Plantão | Publicada em 25/04/2011 às 00h19m
André MirandaRio - Ninguém no Brasil ouviu falar em Milton Coitinho dos Santos, mas, de acordo com o sistema de músicas do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), ele deveria ser um dos mais prolíferos e conhecidos autores de trilhas sonoras para cinema de que se tem notícia. Suas composições viriam de clássicos dos anos 1960 até comédias recentes deste século. Ele teria trabalhado com Glauber Rocha, José Mojica Marins e Anselmo Duarte. E, por essas supostas trilhas, foi recompensado. Em 2009, Coitinho recebeu R$ 33.364,87 de direitos autorais do Ecad. Em 2010, foram R$ 94.453,42. No total, o escritório pagou ao "compositor" R$ 127,8 mil pelas exibições de 24 filmes nos últimos dois anos. Só que Coitinho, na realidade, foi o autor de outro tipo de obra: ele representa a maior fraude já descoberta dentro do sistema de distribuição de direitos autorais do Ecad.
O esquema dos pagamentos irregulares começou a vir à tona em novembro do ano passado, de acordo com uma série de documentos e trocas de e-mails aos quais O GLOBO teve acesso. Na ocasião, a União Brasileira dos Compositores (UBC), uma das nove associações que compõem o Ecad, foi questionada sobre os direitos de Sérgio Ricardo em relação à trilha de "Deus e o diabo na Terra do Sol", filme de 1964, de Glauber Rocha. As composições da obra são de Ricardo e do próprio Glauber, mas a trilha foi registrada como de autoria de Coitinho na UBC em 28 de janeiro de 2009.
- Isso é um roubo, é um crime. Imagino que algum funcionário oportunista pegue uma obra sem autor ou com o nome trocado e a registre em seu próprio nome - diz Sérgio Ricardo. - É uma mostra de como o direito autoral no Brasil é desorganizado. As informações são truncadas, nunca se sabe exatamente o que está sendo pago.
Desde 2009, então, trilhas são registradas em nome de Coitinho. Há obras de todos os gêneros e datas. Estiveram associadas a ele, por exemplo, músicas de "O pagador de promessas" (1962), de Anselmo Duarte; "Macunaíma" (1969), de Joaquim Pedro de Andrade; "Finis hominis" (1971), de José Mojica Marins; "Feliz ano velho" (1987), de Roberto Gervitz; "Pequeno dicionário amoroso" (1997), de Sandra Werneck; e "O homem que desafiou o diabo" (2007), de Moacyr Góes.
" Isso é um roubo, é um crime. Imagino que algum funcionário oportunista pegue uma obra sem autor ou com o nome trocado e a registre em seu próprio nome "
Em todos, ele aparecia no sistema do Ecad tanto como compositor das obras como seu intérprete. Há casos, como no de "Romance" (2008), longa-metragem de Guel Arraes com trilha de Caetano Veloso, em que ele foi registrado como único autor das músicas. Em outros, os autores verdadeiros eram cadastrados com uma participação menor na trilha, para não levantar suspeitas. As músicas de "Casa da Mãe Joana", de Hugo Carvana, foram feitas por Guto Graça Mello. Mas, na ficha técnica do Ecad, Guto teria tido participação em apenas 1.350 segundos da trilha, enquanto 3.755 segundos seriam de Coitinho.
- Isso me parece um grande golpe de uma equipe. Eu acho que apareceu apenas a ponta de um iceberg. É muito dinheiro envolvido na distribuição de direito autoral no Brasil - afirma Guto.
Os valores pagos por cada filme variam de acordo com sua execução no ano. O rendimento em direito autoral das músicas para "Didi quer ser criança" (2004), de Alexandre Boury e Reynaldo Boury, por exemplo, foi de R$ 33 mil em 2010. Porém, 70% da trilha, de autoria de Mú Carvalho, foram inscritos como sendo de Coitinho.
- Até agora não me pagaram o que é devido. É engraçado como é mais fácil alguém inventar que fez uma música e receber o dinheiro da associação do que o verdadeiro compositor ter o que lhe é de direito - afirma Carvalho. - Sendo elegante, eu posso dizer que o sistema do Ecad é, no mínimo, falho.
O Ecad é o órgão responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais no Brasil. A arrecadação é feita em rádios, emissoras de TV, casas de festas, blocos de carnaval, restaurantes, consultórios ou qualquer estabelecimento que toque música publicamente. Depois, o valor é distribuído para as nove associações que compõem sua estrutura, cabendo a elas o repasse para autores, herdeiros, editoras e intérpretes. Atualmente, o banco de dados do escritório conta com 2,3 milhões de obras musicais, 71 mil obras audiovisuais e 342 mil titulares de música.
Parte desse banco de dados está disponível para consulta na internet, num sistema chamado Ecadnet. Em entrevista ao GLOBO no início de março, Glória Braga, superintendente executiva do Ecad, explicou que o Ecadnet é um catálogo mais refinado das obras.
- Ali estão músicas nacionais codificadas para um projeto internacional. Elas têm códigos que sofrem validações variadas, refinamentos de tecnologia. São músicas cujas informações podem ser utilizadas em qualquer lugar do mundo com aqueles códigos. Aquilo é menor do que o banco de dados do Ecad. Outras músicas ficam no nosso banco de dados aguardando validação para que sejam postadas no banco de dados mundial. Aquele é um banco de dados refinado, depurado, sem maiores problemas - disse Glória.
Apesar disso, todas as músicas de Coitinho estavam, até domingo, no Ecadnet.
O Ecad cortou os repasses para Coitinho em janeiro e agora estuda uma maneira de processá-lo. O problema é encontrar o falsário - se é que ele existe. De acordo com Marisa Gandelman, diretora executiva da UBC, Coitinho registrou as trilhas sonoras no escritório da associação em Minas Gerais. Hoje, porém, não haveria informações sobre seu paradeiro. Em trocas de e-mails entre representantes de associações, falou-se que ele poderia ter ido para o exterior.
- Ele descobriu uma brecha e agiu de má fé. Qualquer sistema no mundo tem brecha. A própria ideia da autoria de obra artística depende da presunção da verdade do autor, o que já deixa a maior brecha de todas - explica Marisa. - O direito de autor no Brasil é automático, não carece de registro. No caso dos filmes, normalmente a ficha técnica é levada ao sistema com base num documento preparado pelo produtor. Quando a ficha não é catalogada, o dinheiro fica retido até aparecer um titular. O Coitinho se inscreveu como autor de filmes cujas fichas não foram providenciadas. Como não havia outra ficha, o problema não foi logo percebido. Mas só quem faz parte do sistema tem acesso a essas informações.
" Como não existe um método de depósito de fonogramas, a gente não sabe se a obra existe mesmo ou se foi feito um cadastro de má fé. E as associações não checam os cadastros "
Outra particularidade no registo autoral brasileiro é que cada uma das dez associações do Ecad tem modelos próprios para registro e não se exige do autor um fonograma da obra.
- Como não existe um método de depósito de fonogramas, a gente não sabe se a obra existe mesmo ou se foi feito um cadastro de má fé. E as associações não checam os cadastros - afirma Juliano Polimeno, diretor executivo da Phonobase, agência de música de São Paulo.
- Na Espanha, a associação Sgae determina que o cadastro de obra seja feito junto com o áudio. Além disso, fora do Brasil existe uma padronização no cadastro. Aqui, o Ecad não tem um padrão - afirma o advogado Daniel Campello Queiroz.
A revelação do esquema de Coitinho coincide com o debate sobre a reforma da Lei do Direito Autoral. Hoje, o projeto que foi preparado pela gestão anterior do Ministério da Cultura (MinC) volta para consulta pública, a fim de receber sugestões até 30 de maio. Diferentemente do que ocorreu em julho do ano passado, quando o MinC fez a primeira consulta, porém, os internautas não terão acesso às contribuições de terceiros.
Um dos pontos mais polêmicos da reforma está, justamente, na necessidade ou não de se criar um ente governamental fiscalizador do Ecad - atualmente, o escritório é autônomo.
Escritório Central de Arrecadação e Distribuição
O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - ECAD é o órgão brasileiro responsável pela a arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos seus autores, tendo sua sede localizada no Rio de Janeiro.[1] É uma instituição privada sem fins lucrativos criada pela Lei nº5.988/73 e mantida pela Lei Federal nº 9.610/98.[2][3]
Índice[esconder] |
[editar] Como Funciona
O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) é uma sociedade civil, de natureza privada, instituída pela Lei Federal nº 5.988/73 e mantida pela atual Lei de Direitos Autorais brasileira – 9.610/98. Administrado por dez associações de música para realizar a arrecadação e a distribuição de direitos autorais decorrentes da execução pública de músicas nacionais e estrangeiras. Com sede na cidade do Rio de Janeiro, 24 unidades arrecadadoras, 700 funcionários, 60 advogados prestadores de serviço e 131 agências autônomas instaladas em todos os Estados da Federação, a instituição possui ampla cobertura em todo o Brasil.[1]
O controle de informações é realizado por um sistema de dados totalmente informatizado e centralizado, que possui cadastrados em seu sistema 245 mil titulares diferentes. Estão catalogadas 1,75 milhão de obras, além de 760 mil fonogramas, que contabilizam todas as versões registradas de cada música. Os números envolvidos fazem com que aproximadamente 72 mil boletos bancários sejam enviados por mês, cobrando os direitos autorais daqueles que utilizam as obras musicais publicamente, os chamados “usuários de música”, que somam 399 mil no cadastro do ECAD.[1]
[editar] Associações Integrantes
A Assembléia Geral, formada pelas associações musicais, é responsável pela fixação dos preços e regras de cobrança e distribuição dos valores arrecadados. Os titulares de direitos autorais são filiados a estas associações, que por sua vez são responsáveis pelo controle e remessa ao ECAD das informações cadastrais de cada sócio e dos seus respectivos repertórios, a fim de alimentar seu banco de dados e possibilitar a distribuição dos valores arrecadados dos diversos usuários de músicas.[1]
[editar] Associações Efetivas
- ABPD - Associação Brasileira dos Produtores de Discos
- ABRAMUS - Associação Brasileira de Música e Artes
- AMAR - Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes
- SBACEM - Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música
- SICAM - Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais
- SOCINPRO - Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos Intelectuais
- UBC - União Brasileira de Compositores
- Associações Administradas
- ABRAC - Associação Brasileira de Autores, Compositores, Intérpretes e Músicos.
- ANACIM - Associação Nacional de Autores, Compositores, Intérpretes e Músicos.
- ASSIM - Associação de Intérpretes e Músicos.
- SADEMBRA - Sociedade Administradora de Direitos de Execução Musical do Brasil.
Notas e referências
- ↑ a b c d "A Instituição". ecad. . (página da notícia visitada em 14/10/2010)
- ↑ "LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998.". planalto.gov.br. 1998. (página da notícia visitada em 15/10/2010)
- ↑ "LEI Nº 5.988, DE 14 DE DEZEMBRO DE 1973.". planalto.gov.br. 1973. (página da notícia visitada em 15/10/2010)
[editar] Ligações externas
- ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição
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