O que vem a ser "alta programada" na Previdência Social?
O trabalhador que dirigir-se à Previdência Social em busca da concessão do benefício de auxílio-doença saberá, assim que tiver confirmado o diagnóstico da doença provisoriamente incapacitante do exercício de atividades laborais, no mesmo instante da conclusão desse diagnóstico, o dia em que estará curado, e no qual, portanto, deixará de receber o benefício.
O detalhe: caberá ao segurado da Previdência Social o ônus da prova de que não ficou curado, apesar da alta médica profetizada, e, enquanto tal prova não for feita, e suficientemente, estará sujeito à cessação do pagamento do seu auxílio-doença, bem como de ser demitido pelo seu empregador sem maiores ônus.
A "alta programada" já vinha sendo praticada pelo INSS independentemente de qualquer normativa legal específica, com base apenas na Orientação Interna 1 Dirben/PFE, de 13.09.2005.
O vício da falta da devida publicidade desta Orientação Interna, "só acessível ao pessoal integrante dos quadros administrativos do INSS", e que "faz recordar os malfadados decretos secretos expedidos nos anos 60, aptos a aplicar punições de rito sumário, sem o devido processo legal", foi enfaticamente denunciado por WAGNER BALERA, que chamou a atenção, também, para outro aspecto, igualmente grave: "na data certa, o computador, devidamente programado, avisa que determinado segurado, até então doente, deve receber alta". (1)
De fato, não é possível ter-se por interna a eficácia de norma administrativa que é apta a afetar os direitos ou interesses dos administrados; na verdade, a Orientação Interna 1 Dirben/PFE, de 13.09.2005, acaba por demonstrar a exatidão do argumento de SÉRGIO FERRAZ e de ADÍLSON ABREU DALLARI, no sentido de que "não cabe mais sustentar a impermeabilidade do Estado como pessoa jurídica, como também é despida de qualquer valia científica a dicotomia relação jurídica administrativa interna/relação jurídica administrativa externa". (2)
Veio a lume o Decreto nº 5.844, de 13.07.2006, publicado no DOU do dia seguinte, e em vigor desde então.
O Decreto nada mais fez do que institucionalizar sob uma forma legal aquilo que já vinha sendo feito na prática pelo INSS, por meio daquela referida "norma interna".
Se restou superado o óbice do secretismo e da absoluta falta de embasamento legal, o Decreto nº 5.844/2006 não foi capaz, todavia, de sobrepujar os demais vícios que também existiam com a aplicação concreta da Orientação Interna 1 Dirben/PFE, de 13.09.2005, e tão ou mais graves do que aquele segredo de polichinelo, certo que inexistia sequer menção a qualquer ameaça a interesses relevantes da sociedade ou do Estado que o pudesse justificar.
Um dos vícios que remanesceram foi o da afronta ao princípio constitucional do devido processo legal, resultado da inversão do ônus da prova da reaquisição da capacidade laborativa pelo trabalhador, antes de incumbência da perícia técnica do INSS, e agora a cargo do próprio trabalhador.
Notando-se que o trabalhador virtualmente não terá por si só conhecimentos médicos especializados para auto-periciar-se, e nem, tampouco, teria recursos para pagar serviços médicos privados que pudessem realizar semelhante perícia – se a legislação admitisse tal espécie de "terceirização", o que não é o caso -, a conclusão é que, forçosamente, continuará a ser a perícia técnica do INSS a habilitada e capacitada a diagnosticar a necessidade da continuidade do pagamento do benefício de auxílio-doença, em que pese a alta previamente anunciadas pelo mesmo serviço de perícia.
Então, qual a razão daquela inversão do ônus da prova?
Tornou-se o INSS, e não o segurado beneficiário do auxílio-doença, a parte hipossuficiente?
Obviamente, não.
O segurado potencial ou efetivamente beneficiário do auxílio-doença teria informações, documentos ou elementos probatórios de qualquer espécie, passíveis de serem sonegados ao conhecimento do INSS e de difícil obtenção por parte de sua fiscalização?
Como o objeto da perícia é o próprio organismo do segurado, e como, também obviamente, o segurado não teria como ocultá-lo quando da perícia, a resposta negativa também aqui se impõe.
Ora, as hipóteses de inversão do ônus da prova previstas em nosso ordenamento jurídico processual, e aplicáveis também no âmbito dos processos administrativos em geral, inclusive, explicite-se, dos processos de concessão de benefícios previdenciários, são todas baseadas naquelas duas situações legitimantes.
Assim, como dito por EDUARDO CAMBI:
"A técnica de inversão do ônus da prova é um instrumento para proteger a parte que teria excessiva dificuldade na produção da prova (v.g., nos casos de responsabilidade civil decorrentes de transporte marítimo) ou para oferecer proteção à parte que, na relação jurídica substancial, está em posição de desigualdade, sendo a parte mais vulnerável (v.g., nas relações de trabalho subordinado)." (3)
E em outra passagem:
"A moderna teoria da carga dinâmica da prova – incorporada, em 2004, ao Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América – sugere a distribuição do ônus da prova não com base na regra tradicional do art. 333 do CPC (fatos constitutivos,para o demandante; demais fatos, para o demandado) nem com base na técnica adotada no art. 6o., inc. VIII do CDC, pelo qual cabe ao juiz, após verificar a verossimilhança da alegação ou a insuficiência do consumidor, inverter o ônus da prova. (...)
"Com o escopo de buscar a mais efetiva tutela jurisdicional do direito lesado ou ameaçado de lesão, no Código Modelo o ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicasmaior facilidade na sua demonstração, não requerendo qualquer decisão judicial de inversão do 6onus da prova. sobre os fatos, ou
"Assim, a facilitação da prova para a tutela do bem jurídico coletivo se dá por força da lei (ope legis), não exigindo a prévia apreciação do magistrado (ope iudicis), de critérios preestabelecidos de inversão do onus probandi, como se dá no art. 6o., inc. VIII, CDC (verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor), bem como não restringe esta técnica processual às relações de consumo." (4)
Não há qualquer razoabilidade na inversão do ônus da prova instituída primeiro pela Orientação Interna 1 Dirben/PFE, de 13.09.2005, e acobertada depois pelo Decreto nº 5.844, de 14.07.2006, seja considerando-se alguma inacreditável posição de inferioridade do INSS em relação ao segurado beneficiário de auxílio-doença, potencial ou efetivo, seja tendo-se em vista algum conhecimento técnico ou informação qualificada que o segurado pudesse sonegar ao conhecimento do serviço de perícias médicas da autarquia.
Então, para que serve aquela inversão do ônus da prova?
Simplesmente para dificultar a renovação da concessão do benefício, e assim fazer o INSS economizar alguns caraminguás, às custas do desamparo do trabalhador que estava a contribuir, compulsória ou voluntariamente, para o sistema da Seguridade Social.
E isto sem que sejam adotadas medidas outras, de muito maior importância e eficiência, como "a implantação do nexo epidemiológico para a concessão sem a emissão da CAT, do benefício auxílio-doença acidentário (B 31), e do B-32 (auxílio-doença comum)", sugerida por LUIZ SALVADOR. (5)
Vê-se, pelo que foi até aqui exposto, que o procedimento administrativo de concessão do benefício de auxílio-doença foi desvirtuado em sua finalidade, posto que agora destina-se não mais a aferir a necessidade concreta, real e efetiva do trabalhador temporariamente incapacidade de exercer suas atividades laborativas, e de assim carecer de socorrer-se junto ao sistema da Seguridade Social; o objetivo, desde a Orientação Interna 1 Dirben/PFE, de 13.09.2005, e reforçado com o advento do Decreto nº 5.844/2006, é o de evitar que o benefício seja renovado pelo maior tempo possível, ainda que o trabalhador possa estar tremendamente necessitado de continuar a receber o benefício, por absoluta falta temporária de condições físicas ou mentais para o trabalho.
E, assim, que aquela Orientação Interna e este Decreto estão a ferir a dignidade humana dos trabalhadores filiados à Seguridade Social, valendo a pena lembrar, com INGO WOLFGANG SARLET, que um dos desdobramentos práticos da observância do princípio da dignidade da pessoa humana é o da inclusão social da pessoa, no sentido de vir também a fazer jus à sua parte quando da distribuição dos bens, através de prestações positivas a cargo do Estado. (6)
Daí porque a outra conclusão não se pode chegar, senão à de que a Orientação Interna 1 Dirben/PFE, de 13.09.2005 e o Decreto nº 5.844/2006 são inconstitucionais.
Finalmente, uma última observação: como dói ver um ex-trabalhador, apoiado a um Partido que nasceu das lutas operárias, maltratar assim, tão covardemente, trabalhadores doentes, que muitas vezes nada mais têm senão o benefício de auxílio-acidente para sustentarem a si e aos seus dependentes!
NOTAS DE REFERÊNCIA
1.WAGNER BALERA, Alta Programada: Quem Foi o Gênio que Estimou Tempo de Cura para Doenças?, Consultor Jurídico, texto disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/43416?display_mode=print , colhido em 01.08.2006.
2.SÉRGIO FERRAZ e ADÍLSON ABREU DALLARI, Processo Administrativo, Malheiros Editores, 2001, p. 24.
3.EDUARDO CAMBI, A Prova Civil – Admissibilidade e Relevância, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 410.
4.Op. cit., p. 340 e 341.
5.LUIZ SALVADOR, Auxílio-Doença: a "Alta Programada" só serve para o INSS reduzir custos, texto disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/46822?display_mode=print, colhido em 01.08.2006.
6.INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2006, 4a. ed., p. 36, nota 30: "(...) Neste contexto, convém seja colacionada a lição de Kurt Seelmann, que, em instigante ensaio sobre as noções de pessoa e dignidade da pessoa humana em Hegel, destaca que o mais apropriado seria falar que, ao pensamento de Hegel (e não estritamente na sua Filosofia do Direito), encontra-se subjacente uma teoria da dignidade como viabilização de determinadas prestações. Tal teoria, além de não ser incompatível com uma concepção ontológica da dignidade (vinculada a certas qualidades inerentes à condição humana), significa que uma proteção jurídica da dignidade reside no dever de reconhecimento de determinadas possibilidades de prestação, nomeadamente, a prestação do respeito aos direitos, do desenvolvimento de uma individualidade e do reconhecimento de um auto – enquadramento no processo de interação social. (...) Como, ainda, bem refere o autor, tal conceito de dignidade não implica a desconsideração da dignidade (e sua proteção) no caso de pessoas portadoras de deficiência mental ou gravemente enfermos, já que a possibilidade de proteger determinadas prestações não significa que se esteja a condicionar a proteção da dignidade ao efetivo implemento de uma dada prestação, já que também aqui (...) o que importa é a possibilidade de uma prestação. (...)".
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