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domingo, 31 de outubro de 2010

#HUMOR : Dilma Rousseff: a mulher a quem Lula deu o Brasil

01.11.2010 - 00:04 Por Alexandra Lucas Coelho, no Rio de Janeiro

É forte: enfrentou tortura e um cancro. Tem fama de intelectual: Zola, Proust, Sófocles. Como guerrilheira, foi política: nunca disparou um tiro a sério. Como política, foi técnica. Isto chega para governar o Brasil? O PÚBLICO falou com quem conheceu Dilma Rousseff ao longo dos anos.





Dilma Rousseff é a primeira mulher Presidente do Brasil Dilma Rousseff é a primeira mulher Presidente do Brasil (Ricardo Moraes/Reuters)






Dilma ganha ao perto.

No comício de encerramento da primeira volta em São Paulo, perante umas 30 mil pessoas, o discurso dela foi “engolido” por todos os que falaram antes e sobretudo pelo que falou depois, esse Pai-Natal-do-povo que é Lula.

Após o comício, quando a imprensa foi convocada para uma salinha onde ia ser apresentado um apoiante de peso, Dilma mostrou-se firme e bem-humorada. Ao perto, viam-se as olheiras de semanas de campanha. Mas sobretudo uma mulher sem a artificialidade por vezes gaguejante que ela tende a mostrar ao longe.

O seu carisma de massa é tão ténue que o analista José Roberto de Toledo, do “Estado de São Paulo”, acha que quando ela não vai mal isso já é bom. “Bom, para Dilma, é não comprometer.” Ou, como diz Alberto Almeida, do Instituto de Análise, autor de um livro chamado “A Cabeça do Eleitor”: “Ela não fez nada de errado na campanha. E como a expectativa era negativa, se saiu bem.”

Não é um prenúncio entusiástico, se pensarmos que Dilma Rousseff vai entrar para a história como primeira mulher presidente de um país que quer ser uma das cinco grandes economias do mundo, e pensando que ela sucede a um dos presidentes mais populares de que há memória.

“Qualquer um seria eleito com o apoio do Lula”, diz Alberto Almeida. “Ele podia ter dado esse presente para qualquer um e deu para ela.”

Podemos ver esse presente num sentido mais amplo: o que Lula deu a Dilma foi o Brasil. Então porquê a ela? Simplesmente não havia mais ninguém? Se Lula é um político tão intuitivo ia apostar todo o seu prestígio num cavalo qualquer?

Todas estas perguntas levam a uma só: quem é Dilma Rousseff?

O Brasil vai saber, a partir de agora. Mas a história dela há-de contar alguma coisa.

A herança do pai

Além do Brasil, um outro país “votou” em Dilma no domingo: a Bulgária. Porque foi de lá que veio Pétar Russév, advogado viúvo que nos anos 40 se instalou em Minas Gerais, e fez dinheiro em negócios. Casou com a jovem mineira Dilma Jane Silva, mudou o nome para Pedro Rousseff, e — sem nunca desistir de fumar cinco maços, comer bem e jogar, conta a revista “Piauí” — educou a sua prole com piano, francês e literatura.

Nascida a 14 de Dezembro de 1947, entre um irmão mais velho e uma irmã que morreu, Dilma Vana Rousseff acordou para os humilhados e ofendidos com Zola e Dostoiévski, como depois acordará entre os salões de Proust.

A infância dela não tem nada a ver com a de Lula ou a da orfã Marina Silva, lá nos confins da Amazónia.

Dilma foi uma burguesinha de Belo Horizonte, cidade de famílias tradicionais. Fazia férias de praia, hotel-casino, e ia de avião. Andou nas melhores escolas da cidade. Em casa havia três empregadas.

Bem mais velho que a mãe, o pai morreu quando ela tinha 14 anos, deixando uma herança de imóveis.

E é numa prestigiada escola pública, a Estadual Central, que Dilma vai conhecer todo um frenesim político: são os anos 60, o Brasil tem uma ditadura, o mundo está em convulsão.

“Ela era meio tímida, uma menina pacata, recatada, boazinha”, lembra ao PÚBLICO a ex-colega Ângela Alvarenga, hoje directora de uma empresa de informática em Belo Horizonte. Mas a escola, a experiência de ver favelas como o Morro do Papagaio, e o clima geral levam Dilma a entrar aos 19 anos para a Polop (Política Operária), e depois a optar pela ala defensora da luta armada. Forma-se então o Colina (Comando de Libertação Nacional), onde Dilma conhecerá o seu primeiro marido, Cláudio Galeno, com quem casa no civil. Galeno disse à “Piauí” que aprendeu a fazer bombas na farmácia do pai.

É por essa época que Dilma se torna próxima de Fernando Pimentel, depois prefeito de Belo Horizonte e hoje senador do PT. “Estávamos juntos no Colina e frequentei muito a casa dela”, diz ao PÚBLICO. “Era uma pessoa muito séria, intelectualizada, com uma capacidade de análise muito acima da média. Ela tinha lido mais que nós. Isso vinha do pai, culto, a falar várias línguas, com uma grande biblioteca.” Quanto a temperamento, “exteriormente, a Dilma era severa, e quando ficava amiga, era bem humorada, e é assim até hoje, uma pessoa com quem é fácil conviver”. Nunca foi “uma tribuna liderando uma multidão”, “destacava-se pela inteligência, pelos argumentos”. E isso, diz Pimentel, também é assim até hoje: “Fala bem a públicos seleccionados, de temas específicos. É uma pessoa muito profunda, e um líder de massas exige menos profundidade e mais brilho.” Esse brilho falta a Dilma, reconhece este seu velho aliado.

Luta armada

O Colina fazia assaltos a bancos e roubava carros, não planeava mortes. “A ditadura era muito pesada e não havia outra forma que não a luta clandestina e mesmo armada”, diz Pimentel. “Todos nós nos engajámos. Mas a Dilma nunca participou de uma acção directa, e talvez fosse a mais crítica [dessas acções]. Eu participei, e fui preso. Ela, muito antes de mim, percebeu que aquele não seria o caminho.”

Ainda assim, Dilma aprendeu a disparar, teve aulas de explosivos e escondeu um arsenal debaixo da cama quando foi necessário, para além de colaborar na logística do grupo. E foram estas histórias que saltaram durante a campanha, com os opositores a tentarem colá-la a um passado violento. “Não acho que tenha ficado desse passado qualquer problema, pelo contrário firmou-a na luta democrática”, remata Pimentel.

Certamente teria sido menos arriscado seguir a vida burguesa.

Quando o Colina se transforma em Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares, Dilma já está separada do marido e namora o gaúcho Carlos Araújo, também militante. Segundo a “Piauí”, a maior acção que fazem é “o roubo de 2,5 milhões de dólares” da casa da amante de um ex-governador, no Rio de Janeiro. “Nem Dilma nem Araújo participaram da acção, mas ambos estiveram envolvidos na sua preparação.”

E pouco depois Dilma é presa. Passa três anos na prisão, com torturas várias. Espancam-na e dão-lhe choques eléctricos. A pedagoga Maria Luiza Belloque, que esteve na mesma cela, contou à “Piauí”: “A Dilma levou choque até com fios de carro. Fora ‘cadeira do dragão’ [uma cadeira de metal que a cada choque faz com que as pernas do preso batam numa placa], ‘pau-de-arara’ [uma barra onde o preso fica pendurado pelos punhos e pelos joelhos] e choque para todo o lado. Ela levantava o meu astral quando eu chegava arrebentada da tortura.” Leslie Belloque, sua cunhada, reforçou: “Ela não era nada chorona. Falávamos como se não tivesse tortura. A Dilma é um tenente, é muito forte.”

Quando sai da cadeia, muda-se para Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul. Carlos, o namorado está preso numa ilha ao largo, Dilma visita-o e leva livros para os camaradas de cela.

Depois da libertação de Carlos, ficam a viver juntos mais de duas décadas e têm uma filha, Paula (que recentemente teve um filho, fazendo da futura presidente avó). Até hoje, os dois ex-maridos de Dilma mantêm-se seus amigos próximos.

A caminho de Lula

Nos primeiros anos em Porto Alegre, além de estudar economia, Dilma faz um curso de teatro e fixa-se no “Filoctetes” de Sófocles, a tragédia do homem ferido por uma cobra e abandonado pelos companheiros numa ilha deserta. No comentário de Dilma à “Piauí” não há nada de ingénuo: “A peça é uma obra-prima. Filoctetes era um chato de galocha. Reclamava o tempo inteiro que a perna estava ferida. Largar ele na ilha é uma solução dentro de uma ética que não é a judaico-cristã. A ética grega não é boazinha, não tem culpados.”

Dilma envolve-se na criação do partido trabalhista de Leonel Brizola em terras gaúchas. Trabalha como assessora de bancada, depois responsável estadual pelas Finanças, depois líder sindical. É então que conhece o também sindicalista Olívio Dutra, futuro governador do Rio Grande do Sul e ministro de Lula. “Ela mostrou-se muito capaz nas reuniões, sem falar economês nem ter uma pretensão impositiva”, lembra ao PÚBLICO. “Isso ficou sempre na base da nossa relação. E quando ganhei o governo do estado convidei-a como responsável por Minas e Energia para enfrentar a herança anterior, que era o ‘tsunami’ da ‘privataria’, na era Fernando Henrique Cardoso. A Dilma trouxe a sua paciência e capacidade gestora, travou o esquartejamento da privataria e conseguiu livrar o estado de um apagão.”As empresas privadas estavam a ser responsabilizadas pelo “apagão” gigante que abalou o governo de Fernando Henrique. O Rio Grande ficou fora disso, e da política de racionamento que se seguiu, embora Dilma tenha reduzido o consumo estadual. Também foi ela, diz Dutra, que trabalhou “o potencial eólico e a energia de cascas de arroz e restos de madeira”. E o programa Luz para Todos, um dos sucessos do governo Lula, teve origem num programa semelhante a nível estadual.

Foi assim que Dilma chegou aos ouvidos de Lula.

“Eu conversava muito com Lula”, diz Dutra. “E isso significava falar das pessoas. Dilma chegou a contribuir com pontos para o programa em que ele foi eleito. Quando o Lula ganhou, continuámos conversando, e ele colocou para mim que Dilma tinha de fazer parte da comissão de transição.”

No site de campanha de Dilma, Lula resume uma história que já contou várias vezes: “Em apenas uma reunião ela conseguiu me convencer que eu já tinha encontrado a ministra de Minas e Energia do Brasil.”

Assim foi.

A “Piauí” tanto cita gente que então viu nela grande capacidade de aprender como uma autoritária temperamental. Certo é que em 2005, quando rebentou o escândalo do “Mensalão” (as mesadas dadas a deputados pelo PT), o chefe da Casa Civil, José Dirceu, caiu, e foi Dilma que Lula convidou para o lugar.

A escolhida

“Na Casa Civil de Lula, ela foi a coordenadora dos ministérios”, diz o senador Fernando Pimentel. “O presidente aprendeu a admirar Dilma como um grande quadro. Ela veio para o centro do governo num momento muito difícil. E soube fazer tudo muito bem, ajudar o governo a sair da crise de forma muito discreta. Conquistou a confiança do presidente. De todos os quadros, ela é a que reúne mais confiança política e pessoal de Lula.” Por isso, quando decidiu escolhê-la como sucessora “não se preocupou muito por ela não ter passado por eleições antes”.

A campanha expôs essa falta de traquejo. “Sim, mas ela foi adquirindo jogo de cintura.” Pimentel acha que não “vai haver nenhuma quebra de continuidade”.

E Olívio Dutra, que foi ministro ao lado de Dilma, está de acordo: “Ela tem dedicação, visão a longo prazo e capacidade de gerir uma máquina pública funcionando para a maioria e não para poucos. Esse sempre foi o objectivo dela. E tem o sentimento de povo brasileiro desde a luta contra a ditadura.”

Este é o núcleo pêtista de que Dilma faz parte.

“Um grupo de políticos que só tem um líder, Lula”, resume o analista Alberto Almeida. “A Dilma vai comportar-se de acordo com os interesses desse grupo.” Que inclui o ex-ministro Antonio Palocci, demitido na sequência de escândalos. “O Dirceu não podia ser sucessor, porque tinha sido vítima de um escândalo, e o Palocci também não. O presidente escolheu a Dilma, em quem tinha confiança.” E ela foi “uma candidata disciplinada”, acha este analista. “Foi humilde, admitiu que não tinha experiência e não fez nada de errado.”

Na cabeça do eleitor, “o primeiro factor de voto é a avaliação do governo” e daí o voto em Dilma. “O ponto de vista do eleitor é muito simples. Qualquer um podia ser eleito com esse apoio.” Almeida prevê que Dilma “tenderá a fazer um bom governo, com Lula e esse grupo inteiro por trás”. A Reuters chamou-lhe “o piloto automático” do Brasil.

E pode até ter uma vantagem sobre Lula, sublinha o senador Pimentel: “Ela foi eleita com uma base de apoio parlamentar muito maior. E como é uma técnica capacitada, vai ser um governo mais tranquilo.”

Um exame recente mostrou Dilma livre de um retrocesso no cancro linfático que lhe foi detectado em 2009. Passou por cirurgia, quimio e rádio. Comentou assim a queda de cabelo à “Piauí”: “Teve um efeito gratificante: é bom sentir a água escorrendo directo na cabeça.” Há que “procurar as coisas boas” a cada vez. “E o cabelo vai crescer, vai voltar.”

Voltou forte.



LAST

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