Foi uma manhã de pesadelo para quem cedo madrugou para dar início a mais um dia de trabalho na baixa do Funchal. As ribeiras de João Gomes e Santa Luzia, face ao enorme caudal de água que recebiam ao longo de todo o percurso, acumulado com os deslizamentos de terra, começaram a transbordar junto à zona do mercado e também do Bazar do Povo, respectivamente, tendo a água invadido e inundado algumas artérias do Funchal, como foi o caso da Rua do Seminário, Fernão Ornelas, Largo do Pelourinho, Largo dos Varadouros, Avenida do Mar, assim como a zona velha, lançando o pânico entre os populares, alguns dos quais acabaram por ficar retidos nos edifícios, à espera de remoção.
Perante tamanha devastação, é mesmo difícil não pessoalizar aquilo que fomos vendo e assistindo ao longo do dia. Foi mesmo impressionante ver a forma como a água saltava do leito da Ribeira de João Gomes, quer em frente ao mercado, quer em frente ao restaurante Almirante. Uma mulher tenta a sorte, mas ao passar a ponte localizada em frente à Casa da Luz, é apanhada e derrubada por uma “onda” vinda da ribeira, que por esta altura tinha já o caudal ao nível da estrada. Levanta-se e coberta de lama foge, atordoada, em direcção ao Almirante Reis, onde no interior do parque, alguns condutores procuravam levar as viaturas para os andares cimeiros.
Desde logo, a nossa equipa de reportagem foi impedida de atravessar para a Rua do Anadia e a opção foi sair pela zona velha, numa altura em que a água já enchia a Avenida do Mar. O carro avançou devagar e a água dava já pela janela. A solução foi subir uma das transversais em direcção ao Liceu.
Daqui, seguimos em direcção ao comando da PSP onde, mesmo em frente, a ribeira também já galgava a estrada. Continuamos rua acima e já no Campo da Barca, nova demonstração do poder de destruição da ribeira. A ponte em frente ao posto da Repsol estava partida e o caudal derrubou os postes de iluminação, invadindo toda a zona e lançando água ao longo do toda a Rua João de Deus, que depois descia as transversais para a Rua do Carmo.
Perante tanto estrago, um grupo de polícias corre a pedir para que toda a gente “se salve” e escolha um local mais alto.
A nossa equipa continuou e fomos avançando até chegar à Rua Fernão de Ornelas, sempre com a água a meia perna. Mas, pouco depois, surge ordem de evacuação desta rua.
Na Ponte do Bettencourt, junto ao Bazar do Povo, muitos curiosos olhavam para baixo, onde observavam a ribeira a galgar a estrada com grande facilidade. O Largo do Pelourinho, por esta altura, estava já coberto de água, sendo que a Casa Santo António ficou submersa.
Junto ao Centro de Inspecções da Madeira, duas mulheres também foram apanhadas de surpresa por uma grande derrocada. Ainda tentaram retirar a viatura, mas foi já tarde de mais. Conseguiram, no entanto, escapar
Na zona do Vasco Gil houve pessoas que tentavam escapar dos locais da tragédia, mas as sucessivas derrocavas impediam de sairem do local. Muitos refugiaram-se em casas de vizinhos, sendo que alguns viram mesmo as suas casas destruídas.
Ao longo da Comandante Camacho de Freitas, vários corgos e ribeiros transbordaram e junto ao campo do Marítimo, a ribeira de Santo António destruiu quase totalmente um stand de venda de carros e arrastou vários veículos desde a o sítio da Ribeira Grande para Baixo.
No Galeão, o Ribeiro de Água de Mel também transbordou obrigando à evacuação de várias pessoas. Uma viatura foi arrastada pela força das águas com um casal e um bebé no seu interior. A bebé foi salva “in extremis” por populares.
A Avenida das Madalenas mais parecia um rio e o Sá foi inundado. Nos estacionamentos junto à universidade, os carros ficaram, submersos.
O drama foi maior na zona do Monte. Nas Babosas, a capela onde habitualmente se realizam os serviços fúnebres, acabou mesmo por desaparecer perante a enxurrada, situação que acabou por também atingir algumas residências. Várias pessoas acorreram ao local, e ainda conseguiram salvar algumas das estátuas religiosas do local.
Pior temporal de que há memória
Madeira assolada pela tragédia |
A Madeira foi ontem atingida pelo pior temporal de que há memória. A tempestade fez lembrar o fatídico mês de Outubro de 1993, em que numa enchente semelhante morreram cinco pessoas, mas desta vez os números foram tragicamente superiores. No final da tarde de ontem já estavam confirmadas mais de 30 mortes e o número de feridos ultrapassa a centena.
O Funchal e a Ribeira Brava foram os concelhos mais fustigados pela fúria da água que, na capital, galgou as margens das três principais ribeiras que cortam a cidade e fez elevados estragos – o Governo Regional admitiu ontem recorrer a apoios especiais da União Europeia para catástrofes -, destruindo pontes, carros, árvores, estabelecimentos comerciais, sinalética nas estradas e tudo o que encontrou pela frente.
Ontem, o cenário era verdadeiramente desolador. O JORNAL da MADEIRA esteve desde o primeiro momento no terreno, indo aos pontos mais castigados pelo mau tempo.
O movimento e os barulhos típicos de um dia normal da baixa da cidade haviam sido substituídos por um silêncio de uma cidade vazia, alagada, lamacenta, parcialmente destruída e coberta por um manto de entulho e materiais que as águas foram recolhendo ao longo dos leitos das ribeiras para depois cuspirem como lava de um vulcão junto às fozes.
Na Estrada Lusobrasileira, que liga a via rápida à Rua Dr. Pedro João de Ornelas, na Pena, foram registados um dos grandes dramas do temporal de ontem. No final da tarde, havia três mortes confirmadas e duas pessoas permaneciam desaparecidas. Dois veículos galgaram os muros de protecção na primeira curva, no sentido descendente, caindo sobre as casas. A água e o material inerte trazido foi em tanta quantidade que os veículos, pouco tempo depois, já estavam quase totalmente soterrados pela lama, madeiras e pedras. O taxista não conseguiu sair a tempo.
O carro onde seguia uma criança de cinco anos com os pais, não saiu fora da estrada, mas por pouco. O rapaz de cinco anos faleceu, a mãe continuava a ser procurada e o pai estava em estado de choque.
Noélia Figueira mora onde cairam os carros e escapou por pouco.
A senhora, que aparenta ter 60 anos, subiu os degraus com dificuldade, ajudada pelos Bombeiros Voluntários Madeirenses. Vinha a cambalear, as lágrimas misturadas com a água da chuva.
«Eu não vi nada. Eu simplesmente estava dentro de casa e senti um estalo, um estalo, um estalo, uma loucura, parecia o fim do Mundo. Não sei mais nada», relatou.
«Eu fiquei sempre dentro de casa mas depois saí para o quintal, lá para trás, não vi mais nada, não sei mais nada», declarou com agonia. Noélia Figueira só sabia que tinha perdido a casa. «Só sei que a casa está toda destruída. Toda», disse, a chorar.
A senhora estava preocupada com os seus animais – oito cães e um papagaio – mas subitamente as preocupações tornaram-se outras quando se apercebeu que não sabia onde estava o marido. Começou a chorar. Não conseguimos confirmar se o homem tinha sido encontrado.
Um pouco mais abaixo, ao longo da Rua Dr. Pedro João de Ornelas, mais conhecida por zona da Pena, quase três dezenas de carros destruídos davam uma ideia clara da força das águas, horas antes.
«Era 10h30 faltou a luz em casa. Eu ia ao supermercado mas o meu marido disse que seria melhor esperar que esteasse. Ele disse-me que estava muito vento, mas olhei para as árvores e não vi mexerem-se. Mas quando eu abro a janela do quarto do meu filho e olho para a rua, vejo o que parecia ser um mundo de água, com os carros a serem arrastados, impotentes face à força da massa de água».
Para esta moradora, uma mulher de aparentemente 40 anos, a estrada tinha-se transformado numa «autêntica ribeira».
A comparação que a senhora fez não terá sido tão exagerada assim. De facto, o nível de destruição dos veículos – até um carro dos bombeiros ficou arrasado – era bem demonstrativo da força da massa de água. Havia marcas de lama acima de um metro, o que não quer dizer que o caudal chegasse a esse nível. Mas estava bem visível o impacto da corrente.
No Caminho da Levada dos Tornos, uma derrocada terá destruído uma habitação, que nas intempéries anteriores já tinha sido parcialmente danificada. Nesta zona morreram um bombeiro e uma mulher, arrastados pela força da água.
Nenhuma das três ribeiras conseguiu conter a anormal quantidade de precipitação que caiu na madrugada de ontem.
Uma das imagens mais impressionantes da força da água terá sido registada na Ribeira de João Gomes. A água ultrapassou as margens da ribeira e transformou-se uma forte e revoltosa massa de energia que destruiu o que lhe apareceu à frente, inclusive a ponte junto ao Mercado dos Lavradores.
O Jornal falou com um grupo de pessoas que moram na Rua da Ribeira de João Gomes.
«Moramos próximos da Mercedes», disseram, aliviados por as suas casas não terem sido atingidas pelo mau tempo ou estarem em perigo.
Apesar de em 1993 terem morrido pessoas na zona e de nesta vez não, este grupo de pessoas garantiu que «nunca viram a força da água» ter tanta expressão.
«Em 1993 foi a ribeira que fez um desvio e a água veio para fora da ribeira. Mas agora o que estamos a ver é que a água galgou a ribeira. É impressionante», disse um dos moradores.
Entre este grupo estava uma mulher que em 1993 perdeu a sobrinha.
Aos poucos, os funchalenses começaram a reagir. Os moradores arregaçaram as mangas e começaram a limpar as suas casas, sobretudo as entradas, os jardins e os pisos do subsolo, como garagens ou caves.
Os estragos começam agora a ser contabilizados e o Governo Regional já anunciou um conjunto de medidas para responder à intempérie mais devastadora que a Madeira já assistiu nos últimos anos.
Palavras mais ouvidas junto do mercado dos Lavradores
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Salve-se quem puder. Eram as palavras mais ouvidas junto do mercado dos Lavradores. Muitos se refugiaram neste e tiveram de ser resgatados ao final da tarde quando as coisas começavam a melhorar. Nas acções de salvamento, até o SANAS foi chamado para prestar socorro em terra. Botes foram utilizados para resgatar dezenas de pessoas que ficaram bloqueados em prédios na Rua do Seminário e Rua Fernão de Ornelas. A Polícia não tinha mãos a medir. Do mesmo modo os meios de socorro, entre eles a Cruz Vermelha Portuguesa. As tropas também apareciam por todos os cantos. Os bombeiros tudo faziam. Mas eram impotentes para tantos pedidos de auxílio. Também não conseguiam ultrapassar os obstáculos que surgiam nas estradas. Até o Comando Regional foi invadido pelas águas. A estrada era uma autêntica ribeira em frente a esta instituição. Valeu o esforço e foi preponderante a entreajuda entre os agentes da PSP. Quando um destes estava perdendo esperanças numa operação de resgate, desse mesmo jardim para o lado norte, os colegas ao verem que estavam a perdê-lo, dois deles atiraram-se à água, pois só arriscando a vida é que foi possível retirá-lo daquela posição difícil.
Dezenas de pessoas ficaram encurraladas no jardim central do Campo da Barca, entre a bomba de gasolina e o outro lado da estrada. As águas da ribeira não davam muitas hipóteses. Foram evacuadas através de cordas, com o apoio de bombeiros. correndo o risco de serem arrastadas pela força das águas. Felizmente não há vítimas a registar neste local. O Funchal estava a ser evacuado para zonas mais altas e que ofereciam segurança. Com efeito, ninguém se sentia seguro.
Mas, a tragédia não se passava só nesta zona. Do outro lado da cidade o caso não era melhor. Junto ao Dolce Vita e ao edifício 2000, a ribeira galgava também a estrada. A superfície comercial foi invadida e os prédios mais antigos ameaçavam ruir. Era o caos. Mas o perigo real impedia qualquer aproximação daquela ribeira. Os prejuízos são incalculáveis. Os próximos meses são para limpezas e balanço de um prejuízo que está fora do imaginável. O alerta vermelho revela uma calamidade pública. Um dia para nunca mais esquecer.
Ribeiras principais do Funchal ameaçavam rebentar
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Uma cidade irreconhecível. As ribeiras principais do Funchal ameaçavam rebentar. O cenário atroz começou entre o Mercado dos Lavradores e o Anadia, entre as 10.30 e as 11 horas, quando a pequena ponte que faz a ligação entre a Rua Visconde Anadia e o Oudinot cedeu. A partir daqui foi um caos. A água da ribeira em grande força galgava para a estrada invadindo as ruas mais próximas. Mais parecia o rebentamento de uma forte ondulação junto à costa. As águas chegavam àquele ponto e elevavam-se à altura do edifício Oudinot, do outro lado da estrada. O tanque de gás que se encontrava junto da ponte voou simplesmente contra a entrada do Anadia. Tudo podia acontecer. Foi o salve-se quem puder. Pessoas a serem arrastadas, salvas por outros. Uma delas foi agarrada por dois ou três transeuntes que arriscaram-se para salvar a vida da senhora que já estava no meio da lama e arrastada dezenas de metros. Valeu o esforço. Um outro salvamento de uma criança aconteceu junto do ribeiro de Água de Mel que transbordou. São estes momentos que valorizam as pessoas. Uma entreajuda quando o perigo ameaça. Crianças e mulheres a gritarem e a correrem por todos os lados na baixa do Funchal. As águas da ribeira de João Gomes a aumentarem de nível e com mais força indiciavam o pior. Mais parecia um filme de terror. O som do arrastamento de pedras e entulho pela ribeira abaixo assustava. Já se falava em mortos. Um deles, uma senhora, por arrastamento na Rua Pedro José de Ornelas. O cadáver ficou junto ao jardim na parte mais baixa. Outros na zona mais alta, na Barreira, em Santo António, em consequência da queda de uma grua que atingiu uma casa e destruiu uma garagem onde se encontravam abrigadas cinco pessoas. Todas morreram. Na casa verificaram-se mais mortos. Contudo, duas pessoas, entre elas uma criança, foram salvas do meio dos escombros. Nesta rua, com inclinação acentuada, dezenas de carros eram arrastados.
Mas, o pior veio a seguir. As duas pontes do Campo da Barca entupiram e a estrada passou a ribeira com arrastamento de lamas, pedras e todo o tipo de entulho. A bomba de gasolina ficou literalmente destruída. A água da ribeira, em grande quantidade, dividia-se em várias ruas na baixa da cidade, gerando o pânico entre aqueles que pensavam ainda defender os seus bens. Permaneciam nos estabelecimentos a tentar desviar as águas. Mas eram tantas que deixaram tudo para trás. Os prejuízos sao incalculáveis. Grande parte das lojas têm os seus armazéns ao nível inferior da estrada e ficaram cobertos com água. O edifício do Anadia fechou com a água a subir ao nível da estrada. A Rua do Seminário, Rua do Ribeirinho de Baixo, Rua Fernão de Ornelas, Rua do Carmo, Rua João de Deus, Rua do Bom Jesus, Rua das Hortas. Isto, de entre outras. Junto ao Mercado dos Lavradores, Latino Coelho, Rua de Santa Maria. A verdade é que todos os que chegaram à baixa da cidade ali ficaram. Já não puderam sair. Os avisos faziam-se ouvir em todas as rádios: deixem-se ficar em casa.
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