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sábado, 25 de dezembro de 2010

A morte de Orestes Quércia

. Ou: o homem e as circunstâncias de um país

Interrompo o meu descanso para deixar registrada a morte de Orestes Quércia, ex-governador de São Paulo. Estava internado no Hospital Sírio-Libanês desde o dia 18 de novembro para se tratar de um câncer na próstata, doença que teve recidiva 10 anos depois da primeira manifestação. Quércia já foi vereador, prefeito de Campinas, senador, deputado estadual, vice-governador e governador de São Paulo entre 1987 a 1991. Neste ano, chegou a lançar a sua candidatura ao Senado, despontando com um dos favoritos, mas renunciou em favor de Aloysio Nunes Ferreira (PSDB) para tratar da saúde.

Os mais moços talvez o ignorem, então eu procedo aqui a um misto de história e memória. Em 1974, eu tinha 13 anos e começava, sabe-se lá por artes de que destino que se vai desenhando nas sombras de nossa vida, a me interessar por política. Um dia, fui comprar óleo de litro para a minha mãe — o produto chegava em grandes tambores, de onde era tirado por um pistão; óleo em lata era coisa de rico… —, e a parede da venda (assim chamávamos os armazéns de periferia) estava pichada: “Povo armado derruba a ditadura”. Que diabos queria dizer aquilo mesmo? Procurei saber. Menos de dois anos depois, estava metido num grupo de influência trotskista, de que um padre (!!!) era um dos chefes. Por que isso?

O ano de 1974 marca a primeira grande derrota do regime militar. —E NÃO ERA PELAS ARMAS. A crise do petróleo, de 1973, trouxe junto a inflação e o desgaste do governo. Essa patuscada nacionalista do governo Lula é repeteco daquele período; hoje, é o pré-sal; em 1970, foi a adoção das 200 milhas ao mar territorial brasileiro. Houve até uma música que marcou o período, que fez imenso sucesso da voz de Eliana Pittman. Antes de Lula culpar as pessoas “de olhos azuis” pela crise de 2009, o país já havia mandando os “pescadores de olhos verdes” pescar em outras águas. Leiam:

Esse mar é meu,
Leva seu barco pra lá desse mar.
Esse mar é meu,
Leva seu barco pra lá.
Vá jogar a sua rede das 200 para lá.
Pescador dos olhos verdes,
Vá pescar em outro lugar.

Esse mar é meu,
Leva seu barco pra lá desse mar.
Esse mar é meu,
Leva seu barco pra lá.
E o barquinho vai,
O nome de cabocleira
Vai puxando a sua rede
Da vontade de cantar.

Tem rede amarela e verde
No verde azul desse mar.
Esse mar é meu,
Leva seu barco pra lá desse mar.
Esse mar é meu,
Leva seu barco pra lá.

Obrigado seu Doutor pelo acontecimento,
Vai ter peixe, camarão,
Lagosta, que só Deus dá
Pego bem a sua idéia,
Peixe é bom pro pensamento.
E, a partir desse momento,
Meu povo vai pensar.

Esse mar é meu
Leva seu barco pra lá desse mar
Esse mar é meu
Leva seu barco pra lá

A crise do petróleo desconcertou e desconsertou a “poesia” do Brasil potência. Em 1974, disputaram-se 21 vagas para o Senado Federal. O MDB, partido oficial da oposição, fez 16; a Arena, a legenda do regime, apenas 5. Orestes Quércia, aos 36 anos, elegia-se por São Paulo, então, o mais jovem senador do país, desbancando um nomão da política do Estado, o ex-governador Carvalho Pinto. Fazia o estilo “bonitão do interior”. Com suas grandes costeletas, muito influentes à época, ar de bom moço, era o preferido das avós, mães e tias: um oposicionista com cara de rapaz de família. Elegeram-se, naquela safra, Paulo Brossard (RS), José Richa (PR), Mauro Benevides (CE), entre outros.

Dez anos depois da deposição de João Goulart, o regime recebia um sinal. Ernesto Geisel, que estava no poder havia menos de um ano, percebeu que era hora de começar a articular uma transição lentíssima e seguríssima. Em abril de 1977, o presidente fecha o Congresso e impõe uma espécie de miniconstituinte para blindar o governo de uma derrota certa nas eleições de 1978: cria os chamados senadores biônicos. Um terço do Senado seria, como foi, na prática, indicado por Geisel. É com este Congresso sob controle que Geisel dá início à política de abertura e que se acolhe, por exemplo, a Lei da Anistia, que seria aprovada em 1979. Começava, então, a transição para a democracia.

Faço um pouco de história factual, com algum apelo à mentalidade do período, para deixar registrado que Quércia, de biografia controversa, para dizer pouco, teve papel importante na construção da democracia no Brasil. O fortalecimento do MDB em São Paulo foi fundamental para enfraquecer o regime. O partido reelege Franco Montoro senador em 1978, tendo FHC como candidato da sublegenda. Em 1982, Montoro faz-se governador em eleições diretas, tendo Quércia como vice. O apoio de São Paulo ao movimento em favor das Diretas Já, em 1984, trouxe a certeza de que a democracia era inevitável. Em 1986, Quércia era eleito governador do estado.

A outra face da moeda
No governo, Quércia se caracterizou por ser um tocador de obras, dando especial atenção ao interior do Estado. De tal sorte tomou conta do já então PMDB que uma fração do partido, em São Paulo, decidiu se desligar da legenda para fundar o PSDB. Embora estivesse sem exercer cargo público desde 1991, o ex-governador continuou como a grande liderança do PMDB do Estado.

Embora político desde a juventude, Quércia se tornou um empresário de sucesso, atuando em múltiplas áreas, inclusive comunicação. As muitas acusações de corrupção — sem condenação nenhuma, diga-se — e a suspeita de enriquecimento ilícito dificultaram a sua carreira. Encerrado o seu mandato de governador, tentou, sem sucesso, a Presidência da República em 1994, o governo do Estado em 1998 e 2006 e o Senado em 2002, o que fez de novo em 2010 — estava entre os favoritos quando renunciou para tratar da saúde.

O homem que teve um papel sem dúvida importante no processo de redemocratização — não se conhece um só flerte seu com teses autoritárias — deixou, no entanto, um passivo ético considerável, o que, e aqui entram a história e suas ironias, serviu de bandeira para a luta do PT de São Paulo, que tinha Lula como a sua maior expressão e José Dirceu como o seu grande operador. Enquanto Quércia deu as cartas na política paulista, os petistas foram seus algozes implacáveis. A atuação do partido contribuiu de modo definitivo para liquidar as chances eleitorais do político que surpreendeu o regime militar em 1974.

O que a história e suas ironias nos mostram? Morreu na manhã deste 24 de dezembro de 2010 um amador nas artes em que o PT se tornou especialista juramentado — e, nesse particular, nem um nem outro merecem perdão. Quércia, ao menos, nunca flertou com teses autoritárias. O mesmo não se pode dizer sobre os petistas.

Por Reinaldo Azevedo
Trajetória de Orestes Quércia - Galeria de fotos - VEJA.com

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