Ruy Barata Neto (rneto@brasileconomico.com.br)
13/06/11 08:14
Gilmar Mendes defende reforma constitucional para deixar claro limites do poder do presidente da República.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na semana passada, de rejeitar o pedido de extradição do ex-ativista político Cesare Battisti pelo governo italiano colocou lenha em um debate em torno dos limites dos poderes do presidente da República e até onde a sua posição influencia ou não a mais alta Corte do país.
Relator do processo, o ministro Gilmar Mendes foi um dos três votos favoráveis à extradição em respeito ao tratado de extradição firmado entre os países em conflito em 1989.
O voto foi dado de forma contrária ao posicionamento, que prevaleceu no STF, de rejeitar o recurso do governo italiano contra a decisão do então presidente Lula de manter Battisti como imigrante no Brasil.
Coordenador pedagógico da Escola de Direito do Brasil (EDB), Mendes fala sobre as posições STF sobre assuntos do poder legislativo e defende a missão da Corte em proteger o indivíduo da sua própria "sanha".
Quais as consequências da decisão do STF sobre o caso Battisti?
O governo italiano já anunciou que recorrerá ao Tribunal Internacional da Haia e agora os Estados vão ter que se entender. Mas o meu posicionamento é claro. Nós acabamos permitindo, em uma segunda época, o resgate daquela ideia do refúgio. As razões do presidente Lula não diferem em nada das apontadas pelo ministro Tarso Genro [que no comando do Ministério da Justiça, em 2008, concedeu a Battisti sob a justificativa de que o ex-militante político viveria em ‘temor de perseguição' ao voltar à Itália] e que no meu entendimento era equivocado.
O papel do Tribunal sai fortemente reduzido desse tipo de interpretação. O que fica é a demonstração de que o executivo pode rasgar as decisões do STF como se fosse um título que ainda valesse [no primeiro julgamento sobre o caso o Supremo autorizou a extradição de Battisti diante de recurso impetrado pelo governo italiano, mas condicionou a decisão final a Lula, então presidente da República].
Tal entendimento estava embasado em experiências anteriores?
Nunca dantes neste país havia acontecido algo semelhante. Disse claramente em meu voto: ‘se permanecer dessa forma é melhor que a competência de julgar casos semelhantes desapareça do judiciário'. Fico imaginando no futuro as pressões que surgirão para que determinada pessoa não seja extraditada desde que o presidente assim não queira.
Esse é um entendimento que precisa ser revisto, se não pelo Tribunal, por uma reforma constitucional.
Como?
É necessário que se deixe claramente na Constituição de que não há sentido em dar esse poder [o de dar a ‘última palavra' sobre a decisão ou não de impedir a extradição de um refugiado] ao presidente da república. Sempre interpretamos a questão desta maneira, a novidade apareceu agora com o caso Battisti.
A Ministra Ellen Gracie anunciou que pretende se aposentar e com a sua saída restaria apenas o senhor e mais dois ministros, Marco Aurélio e Celso de Melo, não indicados pelo Partido dos Trabalhadores (PT). A situação nesse âmbito tende a ser mais suscetível à pressão política?
Nos conflitos que temos tido, em geral, raramente se percebe esse quadro de partidarização porque os critérios para a escolha dos membros do Tribunal foram diversos, em especial pelo governo do presidente Lula, para a escolha dos membros do Tribunal.
Compete mais aos críticos, aos estudiosos, aos acadêmicos fazer essa análise. Mas, em geral, não acho que isso ocorra. Nota-se pelos mais distintos posicionamentos que há neste grupo em questões importantes para o governo. E é bom que isso continue assim.
Se houver uma mudança isso será deplorável. Se começar a indicar juiz com esse viés partidário ou se quiser assumir compromissos políticos aí podemos ter o comprometimento da própria independência da Corte.
Sendo o governo conduzido por Dilma que tem uma característica mais ‘técnica' de gestão essa possibilidade fica ainda menor, concorda?
É. A única indicação feita até agora foi a do Ministro Luis Fux, que fora indicado para o STJ [Supremo Tribunal de Justiça] pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e que, portanto, não tem vinculação estrita com o PT.
Logo que o Ministro Luiz Fux assumiu, inclusive, houve a decisão de não aplicar a lei Ficha Limpa para as eleições de 2010. O senhor avalia que o STF acabou sendo mais uma vez avaliado de forma negativa pela sociedade como em casos anteriores, quando, por exemplo, o Ministro Joaquim Barbosa bradou ao senhor o famoso "saia à rua"?
Na rua a gente encontra um monte de coisa. Não sei se a justiça se busca na rua. O meu conceito é outro. E acho que o Tribunal, inclusive, não pode desconhecer a realidade, mas ele não tem que decidir segundo os ritmos da rua. Até porque a rua é desorganizada. Se você se orienta pelo que diz as ruas você vai dar passos de bêbado. E a justiça não deve fazer isso.
Por outro lado, a missão do Tribunal é muito complexa porque ela faz o exame da legislação, das decisões majoritárias, e tem que decidir contrariando a opinião política majoritária e a própria opinião pública.
A missão é difícil porque as vezes o Tribunal precisa defender o indivíduo da sua própria sanha. Um indivíduo que defende a arbitrariedade policial, daqui a pouco será vítima dela. Então quando o Tribunal coíbe a arbitrariedade policial ele está protegendo o indivíduo que defende isso contra si mesmo.
Em outra decisão recente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) corroborou a decisão de não instaurar processos administrativos contra o desembargador federal Fausto De Sanctis por suposta desobediência no processo que levou à prisão o banqueiro Daniel Dantas. Ele mandou prender o reú mesmo após o senhor ter concedido habeas corpus. O senhor considera a um desrespeito ao STF?
Era um momento singular pelo qual passava o país. Esses grupamentos de polícia, setores do Ministério Público e da Justiça desempenhavam um papel ímpar. Eram como a jabuticaba, uma coisa especial que só existe no Brasil e não é boa. Acho que essas pessoas se sentiram suficientemente fortes imaginando que podiam fazer isso - editar um decreto de prisão preventiva dez horas depois de uma decisão do Supremo libertação do réu. Mas acho que agora já está tudo muito esclarecido.
O senhor acha possível que os advogados de Dantas devem ir ao Supremo ainda exigir punição para o De Sanctis?
Não imagino que isso seja relevante. Acho que o importante é que se desmontou esse sistema. Depois que o Tribunal se posicionou, editou a súmula das algemas [em agosto de 2008 limitou o uso das correntes a presos que oferecerem resistência a prisão ou colocar em risco a vida de terceiros], houve uma revisão das práticas das prisões espetaculares por parte da polícia. Hoje voltamos a um quadro de normalidade e vamos até rir disso ao lembrar que ‘há dois anos existia um juiz que enfrentava o STF'. Vai entrar para o folclore.
Assim como há demonstrações de desrespeito às decisões do STF, há críticos que consideram excessos da Corte ao tocar em temas da competência legislativo como no caso da guerra fiscal e da união homoafetiva. Como o senhor avalia isso?
Quando algum dos poderes assume uma posição há sempre algum tipo de apontamento de um quadro de anormalidade. Mas a questão da guerra fiscal já estava judicializada porque muitos dos benefícios de isenção de ICMS são concebidos sem as observâncias de regras do Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária], como é definido pela Constituição.
O Tribunal demorou muito tempo para julgar, mas não há aqui nenhuma exorbitância. Apenas declara a inconstitucionalidade da lei quem concede o benefício sem a autorização do Confaz. Agora, em relação ao caso da união homoafetiva, temos um caso clássico de demora na condução de algumas disciplinas por parte do legislativo. De qualquer forma, nossa decisão vai ter que ser complementada pelo poder legislativo.
O pleito de divisão dos estados do Pará será um outro aspecto legal sobre o qual o STF deverá se posicionar [existem dúvidas de como a Constituição deve ser interpretada]. Como o senhor avalia a questão?
Em princípio, pela lógica, a separação de áreas vai envolver o pronunciamento de todos os setores envolvidos. Por enquanto, ainda não tenho conhecimento se há alguma ação no Supremo sobre esse assunto em específico, mas creio que a ação vai acabar sendo judicializada. Mas temos alguma prática no que diz respeito a municípios, cujos desmembramentos foram mais rotineiros.
Como desafogar o STF?
Reduzimos muito a distribuição de processos no STF. Antes eram 100 mil processos por ano. E ano passado foram 30 mil, o que já é um passo significativo. Temos que continuar até porque o excesso de processos é resultado da desorganização do judiciário. Quanto mais processos mais chances de termos recursos protelatórios que gerem atrasos que nos envergonhem depois.
A arbitragem é solução?
A sociedade tem que encontrar novas formas de resolver os seus conflitos. O judiciário é uma das formas, mas não pode ser a única. É preciso que a própria administração com orientação apliquem bem o direito.
Há uma massa de casos hoje na justiça tratando sobre cobranças de contas, multas indevidas, e tudo cai no judiciário. Não é razoável. A agenda reguladora, a Anatel, deveria cuidar disso. A sociedade precisa se organizar de outra maneira. Tramitam por ano no Brasil 85 milhões de processos, são 25 milhões de processos novos. Isso é algo anormal.
A quantidade maior de advogados em relação ao número de engenheiros, por exemplo, reflete o estágio ainda lento de desenvolvimento da sociedade brasileira?
O fato de não termos outros mecanismos de solução de conflitos levam as pessoas à justiça, e aí o número de bacharéis acaba sendo um estímulo. Mas imagino que se os pleitos pudessem ser resolvidos no âmbito do administrativo os advogados atuariam lá e não precisariam ir a justiça.
Imagino que toda essa assessoria jurídica iria para locais onde a solução de controvérsias possam ser resolvidas de maneira mais célere. E o Brasil ainda nem chegou em nível ao ápice da crise porque o Brasil tem uma demanda recôndita. Muitas pessoas não têm seus pleitos atendidos porque não vão à justiça.
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