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Ao todo, segundo informação do Exército, já passaram pelo RG3 entre 160 a 180 pessoas, entre as quais 40 crianças, a mais nova apenas com quinze dias de vida. Ainda que o frequente entra e sai dificulte apurar o número exacto, o Exército avançava, ontem á tarde, que estariam a ser apoiadas naquele momento cerca de 80 pessoas, o que deverá ter sido reforçado ao princípio da noite com a entrada dos 70 desalojados das zonas altas do Funchal, que até ao momento se encontravam abrigadas na Casa de Saúde de São João de Deus.
Todas as pessoas que estão a receber este apoio coordenado pela Segurança Social mas coadjudado pelas voluntárias das Guias de Portugal (sete), no âmbito de uma concertação com a Cáritas Diocesana do Funchal e pela própria Cáritas. A Segurança Social tem quatro equipas técnicas de Emergência Social, compostas por assistentes sociais e psicólogas.
De facto, cada uma destas pessoas traz um enorme drama consigo.
É o caso de “Maria” (nome fictício), uma mulher de 32 anos. Maria mora no sítio do Trapiche de Cima, atrás da Casa de Saúde de São João de Deus. Na sua casa vivem cinco pessoas. Os seus pais e as duas filhas. A mulher não se apercebeu do perigo que estava a correr até ouvir o enorme estrondo do desmoronamento da casa da vizinha. Nesse momento preparava o pequeno-almoço para as filhas. «Estava tudo calmo», disse. «Apenas a chuva era intensa», recorda-se.
Subitamente, «ouvi aquela derrocada», disse, referindo-se à desmoronamento da casa da vizinha. A vizinha e o filho ficaram «presos» na casa mas com a ajuda dos vizinhos conseguiram «sair ilesos».
Porém, essa destruição atingiu parcialmente a casa da nossa interlocutora. «As águas e terras que estavam lá atrás vieram contra a nossa casa, alagando-a e destruindo o muro de protecção para a estrada e pondo em risco de ruir duas divisões da casa, a cozinha e o quarto da minha mãe», relatou.
No meio da aflição, esta mulher levou as duas filhas «em pânico», de nove e dez anos, para a casa de uma outra vizinha, onde o temporal não tinha feito qualquer estrago.
Nessa hora, a mãe de Maria já trabalhava no Hospital João de Almada. A filha avisou-a do que se estava a passar mas esta mulher não conseguiu regressar a casa, dada a quantidade de estradas encerradas. Teve de ficar no Hospital João de Almada, onde até acabou por pernoitar.
O pai de Maria estava em casa no momento do desmoronamento e ainda continua lá, uma vez que recusou ir para o RG3, onde agora está Maria e as duas filhas.
A mulher comove-se ao recordar os instantes mais difíceis. «Durante o dia não chegou ajuda nenhuma. Esteve cada um por si. O ribeiro parecia o fim do mundo. O posto de luz estava virado. Era um pânico. Era a minha vizinha a gritar. E não chegou ajuda nenhuma. Nós viemos para aqui às 22h00 mas porque os bombeiros foram buscar a nossa vizinha e viram-nos lá na sala, sem condições», conta a mulher, que nessa noite achava que ia ter de dormir dentro do carro.
Agora que se encontra salva num lugar seguro, Maria pensa no que tem pela frente. «A casa não está apropriada para as minhas filhas, porque não nos podemos banhar, não podemos comer, não podemos nada», disse, e a família não tem dinheiro para recuperar a habitação. Uma técnica da Segurança Social apontava as informações que Maria nos dava na entrevista. E no final fez um pequeno questionário. Na cara de Maria nascia a esperança.
Pelo contrário, a expressão de Policarpo Capelo ao entrar ontem à tarde no RG3. Este funcionário da Câmara Municipal do Funchal trazia a filha aos braços, uma menina que aparentava ter dois ou três anos. No seu rosto ainda vinham as marcas das lágrimas, no olhar uma expressão de tristeza e cansado.
O pai segurava-a com firmeza e força. O olhar, porém, era vago e de desolação.
«Foi uma tragédia. Era rocha em cima da casa. Os quartos, as mobilias, os guarda-fatos, a máquina de lavar, tudo estragado», descreveu este homem de 30 anos, residente da Vereda da Cova, em São Roque.
Policarpo Capelo mora numa casa com outras quatro pessoas. Policarpo só se salvou, porque instantes antes foi avisado pela esposa que a ribeira tinha galgado as margens. «Vem a ribeira, vem a ribeira», gritou a mulher para Policarpo. O marido só teve tempo de fechar a porta do quarto e fugir, saltando para a casa da vizinha. «Senão ia ficar lá também», garante. «Vi pedras e passarem por cima, vieram postos, fios, rebentou tudo. Nunca vi nada semelhante», refere, dizendo que o entulho rapidamente soterrou a casa de dois pisos. A mulher também quase via a morte. Foi salva porque um vizinho desviou um cabo de electricidade que ia em sua direcção.
Policarpo e a família passaram a noite na casa de amigos mas este funcionário da Câmara Municipal não conseguiu dormir.
Ontem chegou ao quartel da Nazaré com a filha numa mão e dois sacos de roupa na outra. A família ia à frente com outros sacos. Foi o que sobrou de uma vida de trabalho.
«Ficámos praticamente sem nada», disse, emocionado.
À espera desta família e de todos os desalojados está uma equipa multidisciplinar, constituída por militares, assistentes sociais, uma psicóloga e voluntárias da Guias de Portugal, uma associação de ideal escutista.
«Viemos aqui disponibilizar-nos para o que fosse necessário», disse uma das guias, Vera Ornelas, que se encontrava na sala do RG3 para onde está a ser encaminhada toda a ajuda que os cidadãos, de expontânea e voluntária, têm oferecido às vítimas da tragédia. Só ontem cerca de duas dezenas de pessoas foram lá entregar bens, sobretudo roupas.
«Estamos a fazer uma separação», disse Vera Ornelas, explicando o que as cinco guias destacadas naquele quartel estavam a fazer naquele momento.
Vera Ornelas disse uma das ajudas que as pessoas poderiam dar a estes desalojados seria na entrega de alimentos.
O Exército tem sido uma das peças fundamentais no trabalho de apoio às pessoas e bens. A ajuda não só tem sido importante na intervenção nas ruas como também no acolhimento das vítimas no Regimento.
Devido ao apoio que está a ser dado
«Quartel está totalmente hipotecado»
O coronel Batalha da Silva, comandante do Regimento de Guarnição Número 3 (RG3), fez ontem um balanço das operações que o Exército tem desencadeado no âmbito da remoção de escombros, do transporte de desalojados e do fornecimento de água.
Batalha da Silva fez ontem a primeira comunicação aos jornalistas sobre o ocorrido, depois de ter feito um “briefing” com o segundo comandante, até agora o militar com o controlo das operações. É que o temporal coincidiu com o período de férias do coronel. O comandante do RG3 estava em Lisboa e só deveria regressar à Madeira hoje. Porém, os acontecimentos precipitaram a sua vinda. Veio no C-130 que trouxe as equipas de ajuda do continente.
Batalha da Silva disse que estão agora 55 militares no terreno, sendo as localidades mais preocupantes o Funchal, a Ribeira Brava e Curral das Freiras.
O RG3 tem sido a casa temporária para as vítimas do mau tempo e, para tal, precisou «adequar as instalações às necessidades».
«Compreendo que não temos as melhores condições, mas neste momento as pessoas precisam essencialmente de um tecto, de um colchão, de um cobertor, de uma refeição e de apoio psicológico», disse, explicando que é isso que está a ser feito.
O coronel referiu que para responder às solicitações foi necessário ajustar as instalações à nova realidade. «Neste momento, o quartel e o pessoal estão totalmente hipotecados», confessou, adiantando que o apoio permanecerá «até os meios permitirem».
O canalização de meios para responder à tragédia obrigou, por exemplo, ao Exército a suspender os planos de formação que tinha em andamento.
«Vamos parar a nossa actividade até a situação estar regularizada. Até podermos recolher as equipas que estão no terreno, porque são estes os homens que dão instrução», explicou.
A instabilidade das condições climatéricas impede que haja uma previsão para o fim das operações.
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