Paulo de Toledo
O conto “Singularidades de uma rapariga loura” (QUEIROZ, Eça. Contos. Ediouro, RJ, s/data, p. 11.), escrito em 1873, por Eça de Queiroz, deve ter causado estranheza ao público da época em que foi publicado, devido à destruição dos moldes convencionais do Romantismo e à apresentação de tipos e situações que se chocavam contra os códigos morais vigentes da burguesia portuguesa.
Narrado em terceira pessoa, o conto apresenta-nos a história de Macário, um jovem guarda-livros que se vê “assaltado” pelo amor a uma mulher: a jovem Luísa.
OURO E LOURA
Nessa obra, novamente Eça de Queiroz, como em O Primo Basílio, manifesta sua fixação pela figura da mulher loura. Luísa tem olhos azuis, é branca e loura como um “arminho”. Toda a aparência da personagem sugere pureza e ingenuidade. Por meio da detalhada descrição que é feita do caráter (apego ao luxo e à vaidade) e ainda pela semelhança entre as palavras “loura” e “ouro”, repetidas inúmeras vezes no conto, somos levados à principal característica psicológica da personagem: a cleptomania.
O conflito entre a aparência e as pulsões internas que o indivíduo procura ocultar, é um dos eixos do conto. A aparência singela de Luísa, a clareza de sua pele e dos seus cabelos escondem um caráter “obscuro”.
Por seu turno, a honestidade do protagonista Macário é enfatizada desde o início da história, de modo a confrontar-se com a personalidade viciada de Luísa. Esse dado confirma-se na descrição das origens de Macário. Segundo o narrador, o guarda-livros era proveniente de uma família marcada por uma “velha tradição de honra e escrúpulo” [p. 15].
O espírito desarmado e puro de Macário também fica expresso no fato de ele relatar sua história à primeira pessoa (o narrador) que encontra numa estalagem de província
OS NOMES
É interessante que nos detenhamos na análise do sobrenome de Luísa e de sua mãe: Vilaça. O adjetivo “aça” designa animal ou pessoa albina. Sendo ambas as Vilaças descritas como sendo mulheres muito brancas, o jogo entre “Vilaça” e “aça” sugere a brancura da pele das personagens. Podemos conjecturar também que “Vilaça” remeta anagramaticamente à palavra “vil”. Sendo assim, concluímos que o sobrenome Vilaça sugere a junção de “vil+aça”, podendo significar uma mulher branca e vil, evidenciando as principais características dessas personagens femininas.
Do mesmo modo, é bastante sugestivo o fato de que o encontro entre Lúcia e Macário se realize na Rua dos Calafetes. “Calafete” designa aquele que calafeta, sendo calafetar o ato de untar com piche ou breu as juntas de um barco. Isto é, foi na Rua dos Calafetes onde o amor de Macário por Luísa foi untado de “piche” (elemento que indicaria a impureza da alma de Luísa).
No final do conto, depois que a rapariga loura rouba um anel de brilhantes na loja do ourives e é desmascarada, Macário, já na rua, ao lado da sua noiva, “instintivamente leu o cartaz que anunciava ‘Palafox em Saragoça’” [p. 44]. Após ler o cartaz, Macário, claramente irritado, ordena a Luísa que vá embora.
Se detivermo-nos na palavra “Palafox” perceberemos que se dá a união entre “Palas” (o nome da deusa grega Palas Atena) e “fox” (raposa, em inglês). Saragoça, por sua vez, pode nos levar a “saragoço”, que quer dizer cão perdigueiro de cor branca com pequenas pintas escuras. Podemos concluir, portanto, que o cartaz é um resumo metafórico das características físicas e morais de Luísa. Sendo ela descrita pelo autor como uma bela mulher, Luísa se aproximaria metaforicamente da deusa grega Palas Atena (que, juntamente às deusas Hera e Afrodite era considerada uma das três mais belas deusas do Olimpo). Além disso, o nome da peça em cartaz contém as palavras raposa (“fox”) que indica pessoa de personalidade astuta e traiçoeira. Vemos aí, aglutinadas, as duas faces de Luísa: sua beleza e seu caráter traiçoeiro.
Por sua vez, o substantivo “saragoço” permite-nos relacionar a cor branca que caracteriza esse cão à palidez de Luísa. Além disso, as pintas do saragoço podem sugerir as máculas no espírito da personagem: sua cleptomania.
PRODUTO DO MEIO
Esse “defeito” de Luísa pode ter como causa a necessidade da personagem de corresponder às expectativas da sociedade burguesa que a rodeia. É importante observar que os objetos furtados por Luísa (os “lenços da Índia”, o anel de brilhantes e o leque, o qual somos levados a crer que também fora roubado) são elementos típicos de ostentação de riqueza utilizados pela alta classe burguesa da época.
Eça de Queiroz, adepto do Naturalismo, elabora, assim, uma crítica à sociedade a qual pertencia, cujo comportamento estaria baseado na valorização das aparências, uniformizando as individualidades, ou seja, destruindo as suas “singularidades”.
PAULO DE TOLEDO (Santos/SP, 1970) é poeta. Tem poemas, contos, traduções e ensaios publicados em vários sites literários e na revista de poesia Babel. Sphere: Related Content