Um grande brasileiro deixa hoje a presidência do Supremo Tribunal Federal: o ministro Gilmar Mendes. Assume o posto seu colega Cezar Peluso. São honestas as leituras que apontam que haverá uma mudança de estilo. O presidente que entra tende a ser mais reservado, especialmente no contato com a imprensa, do que o presidente que sai. Mas não passa de vigarice ideológica a sugestão de que, com Peluso, a Corte volta ao seu natural, cessando o período de superexposição supostamente desnecessária e exorbitante, a que teria sido submetida por Gilmar Mendes. Trata-se de uma leitura vigarista porque isso não aconteceu.
Mendes cumpriu dois papéis fundamentais: um de caráter executivo — pondo para funcionar o Conselho Nacional de Justiça — e outro de natureza institucional, defendendo o Poder Judiciário de afrontas que partiram do Executivo, do Legislativo e, às vezes, de instâncias do próprio Judiciário. Coube-lhe lembrar sempre que os 11 ministros estão na Corte para exercer o direito achado nas leis, não o direito achado na rua. E isso, certamente, incomodou muita gente. Ele acabou alvo preferencial de boa parte do que não presta no Brasil, em especial das correntes que acreditam que se pode atropelar a democracia — e seu devido arcabouço legal — para fazer “justiça”.
O presidente que sai, quando no exercício do cargo, evidenciou que o particular senso de justiça de grupos organizados, ou mesmo de justiceiros, nem sempre atende aos interesses do conjunto dos brasileiros, consubstanciados na Constituição. E este Gilmar Mendes merece ser aplaudido.
Fala-se do estilo mais reservado de Peluso? Pode ser. Mas espero, ou então estará faltando a uma de suas funções, que reaja com a mesma presteza de Mendes se, na sua gestão, sofrer o Judiciário as mesmas afrontas de que foi alvo no tempo em que esteve sob a liderança de Mendes. Nem sempre, felizmente, o antecessor de Peluso falou “nos autos”, o que não quer dizer que tenha falado “fora dos autos”. Se o chefe do Executivo — notem que estou tratando de chefes de Poderes — demonstra inconformismo com o fato de que as pessoas sejam obrigadas a cumprir decisões judiciais, resta ao chefe do Judiciário, INSTITUCIONALMENTE, lembrar que todos estamos submetidos às leis. Se um decreto , como o Programa Nacional-Socialista de Direitos Humanos, na prática, cassa a prerrogativa de um juiz de conceder liminar de reintegração de posse, o presidente do Supremo está obrigado a se pronunciar publicamente a respeito. Não, não é preciso esperar que tal matéria “chegue” ao Supremo…
Gilmar Mendes sempre foi para o debate quando grupos organizados, dentro e fora do poder, decidiram questionar não o resultado do jogo, mas as suas regras. E as regras até podem ser discutidas, sim, mas no ambiente adequado. Não é na base do grito.
E por que se tornou, então, o inimigo público nº 1 de certos grupos, em especial do subjornalismo de aluguel da Internet? Em primeiríssimo lugar, porque foi indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Atacar o ministro era parte da tentativa calhorda de desconstruir o governo anterior. Em segundo lugar, mas não menos importante — e, nesse caso, o temperamento, de fato e felizmente, faz diferença —, porque Mendes não se deixa intimidar por correntes de opinião. E não faz questão nenhuma de ser o queridinho dos politicamente corretos. Nem dos incorretos. Decide segundo o texto da lei, sem qualquer apelo à demagogia. E isso, em tempos em que ministros preferem ser amados a ser justos, pode ser realmente um problema.
Os dois habeas corpus concedidos a Daniel Dantas — rigorosamente legais, o que não torna o banqueiro um sacerdote do bem — lhe renderam uma corrente de maledicência. Digamos que pudesse haver divergência quanto ao primeiro — um ou outro ministros poderiam discordar da decisão —, o fato é que a concessão do segundo, além de legal, serviu para resguardar a autoridade da Corte, que não pode ser desmoralizada, ainda que achemos todos que Dantas não é flor que se cheire. E cumpre lembrar que o habeas corpus foi depois referendado pelo tribunal.
Mendes conteve, sim — e estou certo de que Peluso faria ou pode fazer o mesmo em circunstâncias idênticas —, os arroubos escancaradamente inconstitucionais de setores destrambelhados da Polícia Federal e da Abin. E as instituições lhe devem ser gratas por isso. Não por acaso, os principais alvos de sua ação clara, feita à luz do dia, não ocupam mais seus respectivos cargos. Não porque foram perseguidos por Mendes, que não tinha poder para tanto, mas porque estavam em desacordo com AS LEIS E AS REGRAS que regiam os dois órgãos.
Elogiar Peluso como a afirmar que, em circunstâncias idênticas, ele teria preferido o silêncio à ação corresponde a lhe fazer um convite à omissão, coisa, que estou certo, não vai acontecer. Em seu voto exemplar no caso do terrorista Cesare Battisti, o novo presidente do Supremo parece ter deixado bastante claro que não é suscetível à gritaria de grupos de pressão.
Devemos a Mendes, além dos avanços óbvios no Conselho Nacional de Justiça, a defesa clara e desassombrada das instituições e da independência entre os Poderes. Mais do que ninguém, ele nos lembrou que, na democracia, não existe um Poder soberano.
O supremo mandatário é eleito para ser servo da Constituição, não o seu senhor. Que Peluso faça frutificar a herança bendita de Mendes!