[Valid Atom 1.0]

sexta-feira, 19 de março de 2010

Quem julgará os juízes?




18 de Março de 2010 - por Lucas Mafaldo

Especialmente para nós, brasileiros, que vivemos em uma sociedade onde mesmo boa parte de termos de contrato que poderiam ser estabelecidos por uma negociação são pré-fixados por legislação específica, é difícil imaginar um mundo sem uma instância superior responsável por ordenar a legislação e a justiça. No entanto, não é difícil imaginar como essas regras e instituições surgiriam por meio de processos de ordem espontânea; assim como também é possível imaginar como esses mesmos processos espontaneamente entrariam em crise. Por isso, convém analisar porque as pessoas escolheriam livremente cooperar e porque escolheriam livremente guerrear.

Os benefícios da cooperação já foram estudados exaustivamente pelos economistas: a divisão do trabalho possibilita um aumento significativo na produtividade geral; a vantagem comparativa faz com que todos possam encontrar um modo de ser produtivo; logo, se as pessoas agirem racionalmente em vista dos próprios interesses, elas tenderão a criar laços voluntários de cooperação pacífica. No entanto, é um simples fato o de que não há paz perpétua. Periodicamente, episódios de violência interrompem as relações mutuamente benéficas e proveitosas.

Pode-se tentar explicar isso de diferentes modos, seja investigando a causa dos episódios de irracionalidade, seja procurando entender porque valores prejudicias são ocasionalmente adotados, ou ainda examinando a própria racionalidade da violência. Existe uma lógica econômica para a paz: dois vizinhos disputando um pedaço de terra podem concluir que será mais barato ceder um pouco e entrar em acordo que sofrer os prejuízos de um conflito violento. No entanto, o inverso pode também ocorrer: um vizinho mais forte pode concluir que os lucros advindos da pilhagem dos bens dos vizinhos compensarão os custos de preparação para a guerra. Nesse caso, caberá aos vizinhos mais fracos procurar recursos para se proteger do agressor – ou sofrer as consequências caso isso
não seja possível.

Ora, nessas situações, é do interesse comum do todos os cidadãos pacíficos criar um mecanismo que possa conter a violência – seja ela causada por um louco ou um frio racionalista. Esse mecanismo pode eventualmente assumir o caráter de estado, mas não é necessário que seja assim. A função da justiça se confundirá com o estado quando suas decisões forem impostas por uma instituição com o poder coercitivo de fazer com que elas sejam seguidas, e irá se separar dele quando a essa função for realizada por uma terceira parte escolhida livremente pelas duas partes em conflitos.

Pode-se discutir (e esse é o ponto que separa parte dos liberais dos anarcocapitalistas) se uma justiça do segundo tipo, isto é, sem poder coercitivo absoluto, é suficiente para organizar satisfatoriamente uma sociedade ou se, em algum momento, será preciso uma instância superior para validar as demais decisões. É uma questão difícil, mas bem menos utópica do que parece. De certo modo, até o século XIX, as relações internacionais foram basicamente fundamentadas em uma justiça não-estatal: os países ora tentavam resolver seus problemas por meio de acordos bilaterais, ou por meio da criação de alianças para equilibrar o poder coercitivo ou buscando uma terceira parte para desempenhar o papel de juiz.

De todo modo, é fácil perceber as vantagens trazidas por qualquer um desses tipos de justiça: a mediação de um terceiro permite que vários conflitos que levariam a soluções violentas encontrem um desfecho pacífico. Uma disputa de terra pode se desenvolver em uma rixa sangrenta que custe vidas humanas; a possibilidade de levar o confronto inicial para uma terceira parte - seja o estado, seja uma pessoa da confiança de ambos – previne incalculáveis danos futuros.

No entanto, quando o estado surge como mediador nessas decisões, surge o problema que nos acompanha desde a antigüidade: Quis custodiet ipsos custodes? Quem nos protege dos protetores? A frase resume o problema central da distribuição de poder: se é preciso uma instância superior para resolver um problema, o que acontece quando essa instância mesma se torna o problema? Creio não ser exagero dizer que uma das preocupações centrais dos vários arranjos constitucionais seja justamente encontrar uma solução para essa questão. Alguns preferem apostar suas fichas em um monarca benevolente, outros preferem a vontade popular, enquanto outros acreditam ainda que o governo se auto-limitará por barreiras constitucionais ou divisão de poderes. Todos esses arranjos são tentativas de colocar barreiras entre nós e os nossos protetores. Ora, quando o estado assume a função da justiça, o mesmo problema se coloca: quem julgará os juízes? Em outras palavras: é maravilhoso que podemos levar nossos conflitos com o vizinho para o juiz, mas o que ocorre quando nosso vizinho é o próprio juiz? A menos que nos livremos por completo do estado, esse será sempre um problema incontornável – e, creio eu, para o qual nenhuma resposta perfeitamente estável é possível.

Mas resolvê-lo não é o objetivo desse artigo. Pretendo apenas chamar atenção para esse problema e para algo mais: essa pode muito bem ser uma questão perene da filosofia política, mas ela se torna muito mais crítica com o aumento das funções do estado. De fato, esse parece ser quase o caso de dizer, hegelianamente, que o aumento da quantidade de funções de um governo altera a própria qualidade do governo. Explico-me: enquanto o estado assume poucas funções, é razoavelmente raro as situações onde o indivíduo se encontra diretamente em conflito com ele. Isso possui duas conseqüencias importantes: por um lado, o estado funciona como mediador neutro na maior parte dos conflitos privados; por outro, quando o próprio estado é uma das partes do conflito, por essa ocorrência ser rara, é mais fácil fiscalizar a legitimidade do processo no julgamento dessa questão. No entanto, quando o estado cresce gigantescamente e começa a legislar sobre cada pequeno aspecto da vida privada, os conflitos entre indivíduos e estado, e a dificuldade de fiscalizar o julgamento desses conflitos, crescem na mesma proporção. Em outras palavras: se existem poucos juízes no país, a chance do seu vizinho ser um dele é muito menor; e se existem muito juízes, é difícil prestar atenção no que estão fazendo.

Por isso mesmo, qualquer que seja o arranjo constitucional da preferência do leitor, ele terá uma probabilidade de funcionar muito maior se operar em um estado pequeno. Afinal, um estado enorme, cheio de departamentos obscuros e redundantes – como é o nosso – se torna quase impossível de fiscalizar. Nem o mais bem intencionado dos monarcas, nem o povo mais engajado, nem a câmara de lordes mais educada conseguiriam supervisionar uma máquina burocrática enorme como a nossa. Em outras palavras: para nos proteger dos nossos protetores, o primeiro passo é reduzir o número e o poder deles.






LAST





Sphere: Related Content
26/10/2008 free counters