(Esta é a primeira de uma série de quatro textos sobre a morte de Celso Daniel. O julgamento dos acusados começa nesta quinta-feira).
Nesta quinta-feira, começa o julgamento dos acusados pelo sequestro e morte morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Ocorrida em fevereiro de 2002, a trágedia deixou o país em estado de choque. Abriu uma crise entre a Polícia Civil e o Ministério Público, que tem visões opostas sobre o caso. Nove anos depois, o crime inspira mais dúvidas do que certezas.
A tese do Ministério Público é que Celso Daniel foi vitima de um crime
encomendado. Conforme a acusação, seu assessor e tesoureiro político, Sergio Gomes da Silva, batizado como Sombra pela imprensa que cobriu o caso, contratou um grupo de pequenos criminosos do ABC paulista para cometer o crime. Para não deixar pistas que pudessem levar ao mandante, os criminosos foram instruídos a agir como se tivessem cometido um crime comum, mais um sequestro entre tantos que ocorrem na violência brasileira.
Chamada para investigar o caso, a Polícia paulista concluiu meses depois que não havia elementos para sustentar a tese de crime encomendado — ou crime de mando, como dizem os promotores. A visão de crime comum está no inquérito conduzido pelo primeiro delegado encarregado do caso, Armando de Oliveira Filho. Alguns anos depois, a delegada Elizabeth Sato foi encarregada de fazer uma espécie de inquérito sobre o inquérito. Reabriu as investigações, examinou o trabalho anterior e concluiu que nada tinha a acrescentar diante do serviço de Armando de Oliveira Filho.
Nas primeiras semanas após a tragédia, eu estava convencido de que a tese de crime encomendado fazia mais sentido. Celso Daniel não era uma vítima qualquer e não me parecia razoável que tivesse sido morto num crime qualquer. O caso tinha implicações políticas muito além de Santo André. O prefeito acabara de ser nomeado para integrar a coordenação da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, que as pesquisas já apontavam como favorito na sucessão de Fernando Henrique Cardoso. Eu já tinha ouvido os rumores sobre casos de corrupção em Santo André e achava que uma coisa poderia levar à outra.
Hoje estou convencido de que ao menos até o momento em que escrevo estas linhas não surgiram elementos sólidos para sustentar essa visão. Podem até aparecer novidades antes ou durante o julgamento mas, depois de quase uma década, não se conhece nenhum elo de ligação entre Sombra e os criminosos. Não há indícios de que tenha — mesmo remotamente ou através de terceiros — feito contato com aquela quadrilha de sequestradores para encomendar o crime Encarcerados há mais de oito anos, desde o momento em que foram presos, os bandidos sustentam a versão de que cometeram o crime por conta própria e não modificaram seus depoimentos de lá para cá. A policia apurou e investigou o relato dos criminosos e conseguiu reunir indícios de que podem estar falando a verdade.
A versão do ministério público se apoia em hipóteses promissoras, como
raciocínio, mas que carecem de indícios consistentes. Os promotores sustentam que, depois que foi chamado para integrar a coordenação da campanha de Lula, Celso Daniel decidiu dar um basta no esquema de corrupção de Santo André, afastando-se de Sombra e de um grupo de assessores que intermediavam negócios com fornecedores da prefeitura. Inconformados, segue o raciocínio, decidiram sequestrar e matar o prefeito.
Não é uma possibilidade irracional, me disse um promotor ligado ao caso. Numa conversa em 2005, ele conta que estava convencido — embora não pudesse provar — que o próprio Celso Daniel mantinha grandes reservas financeiras num paraíso fiscal e que o sequestro seria uma forma de obrigá-lo a fornecer a senha de acesso a esta fortuna. Mesmo promissora, essa possibilidade não pode ser confirmada por indícios capazes de demonstrar a existência dessa conta. Não há papeis, nem mensagens, nem extratos que, mesmo de forma encoberta, pudessem indicar isso.
Outro ponto discutível é a visão de que Sérgio Sombra e Celso Daniel tiveram uma ruptura depois que o segundo foi nomeado para a campanha de Lula. Há muitos sinais na direção contrária. Os dois eram amigos de longa data. Sombra chegou a mostrar-se companheiro de Daniel até mesmo nas ocasiões em que o prefeito enfrentava crises em casamentos e relações mais passageiras. Nos meses anteriores à sua morte, Daniel estava ampliando as atribuições do amigo, federalizando sua atuação no partido. Comparecia em encontros fechados de dirigentes do PT, com Sombra a tiracolo, para falar de fornecedores e investimentos nas prefeituras. Para quem sabia do que acontecia nos bastidores do partido, Celso Daniel estava subindo — e ia levar o tesoureiro junto.
É um fato estabelecido que a amizade com Celso Daniel modificou o patrimonio de Sergio Sombra — para muito melhor. Ele era um agente de segurança. Virou empresário, com negócios e empresas que o olho clínico de quem conhece a corrupção política brasileira costuma associar a negócios com a adminstração pública.
Por parte de Celso Daniel, havia um sentimento de gratidão pela presença de Sombra. Um dirigente do PT recorda que o desembaraço de Sombra para procurar recursos junto a empresários do ABC salvou Daniel de uma derrota certa numa de suas últimas campanhas. Por parte de Sombra, havia um sentimento correspondente. Um policial que conheceu os dois, muito antes do crime, me disse que havia ali uma amizade verdadeira entre bons amigos.
Mesmo ignorando este aspecto, e reduzindo toda a convivência a interesse, ambição e jogo baixo, há uma pergunta difícil de responder: por que Sombra iria matar sua galinha dos ovos de ouro?”
Confesso que até hoje não encontrei uma resposta aceitável para essa questãoPaulo Moreira Leite
Jornalista desde os 17 anos, foi diretor de redação de ÉPOCA e do Diário de S. Paulo. Foi redator chefe da Veja, correspondente em Paris e em Washington.Sphere: Related Content
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