Gilberto Freyre escreveu em suas autobiografias que, aos dezesseis anos, já tinha lido quase toda a obra de Eça de Queirós. Essa admiração pelo autor de Os Maias pode ser constatada nas inúmeras referências a Eça e a seus personagens, encontradas na vasta obra de Freyre e que apontam para as qualidades da análise sociológica de Eça, para o seu apego às tradições portuguesas ou para o seu hipotético regionalismo telúrico.
Segundo Sebastião Vila Nova:
Difícil não cogitar tenha Eça causado impressão indelével e influência marcante em quem o tenha lido tão jovem. Como um realista, embora não ortodoxo, Eça foi inevitavelmente um cronista de costumes, um ficcionista etnográfico e sociologista, ao modo de Balzac e, principalmente, Flaubert e Zola. Cabe, a esta altura, especular: em que medida o etnografismo ostensivo e o inevitável sociologismo, tão afiados em Eça, não terão despertado a inteligência e a sensibilidade do adolescente que viria a torna-se uma das mais penetrantes e refinadas expressões nos estudos sociais no Brasil? (2000,p.198)
Tomando como referência esse questionamento, tentaremos registrar pontos similares entre as obras de Eça de Queirós e de Gilberto Freyre, a partir da reconstituição da leitura que o escritor brasileiro fez dos textos do literato português. Uma primeira interpretação da obra dos dois escritores permite-nos estabelecer que Gilberto Freyre, um precursor no estudo do hibridismo cultural brasileiro, e Eça de Queirós tinham em comum uma visão que poderia ser designada por parte da crítica pós-colonialista como "transcultural": ambos escreveram obras que valorizam a tradição cultural de seus respectivos países, após terem tido contato com a de outros, considerados mais desenvolvidos.
É evidente que o adjetivo "transcultural" não pode ser, a rigor, empregado em relação a Eça de Queirós, já que o termo foi cunhado tempos depois de seus escritos, não havendo também entre Portugal e os centros de poder da Europa uma distância cultural tão grande quanto aquela presente nos meios coloniais que inspiraram a formulação do termo por Angel Rama. Mas acreditamos que sua aplicação no caso de Eça, ainda que um tanto impropriamente, e tendo isso em vista, pode gerar interessantes reflexões.
Tanto Gilberto quanto Eça afastaram-se de sua terra natal e a visão distanciada, a formação universal, permitiu um olhar sobre o regional a partir do "iodo da oceanidade", do "sal da universalidade" e de "valores transnacionais" (Freyre,1978, p.17). Ambos são simultaneamente cosmopolitas e regionalistas, modernos e tradicionais, conscientes dos valores universais, mas valorizando os locais. Enquanto o diplomata Eça se caracteriza ironicamente como apenas um "pobre homem de Póvoa de Varzim", Freyre, em entrevista à TV Cultura, de São Paulo, na década de 1970, afirmou: "Sou um brasileiro de Pernambuco. Gosto muito de minha província. Sou sedentário e ao mesmo tempo nômade. Gosto da rotina e gosto da aventura. Gosto dos meus chinelos e gosto de viajar."(Maciel, 2000, p.330).
Essa primeira hipótese sobre a semelhança do caráter sociológico de algumas obras dos dois autores, arquitetadas e escritas quando ambos estavam longe de sua terra natal, pode ser reforçada pela visão de Edward Said a propósito desse assunto, no ensaio "Reflexões sobre o exílio".
Embora talvez pareça estranho falar dos prazeres do exílio, há certas coisas positivas para se dizer sobre algumas de suas condições. Ver 'o mundo inteiro como uma terra estrangeira' possibilita a originalidade da visão. A maioria das pessoas tem consciência de uma cultura, um cenário, um país; os exilados têm consciência de pelo menos dois desses aspectos, e essa pluralidade de visão dá origem a uma consciência de dimensões simultâneas, uma consciência que - para tomar emprestada uma palavra da música - é contrapontística.
Para o exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro ambiente. Assim, ambos os ambientes são vívidos, reais, ocorrem juntos como no contraponto. (Said, 2003, p.46)
Partindo da leitura desse excerto, pode-se pensar que a mudança gradual da visão de Eça de Queirós em relação a Portugal poderia ser, em parte, atribuída a seu "exílio" na França. Sua longa ausência da pátria, interrompida por breves retornos, começa aos 27 anos, em 1872, quando assume cargos diplomáticos em diversas partes do mundo, conhecendo, inclusive, a trabalho ou simplesmente a passeio, regiões então colonizadas.
Ainda segundo Said (2003, p.54), nesse mesmo ensaio, a palavra "exílio" não seria a melhor a ser empregada no caso de Eça, e sim, mais apropriadamente, "emigrado" ou "expatriado", visto que se retirou para Paris, de certa forma voluntariamente, podendo, se assim o quisesse, desistir de suas funções diplomáticas a qualquer momento e retornar a sua pátria. Mas, se a definição da palavra não se ajusta rigorosamente à situação do escritor, com certeza, "o sentimento do exílio", sim. Sabemos que esse sentimento cria, no exilado, uma visão mítica, memorialista, essencialista de sua terra. Esse mesmo sentimento poderia ter sido a motivação que levou Gilberto Freyre a escrever, em 1922, na Universidade de Columbia, Nova York, sua dissertação para obter o grau de Mestre sobre a Vida social no Brasil nos meados do século XIX, texto embrionário daquela que viria a ser a sua principal obra: Casa Grande & Senzala.
A publicação de Os Maias, em 1888, foi considerada por Antonio Candido como o grande marco da mudança ideológica de Eça:
... Eça já não era mais o romancista urbanófilo das primeiras obras, como também já não era mais o socialista dos primeiros tempos: havia abandonado a linha da oposição e do sarcasmo integral. O colaborador d'As Farpas ¾ para quem a salvação do país estava na introdução do progresso técnico e científico, na liquidação do paternalismo agrário ¾ começara a se deixar invadir pela sedução do velho Portugal. Os seus romances irão revelar, pouco a pouco, um abandono do ponto de vista urbanista em proveito do sentimento rural; em proveito daquele mesmo passado que ele a princípio renegou integralmente.
Os Maias exprimem com nitidez este recuo ideológico. (1978, p.41)
... Nessa passagem da cidade para o campo Os Maias ocupam posição-chave, porque significam a liquidação definitiva da sociedade lisboeta, e porque na sua trama ressalta a quinta Santa Olávia como contrapeso e fonte de energia moral. O campo abastece a cidade de material humano. (1978, p.43)
Ainda que haja, a partir de Os Maias, uma postura mais complacente de Eça de Queirós com o povo português e seus hábitos, tão duramente por ele criticados em seus textos anteriores, ficcionais e jornalísticos, devido à sua estagnação cultural, política e econômica, frente ao progresso de outros países europeus, parece-nos que isso só acontece porque a cidade, e o referencial civilizacional, que representa começa a perder força dentro da obra de Eça. É menos complacência com o campo e com a cultura tradicional portuguesa, do que detração da cidade e decepção com a que seria a alta cultura européia.
Diríamos que a possibilidade de analisar seu país à distância, "a consciência contrapontística", pode ter provocado em Eça (e por que não também influenciado Gilberto Freyre?) uma reavaliação de seu julgamento em relação à tradição cultural, à história, e ao passado do povo português, considerando-o mais positivo em vista da negatividade que passou a encontrar no até então imaculado ideal europeu (ou melhor, francês e inglês) de civilização.
Escreve Said no mesmo ensaio: "Chegamos ao nacionalismo e sua associação essencial ao exílio. O nacionalismo é uma declaração de pertencer a um lugar, a um povo, a uma herança cultural." (2003, p.49)
Podemos também perceber que o escritor português, à medida que se afasta de sua terra, vai aguçar sua crítica à história da cultura de seu país, marcada desde o século XVIII por uma postura quase servil ou subalterna em relação a tudo que vinha dos países europeus situados além da Península Ibérica. Seu texto O francesismo (Queirós, 1947, v.XI, p.333-357), escrito entre 1887 e 1888, é capital para se entender essa sua nova fase: marcada por um forte aspecto sociológico, faz severas críticas sobre a mentalidade e as atitudes portuguesas afrancesadas, desde a culinária até o âmbito das idéias.
A partir da leitura do texto O conceito de transculturação na obra de Angel Rama, de Flávio W. Aguiar e de Sandra Guardini T. de Vasconcelos, notamos várias semelhanças entre a descrição da formação intelectual de Guimarães Rosa, Gilberto Freyre e, para nós, também de Eça de Queirós. Essa formação intelectual teria feito de Guimarães Rosa um "transculturador", segundo alguns teóricos dos estudos culturais. O referido modernista brasileiro foi descrito como "um escritor cuja formação foi profundamente marcada por essa experiência de mediação entre dois mundos, ou entre dois modos de vida, um rural e tradicional e outro urbano e moderno" (Aguiar & Guardini, 2003, p.4), que se formou lentamente nas artes da narração, leitor de assuntos como religião, literatura, filosofia, que correu o mundo como diplomata e "cuja mistura programática desses saberes" faz de sua obra "um espaço entre a modernidade urbana e a cultura tradicional-oral das comunidades rurais". (Aguiar & Guardini, 2003, p.5)
Levando-se em conta que Gilberto Freyre só não foi diplomata, a descrição acima poderia ser atribuída tanto a Freyre quanto ao escritor português. Não queremos aqui ousar empregar a mesma classificação de transculturador para Eça, já que essa denominação é normalmente empregada para artistas e intelectuais oriundos de países submetidos à colonização; mas, não deixa de ser instigante essa comparação entre Guimarães Rosa e Eça de Queirós, se pensarmos em Portugal como um país periférico, uma verdadeira colônia da Europa, cuja cultura "macaqueava":
... Bem mais justo era o horror que lhe inspirava, na vida social de Lisboa, a inábil, descomedida e palpava imitação de Paris. Essa "saloia macaqueação", superiormente denunciada por ele numa carta que me escreveu em 1885, e onde assenta, num luminoso resumo, que "Lisboa é uma cidade traduzida do francês em calão" ¾ tornava-se para Fradique, apenas transpunha Santa Apolônia, um tormento sincero. E a sua ansiedade perpétua era então descobrir, através da frandulagem do francesismo, algum resto genuíno de Portugal. (Queiroz, 1947, v.VI, p.388)
Eça acreditava que sua terra natal teria passado à condição de "colônia" econômica da Inglaterra, depois do Ultimato, em 1890. Será que o isolamento do escritor em seus últimos anos em Paris, tendo poucas amizades, quase restritas à de brasileiros lá residentes, como Eduardo e Paulo Prado, não viria a confirmar o "sentimento de exílio" a que se refere Said? Estaria na raiz da sua empatia com pessoas provenientes de um país colonizado, a consciência de que a sua condição de cidadão português não era muito diferente da deles?
Gilberto Freyre, no parágrafo inicial do prefácio à 1ª edição de Casa-Grande & Senzala, escreve sobre a gênese da obra, onde inclui a importância do exílio na sua elaboração: "Em outubro de 1930 ocorreu-me a aventura do exílio. Levou-me primeiro à Bahia; depois a Portugal, com escala pela África. O tipo de viagem ideal para os estudos e as preocupações que este ensaio reflete." (1975, p.lv). Mais adiante, comenta que, tendo sido convidado, em 1931, para ministrar alguns cursos na Universidade de Stanford, regressou da Califórnia a Nova Iorque através do Novo México, do Arizona e do Texas. Sobre essa experiência, escreve:
A todo estudioso da formação patriarcal e da economia escravocrata do Brasil impõe-se o conhecimento do chamado 'deep South'. As mesmas influências de técnica de produção e trabalho - a monocultura e a escravidão - uniram-se naquela parte inglesa da América como nas Antilhas e em Jamaica, para produzir resultados sociais semelhantes aos que se verificaram entre nós. Às vezes tão semelhante que só varia o acessório: as diferenças de língua, de raça e de forma de religião. (1975, p.lvi - lvii)
Concluindo essa linha de pensamento, lembremos também Abdala, ao escrever sobre o "(...) sentimento de exílio, de que se imbuía a intelectualidade brasileira: ao ir à Europa, Nabuco sente a ausência da pátria; se está no país, sente a ausência do mundo" (Abdala, 2002, p.46). Podemos, similarmente, empregar as mesmas palavras em relação a Eça e a Gilberto Freyre, confirmando neles a visão transculturadora:
... essa perspectiva de fronteiras múltiplas do homem dividido ou integralizado em pelo menos duas fronteiras, onde ele se desenraíza de sua terra de origem sem se enraizar na terra de origem dos outros, coexistindo com grupos sociais migrantes de outras culturas, pode favorecer a criação de hábitos críticos, em razão dessa contraposição de perspectivas. Através desses contatos e ausências, próprios de uma população nômade, em constante circulação e deslocamento, a identidade afirma-se ainda mais como vir-a-ser, sem um porto de chegada, permitindo o afastamento de mitologias essencialistas. (Abdala, 2002, p.46-47).
Eça de Queirós na formação intelectual de Gilberto Freyre
Segundo a reportagem de Cristiana Tejo "Centenário reacende ecite em Pernambuco", Paulo Cavalcanti, um dos maiores estudiosos do escritor português, considera Recife a cidade mais eciana do País. Nela se formou a Sociedade Eça de Queiroz, que desde 1948 promove reuniões para conversar e discutir a obra do prosador português, nos jantares Ecianos do Recife. Citando ainda o artigo:
Até a década de 50, eram os brasileiros os maiores apaixonados e estudiosos do escritor, febre chamada por muitos como ecite e que atingira não apenas grande parte da população mas também autores que se declararam influenciados por ele, como Martins Pena, Martins Fontes, Olavo Bilac, Domício da Gama, Eduardo e Paulo Prado e outros notáveis admiradores como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, José Lins do Rego. (Tejo, 2000)
Gilberto Freyre, freqüentador assíduo das rodas intelectuais pernambucanas, parece ter se contaminado pela ecite já em sua casa, pois o ensaísta comenta a presença de Eça em sua formação intelectual, desde a infância: o autor de Os Maias figurava entre os preferidos do Professor Alfredo Freyre, pai de Gilberto, como este evoca:
Seus clássicos prediletos eram Camões, Frei Luís de Souza, Castilho e Herculano. Dentre os brasileiros, Vieira. Mas sem deixar de saborear o seu Oliveira Martins, o seu Ramalho Ortigão e o seu Eça, a quem perdoava os galicismos por amor ao que, no autor de Os Maias, era graça literária, ironia viva, coragem de crítica social. (Freyre, 1964, p.27)
No livro memorialista Tempo morto e outros tempos, em confissão registrada em 1916, revela o escritor brasileiro: "Mário Severo me aconselha Flaubert, que ainda não li. Eça já li quase todo; é o autor mais lido pelos estudantes da 'república' de Mário que me emprestou um livro de Eça que eu não conhecia: Prosas Bárbaras. Meu entusiasmo é pelo Os Maias." (Freyre, 1975, p.9)
Essa admiração se encontra em alguns de seus ensaios, como, por exemplo, quando Gilberto Freyre, expressando sua opinião sobre o assunto em pauta, busca legitimar seus argumentos em Eça, através da voz de Carlos da Maia:
Neste ponto me parece ter acertado com a verdade o Eça de Queiroz através do Carlos da Maia: o Carlos da Maia tão conhecido de tantos de nós, devotos daquele ouro Santo Antônio de Lisboa que se tornou para os brasileiros dos princípios deste século de pouca fé e de muita literatura, o "pobre homem de Póvoa de Varzim". (Freyre, 1965, p.88)
Esse entusiasmo com Os Maias e com a produção de Eça posterior a ela, incluindo-se a jornalística, é extremamente precoce, uma vez que toda a crítica portuguesa da época, como se pode verificar em Antonio José Saraiva, considerava os textos da segunda fase de Eça uma obra menor, um regresso ao nacionalismo romântico de Júlio Dinis. Provavelmente, as características sociológicas que o escritor português imprimiu em suas obras, já chamavam a atenção do jovem ensaísta.
Essa atenção pode ser percebida nas inúmeras referências ao autor português feitas por Gilberto Freyre, em seus mais diversos textos, principalmente em conferências e artigos publicados na imprensa. Observe-se, no excerto baixo, a admiração pela análise sociológica de Eça:
(...) desde os meados do século XIX a África negra tomaria também cores messiânicas aos olhos de portugueses com a velha fibra pioneira e o antigo gosto por aventuras nos trópicos -inclusive a aventura da evasão, da fuga, naquela época de afrancesamento e de anglicização das elites portuguesas - em revolta contra a proximidade, em que se passou a viver na metrópole, aos excessos mecânicos e aos requintes ao mesmo tempo técnicos, cientificistas e "decadentistas" em arte e literatura, da Europa. Excessos, estes, que seriam duramente ridicularizados por um escritor português de gênio, cuja figura avulta do Portugal da segunda metade do mesmo século XIX com um extraordinário relevo: Eça de Queiroz. E' que Queiroz, sob a aparência de simples diletante em torno de assuntos sociológicos e históricos relacionados com Portugal - os da especialidade do seu amigo e sob alguns aspectos, mestre, Oliveira Martins- fez às vezes, neste particular, obra de analista social arguto, e parece ter sido dos que começaram a compreender, no fim da vida, depois de ele próprio ter sofrido do mal do "francesismo" e um tanto de "anglicismo", haver no passado da sua gente constantes capazes de concorrerem, bem reorientadas e rearticuladas, para um rejuvenescimento português, que se processasse sob um novo sistema de relações dos portugueses modernos com aquele seu passado -com as sugestões mais fortes vindas daquele passado dinâmico: sugestões para contactos viris, másculos, renovadores, de portugueses com os trópicos agrestes: como os africanos e os sertanejos do Brasil, antes capazes de avigorar energias européias que de enfraquecê-las... (Freyre, 1957, p.2 )
Em 1942, Gilberto Freyre escreveu o prefácio à seleção que organizou de As Farpas, com o título "Eça, Ramalho como renovadores da literatura em língua portuguesa", fazendo uma leitura sócio-antropológica da obra. Esse prefácio foi revisto e publicado, em 1978, em Alhos & Bugalhos, com a seguinte proposta:
A revisão de seu valor literário e a revisão de seu valor social, os dois [Eça e Ramalho] tendo atuado como revolucionários, ou, antes, como renovadores não só das convenções estéticas da língua e da literatura como das convenções sociais do povo e da nação que criticaram duramente para afinal terminarem cheios de ternura patriótica e até mística pela tradição portuguesa. Um [Eça] revoltado contra o "francesismo" ou o "cosmopolitismo" que o afastara dos clássicos, da cozinha dos antigos, da vida e do ar das serras... (Freyre, 1978, p.15)
A partir da leitura integral desse texto, percebemos que Freyre lê no "sociólogo" Eça, algumas de suas próprias características como escritor, talvez até para legitimar seus textos como literários e não apenas como científicos, como foram classificados por parte da crítica. Sabemos que o ensaísta pernambucano não aceitou essa avaliação, escrevendo inúmeros artigos para defender o aspecto literário e humanístico de suas obras.
Podemos perceber que o autor, no referido prefácio de As Farpas (1978), pode estar se identificando com Eça nos seguintes aspectos:
1. A visão sociológica nas obras de Eça estaria evidente na
... Empatia que leva à identificação do autor com o conjunto de seres, coisas, valores arrancados de um pedaço não só de natureza bruta mas da cidade, do passado ainda quente ¾ passado já presente e um pouco futuro ¾ ou do remoto; e conservados vivos com a sua cor, sua seiva, seu nervo, no ensaio, no romance ou no poema. (Freyre, 1978, p.19)
Essa visão sociológica, sabemos, predomina na diversificada obra de Gilberto Freyre, inclusive em suas incursões literárias, como na poesia "Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados".(Freyre, 1962)
2. Ambos "arrivistas" ou "parvenus", expressões de Freyre no texto, quando distantes do país, conseguem enxergar o telúrico da terra e perceber melhor a importância das próprias tradições: "O regionalismo de telúricos acabou se sobrepondo ao universalismo de europeus e ultramarinos." (Freyre, 1978, p.18)
3. Haveria uma vigorosa identificação dos escritores, Eça e Gilberto, com o meio: "o solo, o clima, os aspectos da paisagem, o sexo, a idade, o temperamento, a idiossincrasia, a hereditariedade; influências sociais: as instituições, os costumes, a família, a educação, a profissão." (Freyre, 1978, p.19)
4. A importância da habitação como índice sociológico nas suas obras (Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos) aparece também, segundo o ensaísta, na de Eça:
(...) o sentido ecológico da vida: a casa ¾ ecos quer dizer casa ¾ em relação com o ambiente, com o meio, com a região, com o passado, com a existência inteira do homem. (...) De Eça não nos esqueçamos que o melhor e maior de seus romances é a história de uma casa de portugueses afidalgados: o Ramalhete. A casa é o personagem principal de seu romance (Os Maias). (...) Como n'A Ilustre Casa de Ramires (...). N'A Cidade e as Serras também (...). Aquelas casas, instituições, monumentos, colégios, solares, palácios, destampados pela sua bisbilhotice de dilettanti, meio-historiadores, meio-críticos, pela sua arte de romancistas e de ensaístas, casas de cujo interior se levantavam às vezes tão fortes maus cheiros de decadência e de corrupção (...). (Freyre, 1978, p.20-21)
Em diversos escritos, Gilberto Freyre defendeu a identificação das casas como fonte de investigação sociológica, como em Retratos de jornais velhos: "Os homens e os livros muitas vezes mentem. A arquitetura quase sempre diz a verdade através de seus sinais de dedos de pedra." (Freyre, 1964, p.19)
5. A ambigüidade de Eça em relação ao cosmopolitismo simultâneo ao apego à terra natal, apontada por Freyre em todo o prefácio, também é uma característica que se pode atribuir ao escritor brasileiro.
6. O ensaísta também nutria uma indisfarçável admiração por Oliveira Martins, historiador, sociólogo e economista do grupo realista português de 65, com quem Eça manteve forte correspondência durante toda vida:
Foi Oliveira Martins quem concorreu como ninguém para estabelecer ou pelo menos avivar entre Portugal e os dois escritores portugueses seus amigos [Ramalho Ortigão e Eça de Queirós], ansiosos de europeização, de universalização, de cientifização ¾ ânsia de que o próprio Oliveira Martins participava ¾, o contacto histórico, histórico-filosófico, histórico-sociológico.(...) Desses revolucionários, Martins foi, depois de Antero, a expressão filosófica mais nítida; e o mestre mais alto da aplicação da psicologia aos estudos portugueses de história e de crítica social. (Freyre, 1978, p.29)
7. Quando Gilberto Freyre defende o dilettantismo de que é acusada a obra As Farpas, não estaria ele também defendendo a sociologia funcionalista, que ele, Freyre, aprendeu com Franz Boas (pesquisa feita através da recolha de material não-canônico: conversações, estudos de casos particulares, relatos de histórias de vida etc)? Não seria também Eça de Queirós um incipiente nessa técnica, que depois seria amplamente empregada pelo por Gilberto Freyre? Escreve ele no prefácio de As Farpas:
A verdade é que nem só de especialistas e de acadêmicos vive a cultura de um povo, nem só por eles se enriquece; vive também dos dilettanti; se enriquece também com a atividade, as próprias audácias, os mesmos personalismos dos puros dilettanti e dos nada acadêmicos; ou dos indivíduos que reúnem à especialização científica e literária aquele humanismo ¾ a que tantas vezes é igual o melhor dilettantismo ¾ que permite ao especialista exceder-se à especialização. Aventura perigosa; mas cheia de possibilidades magníficas sempre que a anima um talento acima do comum, uma sensibilidade, uma visão, uma perspectiva, um sentido de totalidade capazes de extrair significados sociais e filosóficos da "cantiga de rua", da "página de romance", do bibelot, ao mesmo tempo que dos valores mais evidentes e mais nobres.
Foi o que fizeram Ramalho e Eça com a atualidade e um pouco com o passado de Portugal; foi o que fez Oliveira Martins com o passado e um pouco com a atualidade de seu país. (Freyre, 1978, p.29-30)
Considerações Finais
Procuramos resumidamente demonstrar que alguns pontos similares nas obras de Gilberto Freyre e Eça de Queirós não são frutos apenas da admiração do ensaísta brasileiro pelo literato português, mas o resultado de uma espécie de "metodologia do olhar", que aproxima os dois intelectuais na abordagem e representação que fazem da realidade, o que lhes propiciou um papel de transcodificadores de realidades culturais.
Esperamos ter ressaltado a relevância desse aspecto tão pouco explorado na produção cultural de Freyre, ao identificarmos características de um incipiente sociólogo funcionalista no escritor português, através da leitura que o sociólogo brasileiro faz da obra de Eça. Podemos dizer que esta é a maneira que Gilberto Freyre, desde muito jovem, encontrou para consagrar Eça de Queirós não apenas como literato, mas como um grande mestre: um respeitado ensaísta, um analista crítico da sociedade de sua época e um entendedor a cultura de seu país e da cultura global em que esta se insere.
Bibliografia
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CANDIDO, Antonio. Tese e Antítese - Ensaios. 3ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978.
FREYRE, Gilberto. A experiência portuguesa no trópico americano. México: Editorial Cultura, 1957.
___________. Alhos e bugalhos: ensaios sobre temas contraditórios, de Joyce a cachaça; de José Lins do Rego ao cartão postal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
___________. Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade, 1915-1930. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1975.
___________. Talvez poesia. Editora José Olympio,1962.
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MACIEL, Marco. O Século de Gilberto Freyre. In.: SEMINÁRIO INTERNACIONAL NOVO MUNDO NOS TRÓPICOS. Recife, 21 a 24 mar. 2000.
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SARAIVA, António José. As idéias de Eça de Queiroz. Lisboa, Centro Bibliográfico, 1946.
TEJO, Cristina. "Centenário reacende ecite em Pernambuco". Diário de Pernambuco,16.8. 2000. Texto disponível na Internet: http://www.institutocamões.pt/escritores/eca/reacendecite.htm [28/04/2003]
VILA NOVA, Sebastião. Eça de Queiroz e Gilberto Freyre: algumas aproximações. In.: SEMINÁRIO INTERNACIONAL NOVO MUNDO NOS TRÓPICOS. Recife, 2000.
Resumo
Alguns pontos similares nas obras de Gilberto Freyre e Eça de Queirós não são frutos apenas da admiração do ensaísta brasileiro pelo literato português, mas o resultado de uma espécie de "metodologia do olhar", que aproxima os dois intelectuais na abordagem e representação que fazem da sociedade, propiciando-lhes um papel de transcodificadores de realidades culturais. Inúmeras citações de Freyre apontam para as qualidades da análise sociológica de Eça, em quem via, desde muito jovem, não apenas o literato, mas um grande mestre: um respeitado ensaísta, um analista crítico da sociedade de sua época e um entendedor da cultura de seu país e da cultura global em que esta se insere.
Palavras-chave: Gilberto Freyre, Eça de Queirós, transculturação, análise sociológica.
Abstract
Some of the points of similarity in the works of Gilberto Freyre and Eça de Queirós go beyond the deep admiration of the Brazilian essayist for the Portuguese writer, being the result of both men having the same perceptions in the analysis and representation of the society, in their role of translators of different cultural realities. Several citations through Freyre's works point to Eça de Queirós acumen in sociological analysis. Gilberto Freyre, since an early age, saw him, not only as the writer but as a true master: a respect essayist, a critical analyst of his times, his country's culture and of the global culture of which it was part.
KEY WORDS: Gilberto Freyre, Eça de Queirós, transculturation, sociological analysis.
Autora:
Vania Regina Gomes, aluna de mestrado na área de Estudos Comparados de Literatura e Língua Portuguesa, sob orientação do Prof. Dr. Helder Garmes e professora de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Médio na rede particular de ensino.
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