Num mundo cada vez mais complexo, em que os
desafios no convívio social, familiar e profissional
aumentam em progressão geométrica, adotar regras
se tornou uma questão de sobrevivência. Mas é
preciso saber escolher as que funcionam
Okky de Souza e Vanessa Vieira
Montagem sobre fotos de Paulo Vitale |
A certa altura do livro O Apanhador no Campo de Centeio, o célebre romance de J.D. Salinger, o professor Spencer diz ao aluno rebelde Holden Caulfield: "A vida é um jogo, rapaz. E ele deve ser jogado de acordo com as regras". O Apanhador foi escrito no início dos anos 50, em um tempo em que as regras para viver em sociedade eram em sua maioria guiadas pelo instinto, pelo bom senso, pela naturalidade, dando-se chance à sorte, ao destino, às surpresas. Hoje é diferente. As regras são produzidas em linhas de montagem e viraram mercadorias cada vez mais valorizadas. Jamais houve tanta gente vendendo e comprando ensinamentos sobre como se comportar no trabalho, conquistar o parceiro ideal, ficar mais bonito, melhorar o casamento, educar os filhos, falar bem em público, ganhar mais dinheiro... A lista é interminável.
Espalhou-se com força na corrente cultural do nosso tempo uma febre por regras que, teoricamente, podem garantir sucesso no enfrentamento das mais diversas situações. A evidência mais estridente dessa febre são os livros de auto-ajuda, um ramo de negócios que no último ano, no mundo, arrecadou 8,5 bilhões de dólares. No site da livraria virtual Amazon há nada menos que 37.000 livros diferentes que carregam no título a palavra rule (regra, em inglês). A essa enxurrada de regras compiladas em livros somam-se outras tantas transmitidas em programas de TV e palestras. Elas se tornaram rotina nas empresas como forma de motivar funcionários e lhes inculcar as regras de convivência, quando não de sobrevivência, corporativa.
A busca incessante por regras resulta da necessidade de organizar a vida num mundo cada vez mais complexo em todos os aspectos. Os desafios no convívio social, familiar e profissional aumentaram em proporção geométrica. Os casamentos tradicionais perderam terreno, enquanto famílias formadas por filhos de várias uniões se tornaram mais comuns. Como educá-los na nova ordem familiar? Como devem ser as relações entre os descasados e destes com os novos companheiros de seus ex? Mais gente ainda escolhe viver sozinha, o que acarreta uma mudança na forma de ver e ser visto pela sociedade. No trabalho, os funcionários de perfil tradicional, especializados em sua função, deram lugar à exigência de que todos na empresa tenham habilidades múltiplas. Além do mais, a pressão da sociedade para obter sucesso na vida profissional a todo custo é tremenda. Paralelamente a isso, o volume de informações que circulam pelos meios de comunicação e pela internet é uma algaravia. Todas essas mudanças causam perplexidade e, sobretudo, fazem com que as relações humanas sejam mais complicadas e conturbadas. Daí a necessidade de buscar regras que tornem menos dolorosa, ou mais prazerosa, a adaptação ao admirável mundo novo. Um mundo, enfim, que exige manual de instruções. "A globalização e a crise de valores provocada pela rápida mudança nos costumes no século XX criaram um vácuo de paradigmas na sociedade. Por isso as pessoas buscam novas regras em que se apoiar", diz Roberto Romano, professor de ética da Universidade Estadual de Campinas.
Na pré-história, quando os homens eram apenas caçadores e coletores, não havia grande necessidade de regras senão aquelas básicas, ditadas pela frágil condição humana diante das forças descomunais da natureza. A escassez de espaço e de comida no período subseqüente, o da Idade do Gelo, que se encerrou há 11.000 anos, desencadearia a criação de regras que acompanham a humanidade desde então. Nossos antepassados tiveram a necessidade premente de estabelecer normas mais complexas de convivência. Foi nesse período que o Cro-Magnon, o Homo sapiens, desenvolveu os conceitos de família, de religião e de convivência social. Sabe-se disso porque os homens da Idade do Gelo legaram evidências arqueológicas de uma revolução criativa que inclui desde os espetaculares desenhos nas cavernas até os rituais de sepultamento dos mortos. "Naquele período, era preciso definir quem pertencia à família ou não, e com quem se deveriam compartilhar os alimentos. Portanto, era necessário criar regras específicas", disse a VEJA a arqueóloga Olga Soffer, da Universidade de Illinois. "Podemos afirmar que as primeiras regras sobre propriedade foram criadas nessa fase. Enquanto o território pertencia ao grupo, algumas categorias de objetos passaram a ser individuais", diz o antropólogo Ian Tattersall, curador do Museu Americano de História Natural, em Nova York. Boa parte das regras de convivência social que hoje recheiam os manuais tem como base esse conjunto de normas ancestrais: não mate, não roube, respeite pai e mãe, proteja-se do desconhecido, tema o invisível... As religiões em seu aspecto comunitário nada mais são do que criadoras e garantidoras do cumprimento de regras sob pena da punição divina. Os Dez Mandamentos, base do judaísmo e do cristianismo, são um exemplo notável disso. As regras menores desciam a detalhes quase inimagináveis, como a proibição de usar uma vestimenta feita com dois materiais diferentes, conforme prescreve o Velho Testamento.
É impossível imaginar, portanto, o avanço da civilização humana sem o estabelecimento de regras. Elas nos trouxeram até aqui. Paradoxalmente, a quebra de regras também propiciou grandes saltos evolutivos (veja o quadro). Mas, mesmo quando elas são quebradas, precisam ser substituídas por outras. Isso porque as regras garantem não só a ordem e a proporção como a transmissão de conhecimento. São famosos os exemplos de duas escolas inglesas, Summerhill e Dartington, criadas no início do século XX, na Inglaterra. Elas tentaram formar jovens livres da imposição de regras e pregavam o "autogoverno" dos alunos. Eles não eram obrigados a assistir às aulas, não precisavam fazer o dever de casa e só compareciam às provas se quisessem. Intelectuais como o filósofo Bertrand Russell e o escritor Aldous Huxley apressaram-se em enviar seus filhos para estudar em Dartington. Nos anos 60 e 70, décadas da contracultura, Summerhill chegou, inclusive, a ser considerada uma referência para a modernização das escolas do mundo todo. Dartington foi fechada em 1987, depois de uma série de escândalos envolvendo drogas e sexo entre menores de idade. Summerhill ainda funciona, mas vive ameaçada de fechamento pelo governo britânico, sob a alegação de que os estudantes deixam a escola sem os conhecimentos necessários para entrar na universidade. Ou seja, o vazio de regras leva ao vácuo comportamental e intelectual. "Quanto mais complexa e diversificada uma sociedade, maior a necessidade de regras que equilibrem direitos, deveres e privilégios", diz o antropólogo Roberto DaMatta, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A questão que se coloca, hoje, não é sobre a necessidade ou não de regras. É se não estão sendo criadas regras demais, além da conta mesmo num mundo mais complicado que o de cinqüenta anos atrás. Pautar-se pelos manuais de auto-ajuda, o aspecto mais visível do excesso de normas, não tornaria a existência mais burocrática e previsível? O psicoterapeuta Eduardo Ferreira-Santos, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, acha que sim. Diz ele: "A busca pelas regras prontas sufoca a espontaneidade, a capacidade humana de encontrar respostas novas para novas perguntas. Os manuais com regras para relacionamentos amorosos e educação infantil, por exemplo, desprezam o fato de que nem todos os pais e filhos são iguais. Cada um tem uma história e uma personalidade diferentes". Correto. Regras rígidas levam ao aprisionamento do físico e da alma. Elas são essenciais, porém, para a criação de uma base comum de entendimento da realidade. Elas ajudam a valorizar e a medir os eventos naturais e humanos, dando-lhes uma gradação. O que separa o acrobata de circo do ginasta olímpico? Ora, as regras. Um acrobata pode encantar, mesmerizar, tirar o fôlego da platéia. Outro acrobata entra no picadeiro e desperta as mesmas emoções. Quem é o melhor? Ninguém sabe. Talvez a intensidade dos aplausos seja um indicador de quem mais agradou, mas a questão de quem é o melhor permanece em aberto. Em uma Olimpíada as regras ajudam a apontar, sem muita contestação, quem é o melhor. O atleta olímpico é obrigado a desempenhar uma série mínima de rotinas seguidas de outras manobras que podem ser metrificadas e comparadas e recebe uma nota de zero a 10. O fenômeno que ocorre no mundo atual com uma força avassaladora é justamente esse. Nos mais recônditos domínios da vida humana, as regras e as notas estão substituindo o que antes era apenas uma avaliação mais livre das coisas. O que era apenas graça e ousadia está se tornando cada vez mais treino e segurança. Isso é ruim? Isso é bom? Nem um nem outro. É inevitável.
O desafio que se coloca ao bom senso de cada um é justamente definir quando as regras estão deixando de ser balizamentos saudáveis para se tornar uma prisão. Isso vale para os relacionamentos, para as dietas de emagrecimento e para a política de uso dos computadores pelas crianças da casa. Vale para o código de conduta esperado dos filhos e dos amigos. Vale para o modo de se vestir. Qual o limite? Depende de cada um e de todos, pois as regras só são regras quando aceitas por unanimidade. As mais simples são sempre as melhores. Um livro com o título Como um Cavalheiro Deve Se Vestir pode parecer algo do século XIX, tão anacrônico quanto as polainas, tão inútil como os tílburis. Mas um livro com esse nome existe e é sucesso de vendas na cadeia de lojas de roupas masculinas Brooks Brothers dos Estados Unidos. Seus conselhos são práticos e sábios. No capítulo "Como deve se vestir um cavalheiro para uma entrevista de trabalho", o livro informa que ele deve se vestir da maneira como se vestem as pessoas que já ocupam a posição que ele busca. Ou seja, seria um erro vestir-se como um professor de pré-primário quando se é entrevistado por um selecionador de uma empresa de advocacia. Sábio conselho.
A mesma atitude se deve adotar para diferenciar os manuais de auto-ajuda que contêm regras válidas e razoáveis daqueles que são meros caça-níqueis. O melhor aval, naturalmente, são as qualificações do autor. O médico americano Michael Roizen, considerado uma sumidade na área da longevidade humana, tornou-se um bem-sucedido autor de manuais de auto-ajuda sobre saúde. Seu lançamento mais recente, O Corpo Inteligente, em parceria com o colega Mehmet Oz, vendeu 2,5 milhões de cópias apenas nos Estados Unidos. Ninguém duvida das qualificações de Roizen e, portanto, seus manuais de popularização da medicina, recheados de regras práticas para viver mais e melhor, desfrutam credibilidade. A Universidade Harvard, uma das mais conceituadas instituições de ensino americanas, edita regularmente uma série de manuais médicos com conselhos e regras sobre os mais variados aspectos relacionados à saúde. Escritos com rigor científico, mas em linguagem para leigos, também são um bom exemplo de auto-ajuda.
Outro critério para se orientar no cipoal das obras de auto-ajuda é a longevidade de seu sucesso. Em nenhuma área a febre de consumir regras é tão evidente quanto no mundo dos negócios. Uma miríade de manuais chega às livrarias todo ano, e a maioria deles cai no esquecimento. Uma das obras pioneiras do gênero, Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, do vendedor americano Dale Carnegie (1888-1955), foi lançada em 1937 e já vendeu 50 milhões de cópias. Até hoje é usada em cursos de treinamento profissional de executivos. Seu segredo é o grande conhecimento que o autor tem das relações humanas. As regras que sugere são gerais e versam basicamente sobre a arte de se comunicar. "Conselhos muito específicos podem levar um funcionário ou executivo a decisões que vão contra os interesses da empresa", diz a paulista Lilian Guimarães, ex-diretora de recursos humanos de um grande banco. A psicóloga Lídia Aratangy, autora de O Anel que Tu Me Deste – O Casamento no Divã, avalia que os manuais com conselhos e regras para casais devem ser olhados com especial desconfiança. "Inclusive porque há muitas oposições impossíveis de ser contempladas. O que para um é respeito para o outro é pouco-caso ou abandono. O que para um é demonstração de carinho para o outro é invasão de privacidade", ela comenta.
Se os manuais de auto-ajuda são desprezados por muita gente, não falta quem diga que teve a vida transformada por suas regras. O exemplo mais célebre é o do americano Morris Goodman, um ex-corretor de seguros. Em 1981, sofreu um desastre de avião que o deixou paralisado numa cama. Embora ele estivesse consciente, todas as suas funções vitais eram monitoradas por aparelhos. Apenas oito meses depois do acidente, Goodman saiu do hospital andando e ganhou o apelido de "Miracle Man" (Homem-Milagre). Ele credita sua recuperação às intermináveis horas que passou ouvindo os conselhos de Zig Ziglar, um palestrante motivacional que presta serviços a grandes empresas americanas. "O principal conteúdo das fitas eram mensagens de esperança, de inspiração, embutidas em regras para a manutenção de uma atitude de persistência, de nunca desistir. Essas regras ajudaram a me concentrar nos meus objetivos e desligar a mente de todas as coisas negativas que eu vinha escutando da equipe médica", contou Goodman a VEJA. É evidente que a recuperação de Goodman se deve aos tratamentos que recebeu e à capacidade de recuperação de seu organismo, mas as fitas que ouvia certamente o ajudaram a atravessar os longos meses de agonia. Esse é o papel da auto-ajuda: fornecer regras para levantar o astral nos momentos difíceis. No mundo complexo de hoje, eles são cada vez mais freqüentes. Mas é preciso que cada um selecione as normas que mais lhe convêm e que elas não se transformem em camisas-de-força. Romper com certas regras em determinados momentos é também uma norma a ser observada, para quem busca o sucesso e a felicidade pessoal e profissional.
Equipe motivada
Durante um ano, a empresária paulista Heldy Cardoso Jubanski, dona de uma microempresa de informática, participou de um programa de formação de líderes baseado nos livros de Roberto Tranjan, um conhecido autor de obras de auto-ajuda corporativa. Heldy aplicou na sua empresa as regras que aprendeu e diz ter obtido muito sucesso. As que mais a ajudaram foram aquelas que ensinam a lidar com os funcionários e a motivar a equipe. Passou a conversar com todos os empregados antes de tomar uma decisão importante e a demonstrar ter confiança neles. Também elaborou uma carta de valores da empresa juntamente com a equipe. "Com essas atitudes, consegui criar um ambiente de trabalho mais agradável", ela conta. |
De obeso a esportista
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Subindo na vida
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O jogo da invenção O mundo se move por meio daqueles que criam as regras e dos que as transgridem. Os exemplos mais claros desse movimento pendular estão no mundo das artes CINEMA
PINTURA A criação – As pinturas figurativas do Renascimento, que têm sua expressão máxima na obra de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, foram durante séculos a referência de perfeição artística, com suas medidas precisas, clareza, profundidade e exatidão dos contornos. A transgressão – No século XIX, as obras impressionistas de artistas como Claude Monet e Auguste Renoir diluíram os contornos de figuras humanas e paisagens, criando um novo paradigma na técnica e na estética da pintura. Isso preparou terreno para o abstracionismo – a negação total da arte renascentista.
MÚSICA
A transgressão – A chamada atonalidade, criada pelo austríaco Arnold Schoenberg no princípio do século XX, revolucionou a estrutura musical. No novo sistema, em vez de usar um ou dois tons como pontos focais da música, usam-se todos os doze tons. Nenhuma nota predomina, nem há uma hierarquia de importância entre os tons.
TEATRO A criação – As peças do dramaturgo Ésquilo (525 a.C. a 456 a.C.) formataram a tragédia grega com base na unidade de tempo, lugar e ação. Foram as primeiras a basear-se em mitos e fatos históricos – caso de Os Persas – e introduziram a participação do coro como personagem.
LITERATURA A criação – Publicado em 1605, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, é o marco zero do romance moderno. Antes dessa obra, o que havia eram os "romanças de cavalaria", um apanhado de histórias sem preocupação com o perfil psicológico dos personagens. A transgressão – Ulisses, lançado por James Joyce em 1922, revolucionou a literatura ao introduzir novos recursos de narração, como capítulos escritos no formato de pergunta e resposta, trechos sem pontuação e o chamado fluxo de consciência – quando a narrativa acompanha a livre associação do pensamento do personagem em vez dos fatos exteriores. |
Ilustrações Negreiros |
Com reportagem de Roberta de Abreu Lima,
Paula Neiva, Marcio Orsolini e Daniel Salles
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