27 de dezembro de 2010 • 07h49
Quase metade da elite dos cargos de confiança da máquina federal é ocupada por sindicalistas. As informações são do jornal Folha de São Paulo, que noticiou nesta segunda-feira que, ao receber a faixa de presidente de Lula, no próximo dia 1º, Dilma Rousseff, que não é vinculada ao sindicalismo, terá de lidar com as pressões para a manutenção e a ampliação da cota dos cargos. Chega a 42,8% o índice de sindicalistas entre os 1.305 cargos de Direção e Assessoramento Superiores (DAS) e Natureza Especial (NES), segundo estudo da cientista política Maria Celina D'Araújo, da PUC-RJ.
Ainda segundo o estudo, 84,3% desses ocupantes são ligados ao PT. A remuneração desses cargos chega a R$ 22 mil. "Esse negócio de república sindical é bobagem porque o PT e a CUT (Central Única do Trabalhador) têm a mesma raiz. O próprio Palocci foi dirigente da CUT e ninguém fala dele", disse o presidente da central, Artur Henrique. Antonio Palocci chefiará a Casa Civil, sob cujo controle está a maioria dos cargos de confiança ocupados por sindicalistas. A Força Sindical e a CUT admitem "apreensão" em relação ao novo governo, mas elogiam a escolha de Gilberto Carvalho, atual chefe de gabinete de Lula, para a Secretaria-Geral da Presidência, canal de diálogo com as centrais.
"A polícia é parceira do crime" e "as milícias são o principal problema"
Uma cereja no bolo de Lula, dizem analistas sobre a conquista do Complexo do Alemão. Mas a polícia continua a lucrar com o negócio do narcotráfico
Há anos que Luiz Eduardo diz isto, o que ajudou a mudar as políticas brasileiras, mas no meio da euforia que rodeou a tomada do Alemão - considerado o reduto mais inexpugnável do Comando Vermelho, um dos grupos de traficantes do Rio - continua a haver necessidade de o dizer: "Vivemos sob uma hipocrisia que não reconhece a dimensão da degradação policial."
Pouca gente conhecerá o problema como este académico de 56 anos que levantou a cabeça dos livros para pôr as mãos na massa de várias formas, além de ter sido coordenador de Segurança Pública no Rio e depois, em 2003, secretário nacional de Segurança: mergulhou no mundo dos morros, ouviu moradores, activistas, traficantes, políticos, polícias, batalhões especiais, escreveu sobre eles e com eles, incluindo os dois livros que deram origem aos filmes Tropa de Elite, megassucessos de bilheteira, geradores de todo um debate.
"O meu avô era português", não resiste a dizer, para começo de conversa, sentado no bar de uma grande livraria do Rio. "Fugiu durante a I Guerra Mundial e chegou aqui sem nada."
Quase cem anos depois, o neto é "a" voz dissonante quanto à operação no Alemão, há um mês. Não se trata de "uma crítica à iniciativa do Governo, que apresenta características meritórias", mas sim "à forma como o Governo e os media brasileiros apresentaram o acontecimento", ressalva Luiz Eduardo. "O tratamento no Jornal Nacional da TV Globo, que tem extraordinário impacto no país, apresentava uma polaridade bem/mal, polícia/traficantes. De um lado as forças da ordem, do outro as da desordem."
Qual é o problema? O facto de essa polaridade não existir. "A polícia tornou-se um dos grandes combustíveis do tráfico. A tal ponto que não entenderíamos a história do tráfico sem levar em conta essa participação. O espectador terá dificuldade em perceber a polícia como parceira do crime, mas não se trata apenas de cumplicidade, é sociedade. Um padrão consolidado, em grande escala, tanto na Polícia Civil como na Polícia Militar."
A caveira do BOPE
E o BOPE, o célebre Batalhão de Operações Policiais Especiais, que faz parte da Polícia Militar, mas é uma unidade à parte, fardada de preto, com uma caveira por emblema? Quando o BOPE sobe o morro não é para morrer, é para matar, diz o capitão Nascimento em Tropa de Elite 1. Homens que acreditam estar mais duramente treinados que o Exército de Israel.
"O BOPE apresenta características singulares", distingue Luiz Eduardo. "Foi uma unidade muito violenta, perpetradora de execuções, mas honesta, a ponto de o justiciamento do colega corrupto ser uma prática. Transgressores da lei pela brutalidade, mas não pela corrupção." A passagem de 180 para os actuais 400 homens implicou "mudanças que expuseram o BOPE a reduzir a brutalidade e também a práticas de corrupção". Mas são "casos excepcionais".
Ao contrário do que acontece na polícia. "Existem 50 mil polícias activos no Rio, 40 mil da Polícia Militar e 10 mil da Civil", resume Luiz Eduardo. "Nesse universo, temos muitos milhares que actuam no crime de maneira sistemática. É uma relação permanente e orgânica. Os jornalistas não podem mascarar essa relação decisiva. No Rio de Janeiro não se trata só de recuperar esses territórios de traficantes e milicianos, mas de restaurar a polaridade. Claro que nunca teremos o mal só de um lado, mas trata-se de ter instituições cuja função é implementar a legalidade. A ocupação do Alemão tem sido conduzida com uma preocupação legalista, a postura geral é ouvir as denúncias de abusos policiais, e dar-lhes resposta. Há um movimento positivo, mas temos de encarar de uma vez por todas a questão policial."
Apesar de algumas denúncias de abusos policiais, tanto no Alemão como na Vila Cruzeiro a atmosfera geral entre os moradores depois da conquista era de satisfação. "A população sempre adora a polícia quando ela é respeitosa, e celebra uma presença que lhe garanta os direitos", diz Luiz Eduardo. Por si só, essa satisfação não significa que o problema da polícia esteja resolvido.
"O governador [do Rio, Sérgio Cabral] disse que eu estava sendo injusto porque mais de mil polícias corruptos já foram demitidos. Mas isso é um sintoma. Enquanto ele expulsa mil, a polícia continua fazendo tráfico de droga e de armas, violando os direitos humanos todo o tempo, alugando o Caveirão [blindado] para uma das facções. No Vidigal e na Maré [favelas] tem hora e local para os polícias venderem as armas. Ao dizer que expulsou mil, o Governo está dizendo que a polícia está de tal forma comprometida que mil foram expulsos. Muitos milhares estão pela frente. O tráfico só existe por conta de negociações com a polícia. Está acontecendo até hoje os policiais venderem as armas de volta aos traficantes. É assim que se faz tráfico de armas no Rio de Janeiro: por negociação com a polícia."
O BOPE não negoceia, mas ao ter deixado de aceitar rendição contribui para o aumento de armas, diz Luiz Eduardo. Como os traficantes sabem que não se podem render, que vão ter de lutar até à morte, isso "acaba empurrando os alvos do BOPE para técnicas cada vez mais belicosas".
Este antropólogo defende que o BOPE seja usado apenas para casos extremos, como era aliás a intenção de origem. "No Rio, a PM recebe 20 mil chamadas por dia. Dessas, 16 mil são conflitos não criminais. Só um por cento do total envolvem armas. E só parte dessas consistirá num enfrentamento numeroso. O BOPE é a unidade para isso, mas com muita frequência foi accionado para uma política de incursão, com a qual queremos acabar."
Na origem das UPP
Há uma mudança no Rio, sim, reconhece Luiz Eduardo, sinais de que a polícia, em vez da incursão sangrenta, chega para ficar, como tem acontecido nas UPP (Unidades de Polícia Pacificadora), que há dois anos se começaram a instalar e já estão em 13 favelas.
Mas as UPP - cerejas dos anos Lula - têm antecedentes, como os Mutirões pela Paz, unidades policiais propostas por Luiz Eduardo quando era responsável pela segurança. "Para o Governo é importante a marca da originalidade, e é verdade que eles estão a fazer melhor do que nós, mas nós não contávamos com o apoio entusiástico do então governador."
Já depois do Mutirão houve o GEPAI (Grupamento Especial de Policiamento em Áreas de Risco), conduzido por um oficial da Polícia Militar, Antônio Carlos Carballo Blanco, "a contramão da cultura corporativa da polícia", elogia Luiz Eduardo.
Este antropólogo faz ainda questão de prestar tributo ao coronel Nazareth Cerqueira, que foi comandante-geral da polícia do Rio: "Era um negro, defensor dos direitos humanos, muito respeitado, e começou a fazer um esforço para transformar a Polícia Militar." Morreu em 1999, assassinado por um polícia demente.
As UPP são "um aperfeiçoamento" de toda esta sequência de contributos, diz Luiz Eduardo, e a tomada do Alemão, tal como aconteceu, é uma consequência: "Em vez da invasão tradicional, fez-se tudo para evitar um banho de sangue. A ideia era entrar e permanecer, e essa é a tradição do Mutirão."
E as Forças Armadas devem envolver-se, como aconteceu no Alemão, onde agora vão ficar uns meses? "É importante que o Exército não seja usado para substituir a polícia, mas no caso do Rio justifica-se pela degradação extraordinária das instituições policiais."
Milícias: o perigo maior
De 2003 a 2009, diz Luiz Eduardo, "foram mortas 7854 pessoas pela polícia", mais de mil por ano. "Claro que todas são pobres, jovens, maioritariamente negros. Praticamente não há excepção. E a análise feita em 2003 mostra que 65 por cento dessas mortes foram execuções extrajudiciais. Isto é um recorde mundial. Temos polícias que são recordistas mundiais da brutalidade letal e polícias que formaram milícias."
Máfias formadas por ex-polícias que controlam territórios do Rio, as milícias são hoje o principal perigo, crê Luiz Eduardo.
Em entrevista recente ao PÚBLICO (11/12/2010), o chefe da Polícia Civil do Rio, Allan Turnowski, disse o mesmo, mas argumentava que 500 milicianos já tinham sido presos.
"Houve uma mudança de postura, o que foi um avanço", reconhece Luiz Eduardo. "Até 2008 o prefeito dizia que milícia era defesa comunitária, e Sérgio Cabral abraçava milicianos, com um discurso ambíguo. Até que ficou evidente que não era possível transigir com a violência das milícias. Agora, em função dos escândalos das milícias, as lideranças policiais assumem um discurso correcto."
Para dar uma ideia do que se passava antes, Luiz Eduardo cita o caso de Álvaro Lins, antigo chefe da Polícia Civil, condenado por ligação às milícias. "Um homem eloquente, sensível, bonito, que impressiona qualquer um. Imagine uma cidade como o Rio de Janeiro, com um galã inteligente condenado em todas as instâncias. Pode imaginar a penetração em todos os sectores da polícia."
O menu das milícias é extenso: "Tráfico de armas e de droga, lavagem de dinheiro, adulteração de combustível, adulteração de máquinas de moedas..." Além da actividade económica local, como as vans, as carrinhas que nas zonas pobres substituem os transportes públicos. "As vans são uma das maiores fontes de lucro. Em alguns casos, os proprietários são obrigados a contribuir, noutros os milicianos matam os donos e assumem o controle."
As barreiras de estrada com pagamento de "portagem" também são comuns. E depois há todo o esquema imobiliário nas zonas pobres e desamparadas. A milícia monta imobiliárias e vende apartamentos que não lhe pertencem. Mata associações de moradores que se lhe opõem, e "são sempre mortes com desfigurações, com armas muito potentes". E faz vendas de espaços públicos em favelas, atraindo moradores da Baixada Fluminense - nos arredores do Rio, uma das regiões mais pobres do Brasil - ampliando assim a favelização.
"A milícia é hoje o principal problema da violência no Rio. O envolvimento da polícia não se esgota nisso, mas esse é o envolvimento mais violento. São máfias, que penetram na política, nas instituições."
Tráfico desarmado
Nota positiva: o actual secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, considerado o cérebro por trás da operação do Alemão, inspira a Luiz Eduardo estas palavras: "Merece todo o nosso respeito. É um homem honesto, que luta com todas as suas forças para prender os maus polícias."
Já entre os traficantes, crê o antropólogo, a tendência é "anti-belicosa". Os traficantes sabem que morrem cedo, que não usufruem do dinheiro e que o modelo armado não vai resultar. "Sou pela legalização das drogas, mas, independentemente disso, imagine o que é para estes traficantes armar um exército e combater facções rivais. Numa sociedade como é hoje a brasileira isso vai tornar-se insustentável."
O México mostra isso: "Ou impõe um declínio do tráfico ou deixa de ser uma nação, porque o que está em risco é a soberania nacional. No caso do Brasil a escala é totalmente diferente. E imagine os custos para um rapaz de chinelo no dedo, sonhando com as suas glórias, vendo que todos os seus companheiros morrem antes dos 30 anos."
Luiz conheceu por dentro o caso de Lulu, Luciano Barbosa dos Santos, o líder da Rocinha, que lhe escreveu a pedir ajuda para sair do tráfico. "Eu respondi: "Tenho de te prender, mas espero que você mude." Ele fugiu da Rocinha, foi capturado pela polícia no Nordeste, trazido para o Rio. Aí recebeu um telefonema: "Quer viver?, Quer liberdade? Então retorne para o seu posto, precisamos que você produza tantos reais por semana, não podemos deixar de contar com você." Era a polícia."
Lulu acabou morto numa incursão do BOPE.
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