A rebelião dos invisíveis
Para o jornalista Eugênio Bucci, a sociedade do espetáculo traz à tona os anônimos que insistem em ingressar à força num mundo que também à força os excluiu
Mônica Manir - O Estado de S.Paulo
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Cortejo formado por familiares e amigos de Eloá, no Cemitério Jardim Santo André. Foto: Patrícia Santos/AE
O cineasta José Padilha dirigiu o primeiro filme, Bruno Barreto pilota o segundo. Quem governou a cobertura jornalística nas quase 5 horas do Rio e nas 100 horas de Santo André foi o jogo do espetáculo, afirma Bucci. O jornalista resgata casos de crimes que foram histórias de grande audiência desde o século 19, quando a imprensa se tornou uma instituição comercial, para dizer que, em vista da nossa condição humana, são todos enredos irresistíveis. Mas, quando se chega à civilização da imagem, esta em que vivemos, a cobertura muda de figura, porque incessante e produtora de celebridades. "À luz desse predomínio da imagem, do medo de sermos condenados à invisibilidade, ao anonimato, o crime se tornou uma forma de ser visível." Sua proposta: menos. Ou seja, economizar na mistificação, limar cenas que possam celebrizar o criminoso, seja por meio de uma postura mais cuidadosa do próprio veículo de comunicação, seja por meio de uma política compartilhada entre eles. A seguir, este pesquisador do Instituto de Estudos Avançados e também articulista do Estado invoca outros pormenores da lógica perversa da espetacularização.
A cobertura do cárcere privado que envolveu Lindemberg e Eloá transformou milhões de espectadores em reféns daquelas imagens chapadas do conjunto habitacional. A mídia poderia ter feito diferente?
A dinâmica do espetáculo não consegue evitar os holofotes nesse tipo de acontecimento. É como se o criminoso quisesse escrever alguma coisa num lugar, registrar uma dor, registrar às vezes a própria existência. Para se tornar visível, ele chega a esse limite. Não podemos esquecer que estamos num período em que é como imagem que as coisas acontecem, inclusive a guerra e o terrorismo. O atentado ao World Trade Center em 2001 é um ato de imagem que atingiu, além das pessoas que estavam lá, das famílias delas e do orgulho de um país, o olhar de todos os espectadores do planeta. Aquilo produz o que chamei de mutilados do olhar. Pessoas que sofreram um ferimento, uma agressão quando viram ao vivo se dissolverem as duas torres. Foi um nó no imaginário da rede planetária. Isso não é qualquer coisa. Isso marca um período histórico.
Mesmo com o olhar ferido, as pessoas querem ver e rever esse tipo de espetáculo?
Existe um filme, A Montanha dos Sete Abutres, de 1951, que mostra como essa situação pode mobilizar as multidões. Ela mexe muito com a natureza humana, e daí o próprio jornalismo não tem como escapar. Ele precisa informar sobre o assunto. Se determinado veículo não faz aquilo, acaba se expondo ao medo de perder seu público para os concorrentes. Esse é um fenômeno muito próprio do espetáculo: a competição não produz diferenciação nesse campo, produz espelhamentos seqüenciais, uma imitação recíproca, e todos acabam convergindo para a mesma coisa, como num jogo de futebol em que todo mundo corre atrás da bola. De outro lado, é um tema muito importante para a ética jornalística, e aí precisamos entender que o jornalismo é uma parte desse grande show momentâneo, dessa espécie de intervenção urbana macabra.
Quais são as outras partes do show?
Os programas de entretenimento, os programas de auditório, toda a excitação que toma conta dos mais diversos suportes, das mais diversas linguagens. O jornalismo, dentro disso, precisa encarar um debate que é evitar celebrizar o criminoso porque isso inevitavelmente reforça no imaginário a característica de que essa atitude pode ser um passaporte para a celebridade. E não é que a pessoa faça isso porque ela maquiavelicamente pretenda se tornar célebre. É o modo que está à disposição dela para adquirir visibilidade instantânea num mundo em que o invisível não existe. O anonimato, muitas vezes, é uma forma de condenação. Luiz Eduardo Soares, no livro Meu Casaco de General, fala que muitas vezes um excluído social pega uma arma para assaltar e, assim, sair de um estado de morte, que é o estado da invisibilidade. É, portanto, o ato de violência de alguém que quer ingressar à força num mundo que também à força o exclui.
Mas, hoje, basta ligar a câmara para que uma pessoa se torne famosa, ainda que por poucos segundos. Como fazer uma cobertura do gênero sem transformar os personagens em celebridades?
Informando sem exacerbar a mistificação, sem tornar o criminoso uma estrela. Isso vai desde a postura interna do veículo de não dar certas imagens, de economizar informações, até um pacto que pudesse ser feito entre alguns veículos para evitar esse efeito.
Ao contrário de Sandro do Nascimento, que mostrou o rosto várias vezes para a câmera enquanto manteve seqüestradas 11 pessoas num ônibus no Rio, Lindemberg pouco aparece nas filmagens. Ainda assim virou manchete.
No caso do Lindemberg e no do ônibus 174, há alguns elementos comuns: a tensão e o suspense asseguram a manutenção daquela situação no ar tendo um sujeito no controle. Ele pode não aparecer para as câmeras naquele momento, mas o poder que exerce, dominador de uma situação tensa, em que a vida de reféns está em jogo, faz dele o personagem central. E isso também é visibilidade, também é imagem. Tanto que, voltando ao exemplo do terrorismo, muitas vezes os atentados são concebidos como atos de propaganda, o que pressupõe grande cobertura do acontecimento.
Na entrevista coletiva após o final trágico, o coronel Eduardo Félix disse que, se um policial tivesse matado Lindemberg, a imprensa e por conseguinte a população também condenariam a ação dos militares. Ele tem razão?
Acho que tem razão, não porque a imprensa condenaria a polícia por ter interrompido o espetáculo, mas porque o protagonista, tanto nesse caso como no do ônibus 174, aparece ao mesmo tempo como bandido e vítima. No caso do ônibus, seria exemplo de uma vida sacrificada; neste, de uma vítima de revés amoroso muito violento. São dores de forte apelo. A questão é que sempre há uma expectativa da sociedade e das instituições de que o impasse seja resolvido sem o sacrifício de vidas humanas. Investe-se o tempo todo na negociação. E a negociação, e isso é perverso, vira um ingrediente a mais da tensão dramática da cena. Qualquer pessoa de bom senso diria que, nesse caso, não deveria haver superexposição, mas o mecanismo do espetáculo, acima do bom senso, conspira contra e sempre acaba prevalecendo.
Então, diante das câmeras 24 horas, os atiradores de elite e os negociadores ficam de mãos amarradas?
Claro. Há vários filmes sobre isso também. Muitas vezes são os meios de comunicação que noticiam o andamento da situação, a ponto de entrevistar o seqüestrador ao vivo. Você viu isso nesse caso de Santo André? Os meios de comunicação se infiltram como personagens etéreos, que atravessam paredes. Conseguem pôr no ar a voz do criminoso e passam a informar a polícia sobre o que está ocorrendo. O paradoxal na situação é que os policiais estão em cena, eles viram atores de um circo sanguinário e sangrento.
A mídia conseguiu grande repercussão junto à opinião pública em crimes que envolveram ações policiais controversas, como o Carandiru, a Candelária e o ônibus 174. Isso é uma coincidência?
Somos uma sociedade calcada no medo. O próprio desenho urbano, a fisionomia da cidade, os prédios, os carros são projetados segundo o medo, e o medo físico. As pessoas vivem em bunkers, se locomovem em blindados. Quando a polícia entra em cena, temos imediatamente acionado o mecanismo do medo, o que mobiliza nosso olhar. A polícia é aquilo que nos protege daquilo que todos tememos. Dependendo da comunidade, aliás, ela é exatamente aquilo que se teme. É parte integrante do mesmo fenômeno. O espetáculo propicia essa situação de você contemplar o objeto do seu medo e, ao mesmo tempo, se sentir protegido dele. Então, esse tipo de cobertura exerce - e isso também é perverso - uma função catártica.
O celular foi usado largamente na negociação e até na conversa de Lindemberg co m um programa de TV. Qual o papel dessa tecnologia nesse show?
O celular é uma extensão capilarizada desse grande organismo que chamo de espetáculo. Não vamos nos esquecer de que, nos atentados dos metrôs de Londres e da Espanha, os celulares captaram imagens que imediatamente foram para os sites e, no outro dia, para os jornais. Também foi um celular que gravou o enforcamento de Saddam Hussein. Esse aparelho às vezes é apresentado como arma do cidadão para se proteger de certas violências, o que é verdade. Em outras, funciona como uma extensão capilarizada da máquina do sensacionalismo.
Quando voltou ao cárcere privado, Nayara atraiu a atenção do público. Na lógica do espetáculo, os protagonistas se revezam?
Há personagens que crescem, outros que decrescem. É importante ter em conta que quase tudo o que acontece no nosso tempo acontece assim. As campanhas políticas de agora, por exemplo. Elas foram tragadas por uma lógica de estratégia de marketing e por um proselitismo que se aproxima muito da propaganda comercial. Também têm os personagens que crescem, que decrescem, e que às vezes nem são candidatos. Nas guerras, idem. Na do Golfo tivemos um teleteatro, com protagonistas e coadjuvantes, tanto que esse conflito foi chamado de videoguerra. Havia ali mais cenas de bombas cruzando o céu do que de campos de batalha. Quem se tornou personagem forte foram os mísseis.
Quem foi o diretor no caso Eloá?
O próprio jogo espetacular. Sem dificuldade conseguimos apontar analogias desse caso com vários outros. São uma espécie de roteiro repetido. Qualquer caso semelhante vai ter desenvolvimento parecido. É como se fosse um Big Brother pra valer, um jogo da morte. Poderia ter sido ainda mais Big Brother se alguém, além de entrar em contato com o Lindemberg pelo celular, tivesse posto uma câmera no apartamento. Nesse sentido vale uma discussão ética, pelo menos no campo da imprensa, para economizar os elementos que depois podem servir à reedição dessas histórias.
Falando em edição, a doação dos órgãos de Eloá se transformou em evento paralelo, como se a história não tivesse fim.
E a história vai continuar com a investigação mais detalhada. Mas isso também é próprio desse tipo de enredo e da forma como toma o espaço público. Teremos ainda o making of, a biografia dos personagens, tudo o que for necessário para prolongar o contato que ao mesmo tempo estimula e sacia pulsões como o medo. A continuação se presta ao gozo do público, que demanda mais, e lhe será servido mais. Essas histórias têm um desfecho e depois os balanços do desfecho. Criam-se às vezes fãs-clubes, por mais mórbidos que sejam. É assim que funciona essa sociedade do espetáculo.
De onde vem esse conceito?
A expressão "sociedade do espetáculo" entra para a literatura e para a crítica a partir do trabalho do francês Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo, livro publicado em 1967. Ali ele identifica que todas as atividades do mercado, todo o capitalismo conflui para o espetáculo. É como espetáculo que as coisas acontecem. Debord tem uma frase interessante: "O espetáculo é o capital em tal grau de concentração que se torna imagem". Como é necessário existir essa dimensão para que algo exista, a narrativa sobre o crime, sobre a política, sobre a guerra, sobre tudo, circula como imagem, como espetáculo. É nesse sentido que os atos da vida cotidiana adquirem essa dimensão às vezes de circo eletrônico mórbido.
O crime do ônibus 174 virou documentário. Acha que o caso Eloá tem o enredo real necessário para ser transposto para o cinema?
Esses episódios que envolvem amor, crime, sangue são histórias que reúnem elementos para virar documentário, livro, filme de ficção etc. O livro A Sangue Frio, de Truman Capote, pode ser apontado como exemplo clássico. Essas "releituras" de casos traumáticos e de grande visibilidade ajudam a prolongar a intensa carga emocional que mobilizaram e, de outro lado, abrem vias para a reflexão e elaboração sobre os significados dessa carga emocional. Nesse sentido, essas adaptações podem ir um pouco além do simples espetáculo.
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