Ubiratan Brasil
da Agência Estado
A Gryphus relança o livro Nação Crioula do escritor angolano José Eduardo Agualusa. O livro, que homenageia o escritor português Eça de Queiroz, a partir da correspondência do português Carlo Fradique Mendes
17/02/2007 01:34
JOSÉ Eduardo Agualusa, escritor angolano, criou, no final do ano passado a editora Língua Geral/ FOTO DIVULGAÇÃO
JOSÉ Eduardo Agualusa, escritor angolano, criou, no final do ano passado a editora Língua Geral/ FOTO DIVULGAÇÃO
O livro Nação Crioula completa dez anos de publicação, para surpresa de seu próprio autor, o angolano José Eduardo Agualusa. "Nem dei conta de que já passou tanto tempo (é uma idéia um pouco assustadora)", comentou ele, em entrevista por e-mail. Sexto livro em uma carreira que já soma 15 volumes, o relançado Nação Crioula (Gryphus, 160 páginas, R$ 35) presta uma homenagem a Eça de Queiroz.
Trata-se da história de um amor secreto: a misteriosa ligação entre o aventureiro português Carlo Fradique Mendes - cuja correspondência Eça de Queiroz recolheu - e Ana Olímpia Vaz de Caminha, que, mesmo nascida escrava, tornou-se uma das pessoas mais ricas e influentes de Angola, no fim do século 19. Desenvolvido no formato epistolar (uma troca de cartas que envolve Ana Olímpia, Eça de Queiroz e outros personagens), o livro promove a mistura entre personalidades históricas do movimento abolicionista, escravos e escravocratas, além de lutadores de capoeira e pistoleiros, em uma luta mortal por um mundo novo.
Nascido em Huambo, Angola, em 1960, José Eduardo Agualusa é colaborador do jornal português Público desde a sua fundação: na revista dominical desse diário assina uma crônica quinzenal. Realiza o programa A Hora das Cigarras, sobre música e poesia africana, difundido aos domingos, na Antena 1 e RDP África.
Pergunta - Você é um admirador confesso de Eça de Queiroz e Nação Crioula tem como subtítulo A Correspondência Secreta de Fradique Mendes. Assim, é possível dizer que Queiroz é o ponto de partida para Nação Crioula? Como, de fato, surgiu esse livro?
José Eduardo Agualusa - O livro pretende ser uma homenagem a Eça de Queiroz, que foi quem me conduziu à literatura, isto é, foi a minha primeira grande paixão literária A idéia ocorreu-me numa ocasião em que, viajando pelo Nordeste do Brasil, comprei uma edição antiga d'A Correspondência de Fradique Mendes. Logo nas primeiras páginas, Eça explica ter conhecido Fradique Mendes depois de este ter regressado de uma prolongada viagem pela África Austral, mas não acrescenta nada sobre essa aventura. Na mesma época, eu andava muito entusiasmado com uma referência que encontrara, no diário de viagem de um médico inglês, a uma tal dona Anna Ubertali, que tendo chegado a Luanda como escrava veio a ser uma das pessoas mais ricas do país enquanto escravocrata. Juntei uma coisa à outra e deu a Nação Crioula.
Pergunta - A opção de uma escrita epistolar foi imediata? Ou surgiu depois de algum tempo? Isso tornou o trabalho mais difícil?
Agualusa - Agradou-me o desafio. Queria escrever um romance epistolar que, não obstante, fosse também um romance de ação. Claro que tornou tudo mais difícil, mas, por isso mesmo, muitíssimo mais interessante. A própria noção de tempo é diferente, porque o leitor tem a ilusão de que conhece tanto quanto o narrador - o breve tempo de uma carta. Para mim, cada novo romance é um desafio. Escrevo livros que, a princípio, me parecem impossíveis de ser escritos.
Pergunta - Fradique Mendes era essencial para o surgimento de Nação Crioula?
Agualusa - Não, essencial não era, mas vinha a calhar. Eu queria um olhar como o dele, de um europeu, carregado dos preconceitos próprios da época, mas ao mesmo tempo interessado no outro. O Fradique do Eça já é assim. O meu, evidentemente, é ainda mais aberto, quase um anacronismo.
Pergunta - O que lhe parecem as críticas que apontam o livro como uma defesa do colonialismo português?
Agualusa - Nunca ouvi essas críticas. Assim, não sei como se sustentam. Parece, à partida, uma completa imbecilidade. O livro não é apenas uma crítica ao sistema colonial, ou à escravatura - o que seria tão tolo quanto espancar um cadáver -, o livro pretende ser sobretudo uma crítica irônica à atual sociedade angolana, que em muitos aspectos é herdeira direta da sociedade escravocrata. Em Angola, muitos leitores reconheceram certos personagens e situações. O livro abriu uma polêmica sobre a questão da crioulidade e do seu alcance em Angola. A acusação que me fazem em Angola, isso sim, é a de defender um modelo crioulo para o país, o que também não corresponde à verdade. O que eu defendo é a existência de um segmento crioulo, de língua materna portuguesa, uma minoria muito expressiva de angolanos brancos, mestiços e negros, que têm o direito de exprimir a sua cultura, a par com todas as outras. Na época, esta posição era polêmica. Hoje é muito mais pacífica. O próprio presidente angolano, que aliás integra essa minoria crioula de língua portuguesa, produziu um importante discurso, no fim do ano passado, defendendo que a língua portuguesa deveria ser considerada língua nacional. Há dez anos isso seria algo impossível de defender publicamente - não obstante constituir-se uma evidência.
Pergunta - Esse tema, colonialismo, leva, aliás, a outros assuntos, como escravatura e, aproximando-se mais no tempo, a crueldades como as que se praticam nas guerras. Como você relaciona seu livro com essas questões?
Agualusa - Como lhe disse anteriormente, só é possível compreender o presente angolano compreendendo o passado. Tal como o Brasil, Angola mantém ainda muitas distorções que resultam diretamente do seu passado escravocrata.
Pergunta - Você tem dificuldade, por ser angolano, em tocar em questões de identidade nacional de seu país? O fato de ter vivido em Portugal e no Brasil lhe confere mais conforto para tratar desse assunto?
Agualusa - Essas questões estão no centro de todos os meus romances, como estão no centro de quase toda a moderna ficção africana. Isso é natural em literaturas que representam países jovens. Contudo, é preciso dizer que eu, como hoje a maioria dos jovens escritores africanos, reivindico o direito a me debruçar sobre qualquer território. Nós, africanos, reivindicamos o nosso direito à universalidade. Estive há poucos dias num encontro de escritores africanos, em Turim, na Itália, e esse foi o tom dominante. Por exemplo, Sami Tchak, do Togo, escreve romances ambientados em países da América Latina. Durante o encontro, ele manifestou a sua indignação pelo fato de lhe perguntarem por que um escritor africano escreve sobre a América Latina: "Um escritor europeu pode escrever sobre qualquer território - por que não um escritor africano?" Tem toda a razão. Há nisso uma forma encoberta de racismo - os europeus querem o mundo para eles, mantendo-nos a nós na senzala A um escritor europeu que escreva um romance sobre Angola elogia-se a capacidade de abertura em relação ao outro; mas se um escritor africano ou sul-americano decide escrever um romance sobre, eu sei lá, Maquiavel, logo aparece alguém a acusá-lo de alienado.
Pergunta - Comente, por favor, sobre a importância do humor em Nação Crioula.
Agualusa - Em toda a moderna literatura angolana, você vai encontrar o riso, vai encontrar a ironia, e creio que isso reflete a própria sociedade. Se existe algum traço comum ao caráter dos angolanos, é essa capacidade de troçar da própria desgraça e de fazer a festa mesmo em pleno luto.
Pergunta - O livro está para completar dez anos de publicação. Como o observa hoje, com essa distância temporal? Reescreveria algo?
Agualusa - Reescreveria, naturalmente. Aliás, tenho vontade de o reescrever. Só o não fiz até agora porque me encontro sempre com outros projetos novos nas mãos, e todos eles são muito interessantes.
Pergunta - Em qual livro está trabalhando agora? Pode adiantar um pouco da trama e o título, se já os definiu?
Agualusa - Estou a terminar um romance de viagens. A história de um músico angolano, Faustino Manso, que viveu em seis cidades da África Austral, desde Luanda, a capital de Angola, à Ilha de Moçambique, no norte de Moçambique. É um romance que mostra a África feliz, e festiva, a África que está a renascer depois de décadas de violência e má governança, e não obstante a terrível pandemia da aids. É um livro muito diferente dos anteriores, sobre música, magia, mulheres, a condição da mulher em África e mestiçagem. Estou a divertir-me muito. Acho que os leitores também se vão divertir. É uma viagem, este livro
Pergunta - Como você avalia a atuação da sua editora Língua Geral, primeira do País voltada exclusivamente a obras escritas em português, fundada no ano passado? Quais os próximos projetos? No que o público pode ter ajudado a apontar os caminhos da editora?
Agualusa - A Língua Geral ainda está em fase de afirmação. Creio que ganhamos a primeira aposta, a da visibilidade, num meio muito competitivo, graças sobretudo ao dinamismo e à alegria das minhas sócias, Fátima Otero e Conceição Lopes. Falta agora conseguir que os nossos livros cheguem a todos os seus leitores. Os próximos meses vão ser decisivos. Vamos lançar uma coletânea de contos sobre o carnaval outra de contos sobre homossexualismo, uma biografia de Amílcar Cabral, que foi uma espécie de Che Guevara, para melhor, muito melhor, africano e, mais para o meio do ano, alguns romances de novos autores portugueses, brasileiros e africanos. Acredito que alguns deles vão dar muito o que falar. Resumindo, estou entusiasmadíssimo. Além do mais, a Língua Geral dá-me um pretexto para passar mais tempo no Rio de Janeiro. E o Rio, apesar da violência, continua a ser a capital mundial da alegria Eu acredito que na mesma exata medida em que a mulher é o futuro do homem, como proclamou Aragon, também o brasileiro é o futuro da humanidade.
SERVIÇO
Nação Crioula. A Correspondência secreta de Fradique Mendes. De José Eduardo Agualusa. Editora Gryphus. R$ 35
Fonte: Jornal O Povo
domingo, 17 de fevereiro de 2008
Nação Crioula é relançado depois de dez anos
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