas. Uma prova disso emerge da leitura de A Cabeça do Brasileiro (Record; 280 páginas; 42 reais), do sociólogo Alberto Carlos Almeida, que chega às livrarias nesta semana. O livro traz os resultados da Pesquisa Social Brasileira, um levantamento no qual se investigaram os principais valores presentes no cotidiano social, econômico e político nacional. Enfim, o que se pode denominar de "o pensamento do brasileiro". O que se tem ali é uma radiografia de nitidez impressionante, que afirma principalmente como o papel da elite na construção de um Brasil moderno é crucial. A parcela mais educada da população é menos preconceituosa, menos estatizante e tem valores sociais mais sólidos. Se todas as pessoas em idade escolar estivessem em sala de aula hoje, a pleno vapor, o Brasil acordaria uma nação moderna no dia 1º de janeiro de 2025 – depois de um ciclo completo de educação. Os brasileiros passariam a ter baixíssima tolerância à corrupção e esperariam menos benesses de um estado protetor. Funcionários públicos ineficientes e aproveitadores seriam uma raça em extinção. Os cidadãos lutariam mais por seu futuro, em vez de se entregar distraidamente à loteria do destino. Nesse país, as pessoas de qualquer credo ou classe social se veriam como portadoras de direitos iguais. As diferenças sexuais seriam mais respeitadas. Provavelmente pouquíssimos endossariam a frase estampada no alto da página 87 – "Se alguém é eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio".

A Pesquisa Social Brasileira foi realizada pelo instituto DataUff (Universidade Federal Fluminense) e financiada pela Fundação Ford. Foram ouvidas 2.363 pessoas, em 102 municípios. Coordenador do trabalho, Almeida optou pela mesma metodologia utilizada pela General Social Survey, a maior pesquisa social dos Estados Unidos, realizada a cada dois anos, desde 1972, pela Universidade de Chicago. O levantamento expressa a opinião dos brasileiros sobre diversos temas. Não pretende, é importante ressaltar, revelar como agem. A pesquisa é sobretudo a respeito da ética nacional ou das várias éticas que convivem no interior do país. Pegue-se o exemplo do "jeitinho". A maioria esmagadora da população já lançou mão dele para resolver problemas. De acordo com Almeida, essa parcela equivale a dois terços da população. Mas ele não é aprovado na mesma proporção quando se leva em conta o grau de escolaridade. O "jeitinho" é chancelado como algo válido por quase 60% dos analfabetos. Entre os que têm nível superior, porém, esse índice cai praticamente à metade. Essas discrepâncias também se revelam grandes quanto a outros temas. No universo dos que têm pouca ou nenhuma educação, a taxa dos que aprovam a violência policial oscila entre 40% e 50%. Já a dos que a desaprovam entre os mais escolarizados chega a 86%.

A pesquisa se ocupou, ainda, de um aspecto bastante danoso da vida nacional, o patrimonialismo. Ele não é uma invenção brasileira, como os impostos provisórios eternos. Quem melhor o investigou foi o sociólogo alemão Max Weber, que inspirou gerações de estudiosos. No Brasil, surgiu como forma de organização social no século XVI, com as grandes concessões de terra, as capitanias hereditárias. E por aqui fincou raízes fortes. Uma das conseqüências do patrimonialismo é a confusão entre o público e o privado. A pesquisa de Almeida mediu-a por meio da frase "Cada um deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é público". Ela obteve a concordância de 74% dos que foram ouvidos. Quando se analisa esse mesmo dado à luz da escolaridade, contudo, vê-se a falta que a sala de aula faz. No universo dos analfabetos, 80% não conseguem enxergar o papel do cidadão no cuidado com a coisa pública. Entre os que têm nível superior, o porcentual diminui para 53%.

"Hoje, a maioria dos brasileiros ainda tem baixa escolarização e, portanto, uma visão mais arcaica da sociedade", afirma Almeida. "Mas é evidente que a educação tornará majoritária no país a parcela da população que tem uma visão mais moderna. O processo é irreversível." A divisão entre arcaico e moderno, embora em desuso por boa parte dos cientistas sociais, é a que define com mais clareza o abismo entre as duas visões de mundo. Para verificar a profundidade dessas diferenças, o autor de A Cabeça do Brasileiro não recorreu a nenhum expediente extraordinário. Apenas aferiu, por meio de perguntas, a indulgência com situações cotidianas. Sua pesquisa tem o poder de iluminar os principais aspectos da vida nacional. Os dados obtidos reforçam o que o imperador dom Pedro II já sabia: sem um esforço para universalizar a educação, a sociedade brasileira continuará patinando material e moralmente. Como nota Almeida, num país mais escolarizado a cena de um Severino Cavalcanti sentado na cadeira de presidente da Câmara dos Deputados nunca teria ocorrido. "Os eleitores de Severino, em sua maioria de baixa escolaridade e residentes em cidades pequenas do interior do Nordeste, tendem a não condenar o comportamento desse político, que defendia abertamente a contratação de parentes", constata o autor.

A corrupção, essa praga tão destruidora quanto a saúva o era nos tempos do ciclo do café, tem o beneplácito da maioria dos iletrados. Isso ficou claro quando se colocou a seguinte pergunta: "Como considerar a atitude do funcionário público que ajuda uma empresa a ganhar um contrato no governo e depois recebe dela um presente de Natal?". Para 80% dos que não sabem ler ou escrever, isso é apenas um "favor" ou um "jeitinho". Para 72% dos que concluíram a universidade, é corrupção e ponto final. Voltando à frase do segundo parágrafo desta reportagem, entre os analfabetos 40% acham que uma pessoa eleita para um cargo público deve usá-lo em benefício próprio. Dos que atravessaram todo o ensino superior, somente 3% pensam assim. O mesmo contraste é percebido quando o tema é a intervenção do estado na economia. Incríveis 90% dos analfabetos acham que o governo deve socorrer empresas em dificuldades. Entre os que têm nível superior, apenas 27% concordam inteiramente com isso e 37% aceitam a atitude em alguns casos. Ainda mais preocupante é a proporção de iletrados que apóiam a censura governamental. Para quase 60% deles, "programas de TV que fazem críticas ao governo devem ser proibidos", contra somente 8% dos que exibem nível superior. Dá para ver de onde os partidários da tentação autoritária tiram seu entusiasmo liberticida.

Um capítulo delicado do livro é o que trata da percepção dos brasileiros em relação à cor da pele. O autor pediu aos entrevistados que atribuíssem qualidades ou defeitos a homens brancos, negros e pardos retratados em fotografias. Aos brancos foram atribuídas mais qualidades positivas, como inteligência, honestidade e modos educados. Os negros ficaram em segundo lugar. Quanto aos pardos, além de ficar atrás no que se refere aos aspectos positivos, eles são mais relacionados a características negativas (veja quadro). Com base nesses dados e em cruzamentos mais específicos, como o que relaciona a cor da pele a profissões de maior ou menor prestígio, com vantagem para os brancos, Almeida refuta a tese de que um dos maiores problemas brasileiros é o preconceito social, e não o racial. Mas talvez seja o contrário: pardos e negros são percebidos de modo mais negativo justamente por continuar a figurar em maior número, por causa de circunstâncias históricas, na base da pirâmide social, onde as oportunidades são menores e a marginalidade é maior. Seja como for, a pesquisa funciona como combustível para uma discussão que precisa continuar.

"A pesquisa que compõe A Cabeça do Brasileiro é algo monumental. Tem o mérito de testar quantitativamente tudo o que nós estudamos. Nunca foi feito algo parecido", diz o antropólogo Roberto DaMatta. É também por meio de trabalhos como esse, com conclusões que fogem aos lugares-comuns e apontam na direção da necessidade de universalizar a educação e acelerar a marcha rumo à modernidade – o que significa uma ampliação da classe média, ou seja, da elite –, que talvez um dia o país possa deixar de caber na seguinte descrição do escritor Paulo Mendes Campos: "Imaginemos um ser humano monstruoso que tivesse a metade da cabeça tomada por um tumor, mas o cérebro funcionando bem; um pulmão sadio, o outro comido pela tísica; um braço ressequido, o outro vigoroso; uma orelha lesada, a outra perfeita; o estômago em ótimas condições, o intestino carcomido de vermes. Esse monstro é o Brasil: falta-lhe alarmantemente o mínimo de uniformidade social".

QUE TIPO DE CABEÇA VOCÊ TEM?

As vinte questões abaixo, elaboradas pelo sociólogo Alberto Carlos Almeida, autor de A Cabeça do Brasileiro, abordam aspectos ligados ao cotidiano social, econômico e político nacional. Em seu conjunto, as alternativas escolhidas ajudam a traçar o perfil educacional e ideológico de quem se dispuser a fazer o teste


Certo
Errado
1 - Censurar programas de televisão em que apareçam cenas de sexo e violência é uma atribuição do governo

2 - O fornecimento de energia elétrica deveria ser de responsabilidade exclusiva do estado

3 - O sistema bancário deveria ser estatal
4 - Cabe ao governo cuidar do que é público
5 - Nos casos em que a obtenção de um documento é complicada, o melhor a fazer é pedir a ajuda de um amigo que trabalhe no serviço público
6 - De vez em quando, não há nada de mais em passar uma conversa no guarda, para que ele não aplique uma multa
7 - Recorrer ao "jeitinho" brasileiro é uma forma válida de descomplicar a vida
8 - Mesmo que o patrão autorize seu empregado a chamá-lo por "você", o empregado deve continuar a tratá-lo por "senhor"
9 - Empregados devem utilizar sempre o elevador de serviço, ainda que os moradores do edifício não se incomodem que eles usem o elevador social
10 - Lugar de empregada doméstica assistir a TV é no quarto dela ou na cozinha – mesmo que os patrões a convidem a sentar-se na sala
11 - Se alguém se sente incomodado pelo vizinho, o melhor a fazer é não reclamar
12 - Se você dá uma festa em sua própria casa, que se estende pela madrugada, os vizinhos que reclamam do barulho não passam de uns chatos
13 - Só se deve colaborar com o governo quando ele cuida do que é público
14 - É Deus, e só Ele, quem decide o destino humano
15 - Não se pode confiar totalmente nos amigos
16 - É aceitável que, em certas ocasiões, a polícia bata em presos, para obter confissões de crimes
17 - Estupradores merecem ser estuprados na cadeia por outros presos
18 - O governo deve socorrer as empresas privadas em dificuldade
19 - Cabe ao governo controlar os preços de todos os serviços básicos, como transporte, por exemplo
20 - Greves de servidores públicos deveriam ser totalmente proibidas

NÚMERO DE ALTERNATIVAS CONSIDERADAS "ERRADAS"

Resultado

De 16 a 20 errados: você pensa de forma semelhante à maioria dos brasileiros com curso superior completo – acredita que o estado deve ser mínimo e servir à sociedade, não o contrário. No plano pessoal, é pouco hierárquico nas suas relações cotidianas

De 11 a 15 errados: você não pensa exatamente como a maioria dos que têm curso superior, mas tende a pensar como eles

10 errados: seu modo de ver o mundo é dividido: apesar de, em relação a alguns tópicos, raciocinar como os mais ilustrados, você mostra opiniões favoráveis à manutenção de um estado mastodôntico e acha incontornáveis o "jeitinho" brasileiro e determinadas atitudes preconceituosas presentes no dia-a-dia – típicas dos cidadãos com menos escolaridade

De 5 a 9 errados: você se inclina a pensar de uma forma que indica tolerância à corrupção, à desigualdade, ao preconceito e ao estatismo

De 0 a 4 errados: você pensa como aqueles com menor nível de escolaridade. É como se a corrupção, a desigualdade, o preconceito, o fatalismo e o estatismo fossem fatos naturais

Fonte: Alberto Almeida

Ilustrações Atomica Studio













http://veja.abril.com.br/220807/p_086.shtml


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