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quarta-feira, 11 de junho de 2008

Algo de podre no reino da conversa fiada

José Nêumanne


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com sua frigideira de teflon à mão, não desafia apenas o vernáculo, a ética, a história e a geografia. A lógica aristotélica também é esmagada pela oratória do chefe do governo e de seus aprendizes - entre os quais se destaca agora a que ele disse ungir como candidata à própria sucessão: Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil. Enquanto o mestre - que no comando da oposição infernizava a vida dos adversários no poder - reclamava do "falso moralismo", que produz "a banda podre da hipocrisia" da legislação eleitoral, que proíbe a viúva de gastar dinheiro de todos com apaniguados seus, a favorita negava ter pressionado a Anac a passar por cima da lei para facilitar a venda da Varig. Professor e aluna, escolados na velha prática das raposas de subordinar a razão ao império da versão, instituíram na política contemporânea nacional a certeza inabalável de que "contra argumentos não há fatos", mandados às favas junto com os escrúpulos.

Percebe-se que falta muito para a discípula imitar o mestre, como ele próprio reconheceu ao lhe recomendar que aprenda os fundamentos de uma característica de malandros e craques nacionais - o jogo de cintura, que caracterizava os dribles de Mané Garrincha e em cuja versão política ele mesmo é imbatível. As limitações impostas à contratação de pessoal e ao financiamento de obras em anos eleitorais pelas normas que presidem as eleições na democracia brasileira representam uma vitória colossal da cidadania sobre a fúria restritiva do Estado. Neste país, onde, infelizmente, a democracia se limita quase totalmente às disputas eleitorais, pela carência de instituições impessoais fortes para deter o mandonismo do presidencialismo irresponsável sacramentado na Constituição vigente, legislação e Justiça eleitorais são armas das quais o cidadão não pode abrir mão. Ao investir contra essas armas em nome da governabilidade, Sua Excelência recorre ao "conluio sedutor", definição exata do lingüista Frank Kermode, de seu discurso aliciante com a ignorância generalizada da platéia. Quem lhe interessa não se importa com o pleonasmo absurdo da hipocrisia má (qual será o lado bom?) nem com a cínica generalização que demoniza a moralidade para sacramentar os benefícios da ausência de qualquer moral, que, no fundo, é o que interessa.

Sem poder se socorrer da habilidade e da experiência e, sobretudo, sem o talento do professor, posta diante de fatos óbvios e chocantes, a discípula favorita apenas nega. E o tem feito como faria Paulo Maluf, mestre na arte de responder com banalidades a questionamentos incômodos. Ou como fez Paulinho da Força, que, ante a avalanche de evidências que o tornou um "sem-padrinho" nesta República de afilhados, apelou para os fantasmas das forças ocultas da elite que levaram Getúlio ao suicídio e Jânio à renúncia. Mas ela ficou longe do professor, que também aprendeu a usar essas desculpas amarelas, mas dispõe de um arsenal muito mais amplo de pretextos para contornar as evidências e adaptá-las às próprias conveniências.

Mesmo que tivesse sido submetido à perspicácia de Santo Agostinho e à morigeração de São Jerônimo, o negócio com a Varig é mais malcheiroso que os lixões fechados na Grande São Paulo recentemente. Ninguém precisa ser gênio em finanças para desconfiar de uma transação em que uma empresa às portas da falência teve sua subsidiária sadia comprada por US$ 48 milhões e foi adquirida pelos novos proprietários desta por US$ 24 milhões sete meses depois, para ser repassada a uma concorrente por US$ 320 milhões após oito meses. Traficantes de cocaína, contrabandistas de armas e milionários da máfia russa ainda não conseguiram entender como seus melhores "negócios da China" passaram a ser modelos de prejuízo se comparados a esta transação curiboca. É difícil encontrar exemplo mais radical de capitalismo selvagem na Chicago de Al Capone ou nos prostíbulos de Hong Kong. Qualquer fiscal da Receita que houvesse visto um filme dos Intocáveis teria fuçado os livros contábeis da Varig, da VarigLog e da Gol, protagonistas desse lance de magia que banaliza o milagre da multiplicação dos pães. No entanto, ninguém tugiu nem mugiu, porque tudo isso recebeu a unção do governo que está fazendo a maior revolução social do universo. Até que apareceu uma funcionária expelida do esquema e ela resolveu falar. Sabia-se, desde sempre, que o Houdini desse negócio maravilhoso foi um advogado de muito sucesso no mundo empresarial chamado Roberto Teixeira, amigo da família, compadre e generoso senhorio do presidente da República na época das vacas magras da oposição. Mas somente na semana passada alguém que acompanhou a transação por dever de ofício, a ex-diretora da Anac Denise Abreu, revelou ter sido pressionada pelo governo para avalizá-la.

Denise Abreu não é uma devota de Madre Tereza de Calcutá e talvez não se deva levar o que ela disse a este jornal ao pé da letra - justiça seja feita. Um problema é que o que ela contou foi, depois, confirmado por outras testemunhas. Outro é que ela diz ter documentos. O maior de todos os problemas do governo na história, contudo, é que até agora o alvo da denúncia, a todo-poderosa ex-guerrilheira e atual gerente-geral do governo Dilma Rousseff, não encontrou um único pálido argumento para desmontar a verossimilhança da história que ela contou. Para cruzar essa tempestade Lula pode até recorrer à frigideira (e não há antecedentes de piedade presidencial em episódios que comprometam a consistência de seu teflon) e ser bem-sucedido, como saiu do caso dos mensaleiros, por exemplo. Mas só se a Nação inteira for acometida de anosmia (falta de olfato) passará mais uma vez despercebida a podridão que exala deste reino da conversa fiada.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

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