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quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Para ressuscitar desta hecatombe Marta terá de respeitar eleitores

Um tiro no pé de salto alto

José Nêumanne


Luiz Inácio Lula da Silva (PT) demonstrou muita sagacidade quando disse, ao votar em São Bernardo, que ele mesmo não foi derrotado na eleição de domingo, já que nenhum candidato falou mal dele explicitamente. Foi esperto, mas também foi verdadeiro. Da mesma forma como verdadeira é a afirmação de seu principal adversário político hoje no País, José Serra (PSDB), ao constatar, de forma cartesiana e quase acaciana, que o presidente não foi derrotado, pois não foi candidato. René Descartes e o conselheiro Acácio usariam o argumento para concluir que, por igual razão, o governador de São Paulo não pode ser apontado como o maior vitorioso no pleito de domingo. De fato, o maior dos vencedores foi o prefeito Gilberto Kassab (DEM), que esmagou sua adversária, a ex-prefeita Marta Suplicy (PT), sob uma avalanche impressionante, ao estabelecer uma vantagem de 1,3 milhão de votos sobre ela, superando o feito de Serra quatro anos atrás.

Esta só será, porém, uma meia-verdade se quem a proferir não reconhecer a participação efetiva do titular da chapa pela qual Kassab chegou à Prefeitura da capital há dois anos. A gestão municipal atual atende pela denominação Serra-Kassab pelo óbvio motivo de que, mesmo sendo de partidos diferentes, o prefeito reeleito manteve as diretrizes do antecessor em praticamente tudo, a exemplo do que Geraldo Alckmin havia feito no Estado com o legado que recebeu de Mário Covas. Mas entre reconhecer esta obviedade e estabelecer qualquer conexão entre os resultados municipais e o que ocorrerá nas campanhas estaduais e federal de 2010 vai uma larga e tortuosa distância. Kassab poderá até cumprir sua promessa de trabalhar pela candidatura do tucano à Presidência, mas não basta ter triunfado agora para vir a ungir sozinho o vencedor de daqui a dois anos. Jânio derrotou Fernando Henrique numa eleição municipal, mas se aposentaria depois, enquanto o derrotado seria duas vezes presidente da República. Maluf elegeu-se prefeito e fez de um poste chamado Pitta o sucessor, mas nem por isso voltou ao governo do Estado pelo voto ou teve condições de disputar para valer o troféu federal. Serra ganhou a disputa estadual saindo da Prefeitura, mas só isso não bastará para realizar suas altas pretensões.

Quanto a Marta, bem, a ex-prefeita acaba de mostrar que tem alguma dificuldade para perceber os fatos políticos e aprender com eles. Há quatro anos ela era aprovada pela maioria do eleitorado no dia da eleição, mas perdeu-a para o ex-ministro da Saúde que, dois anos antes, havia sido derrotado por Lula na disputa pela Presidência. Em vez de fazer uma autocrítica penitencial de sua arrogância imperial, que era desconhecida da maioria dos paulistanos antes de sua plena exibição no exercício do poder no maior município do País, ela preferiu jogar a culpa da aparente contradição nas costas largas do eleitorado. Nunca teve coragem de dizê-lo explicitamente, mas se comportou de maneira a fazer crer que considerou a população ingrata por tê-la preterido ao mesmo tempo que a aprovava. E, após o fiasco nas urnas, correu da cidade, relegando-a à própria falta de sorte nos últimos meses da gestão, em fatídico exercício de uma vingança mesquinha e pouco inteligente. Teria contribuído para reduzir a alta rejeição que interrompeu uma gestão aprovada pela maioria se tivesse agido com mais humildade e sabedoria, purgando os próprios pecados para poder agora ressurgir das cinzas.

Beneficiária do hábito de Lula de dar prêmios de consolação a companheiros recusados pelo eleitor, assumiu o Ministério do Turismo e exibiu indelicadeza, desprezo pelo desconforto alheio e autoritarismo na famosa sentença - "relaxa e goza" - disparada contra as vítimas do Caos Aéreo Nacional, de plena responsabilidade do governo federal. A frase teria tudo para ornar sua lápide política se não fosse pelo fato de o forte PT não ter outro nome para a Prefeitura e ela e seus companheiros acreditarem piamente na amnésia crônica do eleitorado. Erraram: estilhaços da frase infeliz a prejudicaram.

Mas os tucanos ajudaram o PT a avaliar mal as chances dela quando, numa insensibilidade incrível, lançaram candidato próprio numa disputa que até os postes sabiam que se travaria entre Marta e o prefeito. Isso, porém, não ficou claro no início da campanha porque o eleitor não identificava a gestão municipal, que aprovava, com Kassab, mas com o número um da chapa dos dois em 2004, Serra. Só que um eficiente trabalho de comunicação, capitaneado pelo jornalista Luiz Gonzalez, tratou de colar a figura do prefeito na gestão. Alckmin ajudou na tarefa: além de se pretender candidato da situação se opondo ao prefeito, um breve contra a lógica, o ex-governador mirou neste para garantir a passagem para o segundo turno e, então, se aproveitar da rejeição da ex-prefeita. Com isso ajudou a fixar na memória do eleitor a identificação de Kassab com a gestão iniciada por Serra. Tudo funcionou com tal sincronia que, para espanto generalizado, Marta, que chegou a pensar em ganhar no primeiro turno, ficou em segundo, com Kassab à sua frente. Esta surpresa desestabilizou a campanha dela a ponto de levá-la a estraçalhar o próprio currículo de defensora das minorias ao permitir em sua propaganda eleitoral uma insinuação insidiosa sobre o estado civil e a falta de prole do adversário: um tiro no pé calçado em salto alto.

O sórdido lance sibilino pode até não ter produzido todo o efeito maligno que se imagina na avalanche de votos que sepultou suas intenções de voltar à Prefeitura já. Devem-lhe ter sido mais fatais sua fé na transferência de prestígio de Lula para ela e a estratégia estulta, do ponto de vista da comunicação, de "desconstruir" o adversário atribuindo os próprios preconceitos ao eleitorado. Agora, para sobreviver a esta hecatombe Marta terá de aprender a respeitar os adversários e, sobretudo, os eleitores.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista
do Jornal da Tarde

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