Jornalista brasileiro radicado na Suíça, Eduardo Simantob escreve para ÉPOCA sobre o sensacionalismo na cobertura do falso ataque neonazista
Eduardo Simantob*
Aparentemente, a história tinha tudo para ser um grande escândalo que transbordaria os modestos limites geográficos da Suíça: um brutal ataque xenófobo cometido por três skinheads contra uma indefesa brasileira grávida de gêmeos, com detalhes gráficos saborosos – corpo retalhado de cortes com a inscrição SVP, sigla alemã para Partido do Povo Suíço – e um aborto como consequência. Só que era tudo mentira, e o caso real, se deixado nas mãos das autoridades locais, provavelmente mereceria não mais que uma matéria de fait-divers assim que os fatos tivessem sido devidamente apurados.
Mas não. O caso Paula Oliveira (ou Paula O., como preferiu chamar a imprensa local, cuidadosa em manter a privacidade da suposta vítima, procedimento desconhecido da imprensa brasileira) assumiu dimensões de ópera bufa, ou quase uma comédia, não fossem as consequências da farsa tão trágicas para Paula e sua família. Que também têm sua parcela de culpa na armação desse circo midiático o qual, se não chegou a provocar um incidente diplomático de fato, em muito contribuiu para atiçar os sentimentos xenófobos da população, encorajando os mais exaltados a expressar livremente pela internet, blogs e comunidades virtuais, seus sentimentos mais obtusos.
Pouco depois de acionar a polícia e dar queixa do incidente supostamente ocorrido na estação de trem do subúrbio zuriquenho de Stettbach, Paula Oliveira comunicou a família. O pai, Paulo Oliveira, pediu ao namorado da filha que fotografasse as marcas pelo corpo, e, na qualidade de bem-relacionado assessor parlamentar, não hesitou em enviá-las aos seus contatos privilegiados na mídia e no governo.
A mídia não é pai (Deus é Pai), mas um corpo profissional dotado de regras de procedimento básicos, como por exemplo, critérios de apuração. Ou assim deveria ser.
Pode-se entender a atitude de Paulo Oliveira. Afinal, antes de mais nada, ele é pai, e é perfeitamente cabível que acreditasse piamente na versão da filha. A mídia, no entanto, não é pai (Deus é Pai), mas supostamente – advérbio mais frequente na história toda, também riscado dos manuais de redação nacionais – um corpo profissional dotado de regras de procedimento básicos, como por exemplo, critérios de apuração. Ou assim deveria ser.
Passando por cima de todas as regras éticas e de conduta que qualquer estudante de jornalismo supostamente aprende em seu primeiro ano de faculdade, a imprensa brasileira em poucas horas criou todo um circo de histeria e sensacionalismo. O cuidado da polícia zuriquenha, buscando resguardar a privacidade da vítima e o sigilo das investigações, foi considerado no Brasil como evidência de incompetência e, mais grave, de racismo da própria instituição. Afinal, os policiais ousaram até questionar a versão da pobre Paula. Quanta falta de sensibilidade.
O primeiro ponto da história de Paula que saltou aos olhos de qualquer pessoa informada acerca da cena de extrema-direita na Suíça foi a sigla do partido SVP arranhada na pele da brasileira. É importante esclarecer: nem todo racista é nazista (o Brasil mesmo não tem nenhum movimento neo-nazista que mereça a alcunha, e quem tem coragem de dizer que não existe racismo no país?), e os neo-nazistas aqui pouco se identificam com o Partido do Povo Suíço.
O SVP é sim um partido de direita, estupidamente conservador, nacionalista, de base originalmente rural, e que atraiu, nos últimos 15 anos, parte da elite econômica e a classe média temerosa das transformações radicais provocadas pela globalização. Nesse período, deixou de ser um partido de expressão marginal para se tornar a maior agremiação política do país. O partido ganhou ainda notoriedade internacional com suas campanhas recheadas de símbolos xenófobos e racistas, provocando ojeriza até mesmo entre os conservadores dos países da Comunidade Europeia – da qual, é bom lembrar, a Suíça não faz parte.
Os neo-nazis podem até votar para o SVP ou se identificar com partes de sua plataforma, mas o caráter burguês do partido causa repulsa aos radicais. Eles jamais ostentam bandeiras do SVP ou saem às ruas em sua defesa. Seus laços políticos são muito mais fortes com o "movimento", ou seja, a chamada "internacional fascista" que agrega grupelhos dos EUA à Rússia, mesmo que, paradoxalmente, também se baseiem em fortes tintas nacionalistas. Até mesmo suásticas parecem ser um símbolo ultrapassado para a cena neo-nazi, que desenvolveu um design mais moderninho para padrões antigos (inclusive uma grife própria de roupas, além de terem adotado a marca inglesa Lonsdale de roupas esportivas).
O médico legista Walter Baer, que examinou os cortes em
Paula, foi categórico: trata-se de um caso "clássico" de
cortes auto-infligidos
Ataques e agressões de cunho xenófobo de fato existem – números oficias dão conta de 355 denúncias entre 1995 e 2006 –, e observam um sensível aumento nos últimos anos. Mas o caso de Paula foge dos padrões normais. As vítimas em geral são homens, e a grande maioria árabes/muçulmanos, africanos, europeus do leste e ex-iugoslavos.
Assim que a mistura de SVP com skinheads na versão de Paula serviu de saída apenas como sinal da própria ignorância da brasileira acerca das coisas locais. E levantou mais de um sobrolho entre os investigadores.
O médico legista Walter Baer, que examinou os cortes em Paula, foi categórico: trata-se de um caso "clássico" (lehrbuchmässig, em alemão, que significa literalmente "saído do manual") de cortes auto-infligidos: todos ao alcance das mãos da vítima, relativamente superficiais e poupando partes mais sensíveis do corpo e da genitália.
As críticas à perícia de Baer proferidas na mídia brasileira agravam ainda mais os sinais de amadorismo jornalístico. Depois de todo o circo que armaram, os jornalistas criticaram o fato de Baer conceder uma coletiva de imprensa antes do fim das investigações – e note-se que, conforme deu a entender a secretária cantonal de polícia, Esther Maurer, na mesma ocasião, a coletiva foi organizada para baixar um pouco o histrionismo midiático que o caso estava sofrendo, e dar uma resposta oficial às acusações de que a Suíça é um país racista.
Walter Baer, aliás, é um dos mais respeitados legistas do país e, ao contrário do passado recente do Brasil (alguém se lembra do caso PC Farias?), não se tem notícia de manipulação política ou de qualquer outro tipo por parte do Instituto de Medicina Legal da Universidade de Zurique.
A gravidez que não existiu levantou mais um par de sobrolhos. Detalhes de como a polícia conduziu o interrogatório com Paula, o exame ginecológico que desmentiu a existência dos supostos gêmeos, a arma do crime, possíveis motivações aventadas pela polícia e, por fim, a confissão final da brasileira, saíram publicados na revista Weltwoche da quarta-feira (18). A publicação coincidiu com saída de Paula do Hospital Universitário de Zurique e com a abertura de um processo contra ela pelo Ministério Público local por crimes de falso testemunho e por induzir a autoridade judiciária ao erro. A ex-vítima e agora ré deverá acompanhar o processo em território suíço e seu passaporte encontra-se apreendido pelas autoridades de modo a impedir sua saída do país, para desgosto da opinião pública local (e do SVP), que clamam pela deportação da brasileira.
Criou-se até mesmo uma comunidade no site Facebook chamada "Deportação para Paula Oliveira" (Ausschaffung für Paula Oliveira), reacendendo o cansativo debate sobre o comportamento de estrangeiros no país.
O caso de Paula é agora de um problema de caráter pessoal, sem qualquer interesse público, e a imprensa faria bem em deixar a história morrer por aí
Enquanto isso, o circo midiático continuava a toda. Segundo o diplomata Acir Madeira, despachado de Brasília especialmente para tratar do caso com a imprensa, o assédio incansável dos jornalistas até na porta de casa já fez o pai de Paula arrepender-se profundamente de sua atitude no início do caso. E pior, com um processo agora nas costas, tudo que a família precisa é manter a boca fechada e se preparar para a defesa.
Assim, o que parecia uma grande história horrorosa provou-se em poucos dias ser uma grande farsa constrangedora, e tudo agora se resume a um processo penal no qual provavelmente Paula deverá apenas pagar uma multa – sem contar a possível necessidade de encarar uma longa terapia para administrar distúrbios psicológicos, que o advogado da brasileira estuda incorporar à defesa. Porém, trata-se agora de um problema de caráter pessoal, sem qualquer interesse público, e a imprensa faria bem em deixar a história morrer por aí.
Na Suíça, porém, mesmo que não tenha havido qualquer comoção pública, o caso tem sido usado para ajustes de contas internos. Uma das ironias é que a farsa de Paula serviu para colocar o SVP na condição de vítima num momento em que o partido acumula mais de um ano de derrotas seguidas em praticamente todos os plebiscitos nacionais e cantonais, seu grande líder, o populista Christoph Blocher, foi chutado do Conselho Federal (o Executivo nacional, no fim de 2007) por "falta de espírito coletivo", lideranças internas de peso pularam fora e fundaram um partido dissidente, e sua popularidade caiu mais de 5%, do pico de 29% em 2007.
Já a revista
Weltwoche, a única a ter acesso aos autos da polícia no caso, e o mais influente órgão de imprensa a defender o SVP, ainda aproveitou de seu furo para achincalhar a rede estatal Swissinfo, que funciona como uma espécie de BBC local, bancada por dinheiro público e considerada pela direita como um "ninho" de jornalistas à esquerda. Segundo a
Weltwoche, o comportamento da Swissinfo na cobertura do caso, especialmente por amplificar as notícias da mídia brasileira, foi um exemplo crasso de amadorismo jornalístico.
"Amadora" e "irresponsável" é também a impressão deixada pela imprensa do Brasil. Os expatriados brasileiros na Suíça podiam passar sem essa, em nome da reputação da comunidade. Como consolo, pode-se ao menos saber que os serviços consulares do Brasil funcionam, e, no caso, comportaram-se perfeitamente – ou seja, simplesmente fizeram o seu trabalho de assistência como deveria ser feito. Desta vez não foi nem o Estado, nem a polícia que pisaram na bola, mas uma advogada e um bando de jornalistas, numa triste inversão dos papéis usuais no jogo democrático.
*Jornalista brasileiro residente em Zurique
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