Uma polêmica que eletrifica os subterrâneos do governo Lula acaba de ser perenizada em livro: ‘Teoria da Democracia e Justiça de Transição’, eis o título.
A obra traz a assinatura de Tarso Genro. Reproduz uma aula proferida pelo ministro da Justiça, em agosto, na Universidade Federal de Minas Gerais.
Foi à estante sob o selo da Editora UFMG. É coisa para ser lida numa sentada –54 páginas, incluindo quatro folhas de notas bibliográficas.
Nas dobras do livro, Tarso joga gasolina na fogueira em que crepita um debate insepulto. Envolve a Lei da Anistia e seus desdobramentos.
Defensor do direito dos brasileiros à memória do ciclo ditatorial e à punição dos torturadores, Tarso faz duríssimos ataques ao colega Nelson Jobim.
Ele cita uma tese do ministro da Defesa como síntese de todas as “fórmulas” que sonegam ao país uma verdadeira “conciliação”, “democrática” e “avançada”.
Para Jobim, a Lei da Anistia, de 1979, promoveu a reconciliação nacional ao perdoar os excessos cometidos pelos dois lados –o regime militar e seus opositores.
No miolo do livro, Tarso reproduz uma trinca de frases atribuídas a Jobim:
1. “A questão hoje não é discutir se é a favor ou contra torturadores, mas se podemos ou devemos rever um acordo que foi feito pela classe política”.
2. “Se o Supremo decidir que a Lei da Anistia não é bilateral, o que eu não acredito, terá de enfrentar outro assunto: a prescrição”.
3. “Uma coisa é o direito à memória, outra é revanchismo e, para o revanchismo, não contem comigo”.
Na aula convertida em livro, Tarso dedica-se a desconstruir os raciocínios do colega de Esplanada. No trecho mais acerbo, acomoda Jobim ao lado dos torturadores:
“Quem estabelece um vínculo artificial entre ‘memória’ e ‘revanchismo’ quer, na verdade, dizer que é preciso sacrificar a memória no universo da impunidade...”
“...O direito à memória, que desenterra o passado e o põe sob luzes públicas, não pode ser considerado como revanche...”
“...Sob pena de se defender implicitamente o ‘direito a torturar’ sem a expectativa de punir”, escreveu o ministro da Justiça.
Tarso cita a frase de um “torturador”, recolhida de uma revista. Identificado por uma de suas vítimas, o algoz dissera que “não torturava mulher feia”.
E Tarso: “Isso não gerou nenhum escândalo e nenhum revide do Estado, na defesa da dignidade da pessoa humana mais uma vez humilhada”.
Na única frase em que se permitiu dar razão a Jobim, Tarso assentiu: a Lei da Anistia decorreu de “um acordo feito pela classe política”. Porém, acrescentou:
“Mas também houve um acordo político, feito pelos líderes civis e militares, para a implantação de um regime de exceção que rasgou a Constituição...”
“...E nem por isso esse pacto deixou, mais tarde, de ser considerado ilegítimo”. Para Tarso, nenhum dos dois “acordos” impôs ao país “cláusulas pétreas”.
Acha que a admissão de que os “pactos políticos de contingência” são imutáveis levaria a uma conclusão errônea.
A conclusão de que “o regime militar também não poderia ser substituído por um regime civil”.
Na visão de Tarso, a tese personificada em Jobim impõe ao país “uma política de ‘perdão ao inverso’”. Promove a “equivalência de responsabilidades”.
Ele esmiúça o raciocínio: “[...] A ‘equivalência’ supõe que são iguais em valor os que defendem uma ordem democrática e os que se arvoram em seus juízes absolutos para derrubá-la pela violência”.
Ao igualar torturadores e torturados, atribuindo-lhes “o mesmo valor”, prossegue Tarso, tonifica-se o “apelo para uma sociedade amnésica”.
Sob o esquecimento, “ambos tem sua história dissolvida”. Para “conveniência de quem torturou” e “depreciação humana e política de quem foi torturado”.
Em trecho encharcado de ideologia, Tarso pespega em Jobim a pecha de “neoliberal”. Junta-o ao pedaço da academia e da intelectualidade que tem acesso aos jornais.
“[...] Sob certos aspectos, substituíram a defesa do caminho único do neoliberalismo pela promoção de um trabalho persistente de desmoralização dos ideais democráticos da esquerda, a partir da avaliação de anistia como ‘revanche’”.
Signatário do decreto que concedeu a Cesare Battisti o status de refugiado político, depois revogado pelo STF, Tarso injetou o ex-guerrilheiro italiano no debate.
Considera “emblemático” o tratamento dado a Battisti: “[...] Sua luta armada era a priori a luta do ‘mal’ [...] contra o ‘bem’, representado pelo Estado de Direito italiano”.
Acha que essa “mesma mecânica subjetiva” permeou a transição brasileira. Aos torturados, o papel de agentes do ‘mal’, brindados com o “perdão ao inverso”.
O que fazer? “Somente no trabalho de rememorização é que podemos construir uma identidade que tenha lugar na história”, Tarso escreveu.
Considera imperioso conjugar “disposição e vontade”, para que haja “abrangente apaziguamento social”. Que passa por “justiça às vítimas que caíram pelo caminho”.
Uma “justiça de transição”, na definição de Tarso. Coisa escorada em dois “eixos”: “intervenção educativa” e “criação de memoriais”.
Só assim, Tarso conclui, vai-se “aumentar a consciência moral sobre os abusos do passado, com o fim de construir e invocar a ideia da ‘não repetição’”.
São teses que deixam de cabelos hirtos os militares, sob o comando momentâneo de Jobim, um ex-presidente do STF que Lula converteu em titular da Defesa.
Sulamérica Trânsito
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