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domingo, 23 de janeiro de 2011

Neschling: "A história vai ligar cada vez mais a Osesp a mim"


Na segunda parte da entrevista exclusiva, o maestro John Neschling, que se prepara para deixar o Brasil, fala da mágoa com a orquestra que ajudou a criar

Rodrigo Levino
Maestro John Neschling

(Lailson Santos)

"Não é possível criar uma orquestra “à brasileira”, isso não existe. A orquestra é uma instituição que funciona há 200 anos da mesma forma e isso requer ordem"

O maestro John Neschling foi um dos principais responsáveis - se não o principal - pela transformação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) numa instituição de renome internacional. A relação, no entanto, terminou de maneira conflituosa.

Neshling foi demitido da orquestra em 21 de janeiro de 2009. Desde então, move um processo contra ela, a título de indenização trabalhista.

A demissão, recebida por e-mail, foi assinada pelo ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso, presidente do conselho da Fundação Osesp. O texto alegava “conduta indesejável e inconciliável com o desempenho das atribuições contratuais”. A relação tinha se esgarçado ao ponto do inconciliável depois de uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo em que Neschling reclamou da maneira como sua sucessão era tratada - a seu ver, com açodamento..

Acuado por atritos públicos com o então governador José Serra (a quem chamou de autoritário e mimado num áudio clandestino vazado por seus subordinados), com os membros do conselho da Fundação Osesp e com os músicos, Neschling anunciou em junho de 2008 que não tinha intenção de continuar à frente da orquestra, mas fazia questão de conduzir sua sucessão. O contrato terminava em junho de 2010. O maestro foi abatido em pleno vôo.

“Não me foi dada sequer a oportunidade de voltar a Sala São Paulo e me despedir dos músicos. Um ato de violência”, repetiu Neschling à reportagem de VEJA, na sala do seu apartamento de decoração espartana, num bairro nobre de São Paulo.

A primeira sentença favorável ao pleito do maestro saiu em 18 de novembro de 2009 e a orquestra foi condenada a pagar 4,3 milhões de reais. A batalha segue em instâncias superiores.

Quando indagado sobre o seu personagem de ópera preferido, o maestro John Neschling responde de pronto: “Falstaff”. Protagonista de uma peça criada pelo italiano Giuseppe Verdi numa adaptação do texto de As Alegres Comadres de Windsor, de William Shakespeare, Falstaff é um patife bonachão que tenta ludibriar duas damas casadas. Ao fim do espetáculo, o coro entoa “ma ride ben che ride la risata final”. Levado ao dito popular, “ri melhor quem ri por último”. É o que pretende o maestro.

O senhor ainda vê a Osesp como uma criatura sua? Evidentemente que sim. Só que uma criatura que esta independente. Não vive mais na barra da minha saia. A Osesp é como um filho que brigou com o pai e o pai está satisfeito por vê-lo bem casado, bem empregado.

O senhor voltaria à Sala São Paulo para assistir a um concerto da Osesp? Não vejo nenhuma razão para isso. Eu acho que nesse momento há tantas coisas que interferem na relação -- que poderia ser normal -- que não vale a pena ficar remexendo num caldeirão de ressentimento e mágoas. Serviria apenas para levantar o pó. Inclusive porque eu travo uma batalha judicial com a orquestra.

Existe algum contato entre o senhor e os músicos da orquestra? Absolutamente nenhum. Zero. E não desejo ter nenhum contato com eles.

Já encontrou-se com algum dos membros do conselho que o demitiu? Não, nem quero. Eu estou processando essa gente e ganhar o processo é o meu único interesse em relação à Osesp, até como formar de purgar os pecados que cometeram.

Quais pecados? Uma pessoa que foi tratada como eu fui tratado pelo conselho da Osesp depois de doze anos de dedicação integral e absoluta na qual eu efetivamente transformei a orquestra num ícone desse país é frustrante. Eu fui expulso por e-mail, não pude voltar à Sala São Paulo para falar com os músicos. Além do que, existe um processo continuado de querer me apagar da história da orquestra como se ela tivesse surgido por geração espontânea.

Numa entrevista a VEJA o senhor disse que reger a Osesp era uma atividade de grande precisão e pressão psicológica. Como é viver sem esse aparato e sem essa responsabilidade? É claro que eu fiquei chateado, magoado, triste. Mas isso, como tudo na vida, vai se depurando. Eu não tenho nenhuma saudade de reger, de conviver com os músicos.

Qual o sentimento do senhor em relação a Osesp? O primeiro ano foi um ano de grande mágoa, mas hoje eu entendo que de que tudo aquilo que eu porventura poderia desejar de mau, não desejo mais. Eu desejo o sucesso da Osesp.

O senhor acha que a orquestra tem caminhado bem sem o seu comando? Eu passei doze anos moldando a orquestra, escolhi a dedo os músicos que estão lá – e não houve uma substituição sequer depois da minha saída. Mas acho que nada se resolverá da noite para o dia. Quando eu sai, previ que a situação em relação a um novo maestro se resolveria no mínimo até 2013. Estamos em 2011 e até agora não se sabe quem vem, como vai ser.

Por que o senhor acha que se dá essa dificuldade? Porque os maestros realmente interessantes precisam de um atrativo muito forte, alem do financeiro, para virem para cá. No mínimo o que pagavam a mim (cerca de 100 mil reais por mês) ou muito mais, além do atrativo de carreira para eles. Tem que saber que eles vão gravar, o que vão fazer. Os grandes prêmios da Osesp foram ganhos comigo e ela continua colhendo frutos da minha gestão.

A Osesp conseguirá se desvencilhar do seu nome? É impossível nos dissociar. A história vai ligar cada vez mais a Osesp a mim.

Baseado no que o senhor afirma isso? Ora, eu criei uma orquestra do nada, encampei a construção de uma sala de ensaio de primeira grandeza. Eles sabem que eu elevei os músicos a um novo patamar. Agora eles estão, como diz Freud, sublimando tudo, não querem saber do passado, negam a realidade como se tudo aquilo e eu não tivesse existido. Mas tem uma hora que o pai volta a ser amado e pode ser que as coisas voltem às boas.

O senhor voltará a reger a Osesp? Não digo que nunca mais. Neste momento eu não vejo nenhuma condição, nem tenho vontade. Mas quem sabe daqui a cinco, dez anos mude tudo. Não agora.

A lembrança de algum episódio específico ainda o magoa? O episódio do Youtube, quando vazaram um áudio de uma conversa durante um ensaio, foi o que me deixou mais marcado. Foi uma profunda traição das pessoas a quem eu tinha ajudado. Eu soube durante um concerto na Argentina. Eu sempre tratei muito bem a todos eles. Posso ter sido violento durante os ensaios, mas a minha relação com cada um foi paterna.

Como o senhor avalia, dois anos depois, o episódio da demissão e a forma como ela se deu? Alguns membros do conselho me traíram de verdade, fizeram política mais do que cultura. Alguns foram omissos, outros entraram de gaiatos e uns dois ou três trabalharam efetivamente pela minha saída e continuam trabalhando contra mim.

Quem, na opinião do senhor, “entrou de gaiato”? O Fernando Henrique Cardoso. Pelo que eu conheço dele, jamais tomaria uma decisão dessas, de me demitir por e-mail, se não fosse uma orquestração. Acho que no fundo ele é um homem de bem. Eu posso estar enganado e ele ter sido um dos piores no caso, mas não é essa percepção que tenho. Ele está a milhas de inteligência de todos do conselho.

Mas o movimento foi apoiado pelos músicos, seus subordinados, que o acusaram de maus tratos. O problema é que nunca houve um histórico de disciplina. Não há uma tradição de trabalho serio em música no Brasil. E isso não é uma característica que eu impus. Eu apenas trabalhei como se deve trabalhar. Não é possível criar uma orquestra “à brasileira”, isso não existe. A orquestra é uma instituição que funciona há 200 anos da mesma forma e isso requer ordem. Foi o que eu fiz e dei a todos eles, quando lutei por condições dignas de trabalho e salários justos, o retorno da minha disciplina. O projeto em si me é muito caro e a mágoa passou, mas eu quero distancia daqueles camarins, da minha ex-sala.





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