"Virou uma gandaia", disse o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, a respeito da onda de aprovações, no Congresso Nacional, de medidas com impacto nos cofres públicos sem a devida fonte de receitas, conforme este jornal (17/6). Em particular, referiu-se a um reajuste salarial, ainda em discussão, que o Poder Judiciário propôs para si mesmo, em benefício de 100 mil funcionários, e sintetizado em manchete do Estado no dia 23 do mês passado: Judiciário quer reajuste de 56% e salário de quase R$ 9 mil para copeiro, a um custo total previsto de R$ 6,4 bilhões por ano.
Gandaia tem vários significados e creio que o ministro lhe deu o de cair na farra ou numa vida desregrada, com atitudes irresponsáveis. O termo é adequado e a gandaia que apontou é até mais ampla, com tons de irrestrita. Ficaremos aqui na dos salários que há tempos se manifesta no governo federal, enfatizando o que se passa no Executivo.
O fenômeno veio se ampliando e corre o risco de se estender em grandes proporções, conforme também mostraram outras manchetes deste jornal em junho: Senado dá aumento de 25% para seus servidores (24/6) - custo anual estimado: R$ 464 milhões; Proposta ressuscita aposentadoria integral para juiz e procurador (dia 29) - custo anual estimado: R$ 2,4 bilhões; Projeto prevê volta de 55 mil que aderiram ao programa de demissão voluntária do governo (dia 30) - custo anual estimado: R$ 1,4 bilhão.
A gandaia, contudo, não se limita a projetos ainda no Congresso, pois já contaminou as folhas salariais. É também uma gandaia empregatícia, cujas raízes podem ser encontradas no próprio Executivo e na área do ministro Bernardo, que é também do Orçamento e Gestão. Alcança, assim, a de recursos humanos. Não estou a dizer que foi ele o compositor da partitura, mas está a executá-la.
Em ritmo de gandaia, ela evidencia um processo desregrado de contratações, alterações de planos de carreira e salários exagerados relativamente ao mercado de trabalho como um todo, com encurtamento do horizonte da escala salarial, ampliando-se mais os salários iniciais que os finais. O pretexto foi o tal fortalecimento do Estado, um eufemismo que acoberta a influência de grupos corporativistas e entidades sindicais, tendo como resultado um legado maldito do governo atual para seu sucessor.
Sobre essa política de recursos humanos seguida pelo governo Lula há um estudo recente do economista Nelson Marconi, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e ex-diretor de Carreira e Remuneração do Ministério da Administração. Foi publicado na revista Digesto Econômico (abril de 2010), da Associação Comercial de São Paulo, e cobre o período 1995-1999.
Entre suas conclusões, estão as de que houve "... ampliação significativa das despesas com pessoal e também dos salários médios, principalmente no Poder Executivo. A diferença entre o salário inicial e final das carreiras foi estreitada, reduzindo incentivos para o desenvolvimento profissional. A elevação do número de servidores ocorreu (também) em áreas de suporte administrativo, tradicionalmente superdimensionadas. O grau de qualificação dos servidores é bastante elevado e há um descompasso entre este último e o nível de escolaridade exigido para o exercício de algumas ocupações... o diferencial de salários entre o setor público federal e o privado é crescente ao longo de todo o período... sendo que para os federais estatutários o aumento foi praticamente de 100%... os últimos dados disponíveis demonstram que um servidor federal estatutário recebe hoje o dobro do que receberia se desenvolvesse suas atividades como empregado do setor privado".
Algumas carreiras mais bem remuneradas no Executivo, listadas no estudo de Marconi, tinham em outubro de 2002 salários iniciais mensais próximos de R$ 4 mil. Já em outubro de 2009 passaram a valores acima de R$ 12 mil, alguns próximos de R$ 15 mil - no primeiro caso, um aumento de 200%, que supera em muito a inflação no período (54%, conforme o IPCA). Conheço muitos estudantes que se formam em Economia e Administração em faculdades de prestígio e, ao ingressarem no mercado de trabalho privado, ficam muito satisfeitos quando encontram um salário inicial próximo de R$ 5 mil por mês.
Na gandaia habitualmente entra em cena um princípio, o da isonomia, que aterroriza quem se envolve na administração salarial do setor público com a preocupação de que esta se paute por regras consagradas da boa gestão de recursos humanos. Em tese, esse princípio diz que as ocupações de mesmo nível hierárquico que envolvem os mesmos requisitos educacionais e outras competências, inclusive experiência, bem como responsabilidades comparáveis, tudo isso avaliado de forma aproximada, devem receber também aproximadamente a mesma remuneração.
Levado ao setor público, contudo, esse princípio tem aplicação distorcida. Assim, um grupo de servidores faz pressões, a que sucumbem gestores irresponsáveis, e consegue se destacar à frente na corrida salarial. Vendo isso, outro grupo reivindica, a título de isonomia, a mesma ou coisa maior, faz pressões de todo tipo e, no processo, é atropelada a citada comparação de requisitos e, em geral, ignorada qualquer isonomia relativamente às remunerações dos trabalhadores não-governamentais.
Foi essa isonomia de conveniência que levou o Poder Judiciário federal a propor o aumento inicialmente citado. Mas, numa gandaia conjunta, nenhum dos três Poderes se preocupa em olhar o que se passa com os salários dos trabalhadores fora do governo e dos aposentados do INSS, os quais, pagando altos impostos, são o grande sustentáculo da folha salarial do governo federal. Deles se pode dizer que recebem menos e pagam um exagero para custear a gandaia alheia.