A Literatura e o realismo social
Desde Camilo que a nossa ficção se deixou seduzir (e, quanto a mim, bem) pela realidade portuguesa. A realidade que estava ao rés dos olhos, bastava para tanto fixar o olhar e ela entrava-nos pelos neurónios, a doer, atrelava-se à prosa como lapa à rocha em manhãs de vendaval. Com Camilo e com Júlio Diniz e, mais tarde, com Eça de Queirós, começávamos a saber pensar, literariamente, a realidade circundante, nossa e intransmissível – os seus mais obscuros linimentos.
Camilo, nos seus romances, nos interstícios da poeira romântica, convocava o Povo para o pôr a servir, para figura subalterna, passiva e serviçal. Eça, que pertenceu a uma geração que sonhava um projecto de transformação da sociedade portuguesa, de cariz progressista, influenciado por Hegel e, sobretudo, por Proudhon, limitou-se a uma crítica mordaz dos comportamentos da burguesia e da aristocracia endinheirada, de denúncia aos excessos lúbricos do clero, relegando, quase sempre, as classes trabalhadoras para um papel de observadores passivos ou de meros instrumentos ocasionais do jogo de intriga. Devemos-lhe, contudo, esse notável texto, lido nas Conferências do Casino, A Nova Literatura – O Realismo como nova expressão da Arte, a partir do qual a literatura portuguesa rompia, definitivamente, com os maneirismos barrocos e com o romantismo e assumia a crítica social, denunciando excessos e injustiças mais chocantes. Mas Eça e seus companheiros da Geração de 70, nunca chegaram, nos seus textos, a dar «verdadeiramente voz às camadas populares» (1).
A voz do Povo, enquanto sujeito da história, só aconteceria na nossa Literatura anos depois, através da pujante obra romanesca de Ferreira de Castro. Embora no romance naturalista O Amanhã, de Abel Botelho, publicado na última década do século XIX, o protagonista seja um tipógrafo anarquista, prenúncio já de algum inconformismo social, é através do romance Emigrantes, publicado em 1928, que Ferreira de Castro inaugura na nossa ficção o realismo social o qual antecipa, nos aspectos mais abrangentes e determinantes da denúncia da opressão do capital sobre o trabalho, o neo-realismo.
Ferreira de Castro nasceu em Ossela, Oliveira de Azeméis, a 24 de Maio de 1898. Filho de camponeses pobres, emigra para o Brasil com 12 anos de idade. Em Portugal vivia-se ainda a aura romântica (muito camiliana) do «brasileiro-torna-viagem», que buscava em Terras de Vera Cruz o seu El Dourado. Nada disso aconteceu com Ferreira de Castro: para o Brasil partiu com uma mão cheia de nada e de lá regressou com outra cheia de coisa nenhuma. Mas, para o jovem que já escrevia poemas na sua Ossela natal e aos dezoito escreve o seu primeiro romance, Criminoso Por Ambição, publicado em forma de folhetim, a experiência de quatro anos vividos no seringal Paraíso, em plena selva amazónica, haveria de constituir-se como determinante para a sua produção ficcional. O jovem emigrante recolheria na selva amazónica, através dos trabalhos mais duros e humilhantes, ao nível da semi-escravatura, mas igualmente em Belém do Pará, em S. Paulo e no Rio de Janeiro, elementos e vivências que lhe permitiram construir uma obra de 31 livros, entre romances, memórias de viagens e ensaio sobre arte, tornando-se o escritor português mais traduzido e conhecido do seu tempo e um dos mais prestigiados e universalmente estudados de toda a nossa Literatura.
É numa viagem a Manaus, logo após a publicação de Criminoso Por Ambição, que Ferreira de Castro, em contacto com outros compatriotas pobres que no Brasil não encontram o paraíso prometido pelos engajadores, obterá os elementos que lhe permitiram a elaboração do livro Emigrantes, a sua primeira obra de fôlego, na qual se detecta já a estrutura novelesca, embora ainda com algumas fragilidades formais, que edificará o melhor da sua vasta obra. Manuel da Bouça, o protagonista de Emigrantes, camponês pobre e analfabeto, vai para o Brasil na esperança de conseguir fortuna para arranjar dote para a filha e poder comprar as leiras que fazem estrema com as suas. Mas o sonho desfaz-se e Manuel da Bouça regressa à pátria mais pobre do que partira e já desapossado das courelas que deixara como penhor do bilhete para a viagem. Só regressa, mesmo pobre e humilhado, porque os acasos da sorte o atiram para a confusão de uma revolta e ele consegue ficar com os anéis, a corrente e o relógio de um dos mortos na contenda. O profundo humanismo de Ferreira de Castro está patente na forma como olha para este homem desapossado, pela usura, dos resquícios de dignidade, como lhe percorre os sobressaltos das noites despovoadas, o acompanha, com solidário estremecimento, até à vergonha que o espera no seu regresso à aldeia. Aí chegado, é obrigado a mentir, a inventar um sucesso que não houve. Parte para Lisboa, espiando, na cidade grande, longe dos olhares dos seus conterrâneos, o fracasso e a mentira.
Escrita actual e com futuro
A sua obra-prima, a obra que o tornará conhecido internacionalmente é, sem dúvida, A Selva. Os seus anos de adolescente passados no seringal serviram-lhe para tornar verosímil esse inferno vivido pelos homens na floresta amazónica, para nos dar a dimensão da avareza, da tirania, da sujeição a que os trabalhadores são expostos por um sistema desumano e esclavagista. Em A Selva o personagem principal não é Alberto, o jovem monárquico fugido a uma revolução perdida, mas a selva amazónica, esse vasto espaço indomesticável, rude e impenetrável, perante a qual os homens que a habitam exibem os seus mais primitivos instintos: «Era um mundo à parte, terra embrionária, geradora de assombros e tirânica, tirânica! (…) Ali não existia mesmo a árvore. Existia o emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada. (…) Os homens eram títeres manejados por aquela força oculta, que eles julgavam, ilusoriamente, ter vencido com a sua actividade, o seu sacrifício e a sua ambição.» (2)
O teórico alemão Wolfgang Kayser, refere, no ensaio Análise e Interpretação da Obra Literária, que A Selva «é nitidamente um romance de espaço», de um «espaço geográfico e telúrico, em que se vem inscrever o espaço social».
A arte literária de Ferreira de Castro é visionária, não só porque antecipa, brilhantemente, o humanismo neo-realista, mas por abrir à literatura outros horizontes geográficos e civilizacionais até então ausentes da ficção narrativa: a vida na selva amazónica, a emigração, as preocupações ecológicas.
Em O Instinto Supremo, Ferreira de Castro ergue a voz corajosa e solidária, para defender os índios do Brasil, as ameaças que pairam sobre o seu modo de vida, cultura e costumes, que a cupidez dos colonos vai fazendo desaparecer. É toda uma cultura ancestral, restos da civilização ameríndia, que máquinas infernais do capitalismo vão destruindo quilómetro a quilómetro. O Instinto Supremo antecipa em algumas décadas, (foi publicado em 1968) as nossas mais profundas preocupações ambientais, traz para o terreno da consciência colectiva universal, os problemas fulcrais da exploração sem freio que o capitalismo selvagem vem impondo aos recursos deste planeta que nos é comum, pondo em risco a sobrevivência das futuras gerações.
Ferreira de Castro foi um escritor profundamente comprometido com o seu tempo, corajoso, civicamente empenhado, denunciando nos jornais e através da sua obra, as injustiças, as perseguições a democratas, a opressão e a tirania do fascismo luso. O romance A Curva da Estrada é, pela sua crua lucidez, um dos textos em que essa vertente interventora de Ferreira de Castro mais claramente se assume.
O ensaio As Maravilhas Artísticas do Mundo, revela-nos um Ferreira de Castro cosmopolita, viajado, atento ao pulsar deste nosso mundo, sabedor e culto, escrevendo ou convivendo com os grandes vultos da arte e da cultura seus contemporâneos: Picasso, Gauguin, Matisse, Claude Monet.
O realismo social da obra de Ferreira de Castro é, nestes tempos dramáticos que nos querem obrigar a viver, obviamente incómodo. Para os poderes instalados é preciso, primeiro, denegrir e, subtilmente, tentar ignorar a obra ímpar do autor de A Lã e a Neve. A crítica instalada, impante, sempre serviçal, do alto do seu snob conservadorismo armado em modernaço, tenta passar-lhe ao lado: entretém-se com o Fernando Pessoa e com o baú das pepitas a haver, que talvez lhe garanta mesada grossa para pagar a renda – sobretudo, é preciso não irritar quem lhes paga a soldada. O ministro da Cultura, a existir, andará certamente absorvido com outras transcendências, implorando aos deuses do seu exclusivo Olimpo que o não perturbemos com minudências, tentando ignorar que neste ano da graça de 2008 se cumprem 110 anos sobre a data de nascimento de um dos nomes cimeiros da Cultura Portuguesa do século XX.
Apesar de todo o silêncio (há silêncios ensurdecedores) «a obra romanesca de Ferreira de Castro, injustamente esquecida (…) merece uma atenta revisão, que, na actual conjuntura política em que o egoísmo prevalece ostensivamente sobre a solidariedade, possa iluminar os valores humanos que o seu realismo social exalta sem demagogia». Justas e sábias palavras de Urbano Tavares Rodrigues.
A Obra de Ferreira de Castro está aí. Viva, a doer-nos, a mostrar-nos os lanhos que mais nos ferem e indignam. Uma escrita ainda actual e com futuro. Para o Futuro.
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(1) Urbano Tavares Rodrigues – Ferreira de Castro, o realismo social e a dignidade humana
(2) A Selva, de Ferreira de Castro
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