Edinho
''Fui criado por uma mãe solteira"
O filho de Pelé revela detalhes inéditos de sua vida na prisão e reclama da ausência do pai em sua formação
Rodrigo Cardoso
Com ar despojado e meiões abaixados rente ao tornozelo, o atacante Neymar, craque adolescente sensação do Santos Futebol Clube, olha de soslaio para um dos três auxiliares técnicos do clube da Baixada Santista que caminha à beira do gramado e o cumprimenta: “Fala aí, príncipe!” Faz um bom tempo que o rei Pelé não dá mais expediente entre os boleiros da corte santista. Essa função, atualmente, é desempenhada por Edson Cholbi do Nascimento, o Edinho, 39 anos, filho do ex-camisa 10 com a ex-esposa Rosemeri. O príncipe, que um dia foi goleiro do clube, é parte da comissão técnica há quatro anos, mas quer ser técnico de futebol. A mais recente de suas 13 tatuagens revela sua disposição: “Lutarei até o fim.” A frase, que vem sendo esculpida no antebraço esquerdo, deixará marcas menos profundas do que as que foram produzidas por um episódio prestes a completar cinco anos.
Em junho de 2005, Edinho foi preso, acusado de envolvimento com o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro e passou um ano e meio atrás das grades. A primeira ação penal foi anulada. A outra ainda corre no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Condenado a trocar as páginas esportivas pelas policiais, assumiu ser usuário de maconha, mas nunca perdeu o posto diante da esposa, Jéssica, com quem está casado há 13 anos, das filhas Stephany, 10, e Sophia, 7, da mãe e do pai. Eles foram o incentivo para que ele, ao deixar o inferno, se agarrasse ao futebol. Mais uma vez. Na entrevista a seguir, o ex-jogador não escondeu o jogo ao falar, pela primeira vez, detalhes sobre o período em que esteve detido. E sobre como reinventou a relação com o pai, já na idade adulta.
SOBREVIVENTE
Aos 39 anos, Edinho quer ser técnico de futebol,
não fuma mais maconha e está selecionando as companhias
"Só adulto percebi que meu pai nunca foi meu. A gente o tomou
emprestado, mas ele teve de voltar para o mundo"
"Certa vez, enquanto estava preso, tive de comer o pão
que estava em um lixo. Fazia 13 horas que eu não comia"
Você jogou futebol na prisão?
Sim. Eu tinha moral lá dentro! Arranjei uns coletes para dividir os times. Apostávamos Coca-Cola, cigarro. E aconteciam alguns campeonatos, os chamados inter-raios. Aí, rolava torcida, uma responsabilidade maior. Como se separava uma briga entre presidiários num jogo? Com os policiais dando tiros para cima. Na cadeia, eu não jogava no gol. Em uma pelada não é tão divertido. Todo mundo quer atacar, ninguém quer marcar e quer que o goleiro pegue tudo. Ficar tomando bolada na cara não dá!
Ter a figura do Pelé atrelada a você ajudou ou atrapalhou na época em que esteve preso?
No sistema (cadeia), não ajudou nem atrapalhou. Ser filho de quem sou surge no primeiro contato. Mas logo no segundo já sou visto ou como um cara legal ou como um f.d.p.
Como se sentiu ao ouvir seu pai, em público, chamar para ele a responsabilidade sobre seu vício?
Quando ele desabafou, estava mal informado. Tinha acabado de sair de uma reunião e se sentou numa mesa para uma coletiva, depois de lhe contarem um caminhão de mentiras. Ele reagiu a um quadro errado que foi pintado. Mas é evidente que meu pai deve ter algum sentimento de culpa por sua ausência (na criação de Edinho).
Quais são as mentiras a que se refere?
Foi construída uma imagem de que eu seria um traficante, um monstro que oferecia perigo à sociedade. Nunca fui nem viciado, só declarei ser usuário de maconha. Cheguei a ir a uma clínica para ser avaliado e disseram que lá não era lugar para mim, porque eu não era dependente. Meu pai, hoje, tem muita bronca das pessoas que o informaram daquela maneira.
É contra o fato de um jovem experimentar maconha?
Se for maior de idade, não. Mas se puder não ter contato, melhor. Prefiro que minhas filhas nunca tenham contato, mas não vou condená-las por experimentar. Só torço para que, pelo menos, tenham mais de 18 anos. Fumei maconha pela primeira vez nos Estados Unidos, quando jogava basquete nas quadras do Bronx. Não fumo desde que fui preso, mas fumei na adolescência toda. Parei quando comecei a jogar futebol e retornei depois. Nunca cheirei (cocaína), nem bebo. O único mal que fiz para mim foi a maconha.
Qual erro o colocou atrás das grades?
Fui imprudente. Não havia caído a ficha de que eu não era um cara comum. Não fui criado como o filho do Pelé e não ajo como filho dele. Infelizmente, por ser filho de quem sou e por uma certa imprudência ao falar, usar gírias... Não escolho amizades, mas talvez não vá frequentar certos amigos ou falar ao telefone porque pode não ser saudável para mim e para a minha família (escutas telefônicas gravadas entre Edinho e seu amigo Ronaldo Duarte Barsotti de Freitas, o Naldinho, apontado como um dos líderes do tráfico de drogas na Baixada Santista, culminaram com a prisão do ex-goleiro).
A prisão mudou sua relação com Pelé?
Depois da prisão, eu e meu pai nos aproximamos mais. Se houve algum efeito bom, foi esse. Embora a nossa reaproximação tenha se dado quando voltei ao Brasil (nos anos 80) para jogar futebol. Desde então, divergimos, mas nunca tivemos conflitos graves.
Algum episódio é marcante nessa mais recente aproximação?
O dia em que meu pai foi me visitar (na penitenciária), em Presidente Bernardes. Eu já havia dito que não queria que ele fosse, para preservá-lo. Mas meu advogado me preparou para uma possível visita. E um dia o guarda me chamou e lá estava ele. Foi uma única visita no ano e meio em que estive preso, mas esse gesto de apoio me surpreendeu. O encontro durou uma hora e não conversamos muito. Houve muitos olhares, abraços... A hora em que ele me viu, chorão que é, se derramou todo, teve de se recompor para podermos continuar. Bom, meu pai atendeu quase o presídio todo, os guardas, imagina a situação! Tudo o que envolve meu pai é surreal.
Pediu desculpas a ele?
Foi doloroso ver meu pai triste, não queria que ele passasse por isso. Mas não fiz nada que merecesse o que passei. Não sou culpado de nada; então, não tinha por que me desculpar.
Foi bom ser filho do Pelé mesmo morando nos EUA?
Considero uma grande vantagem eu não ter essa associação (com Pelé) lá. Fui criado no único país do mundo em que isso seria possível. Não teria outro lugar – Europa, Ásia, América Latina – onde não seria o filho dele. Nos Estados Unidos, o futebol estava no início e existiam – e existem – outros esportes mais populares. Lógico, quando falavam Pelé, todos os americanos sabiam quem era. Tanto que meu pai era matéria de estudo das aulas de educação física e história no colégio que frequentei. Acabei estudando meu pai no colégio (risos). Mas tive a liberdade de ser criado como o filho da Rose.
E foi bom?
Fui criado por uma mãe solteira. Isso foi fundamental, extremamente positivo. Temo o que eu seria se tivesse sido criado no Brasil. Mas a separação dos meus pais não foi boa para mim. Senti muito a falta do meu pai. Somente adulto percebi que meu pai nunca foi meu, da minha mãe ou da minha família. Ele é do mundo. A gente o tomou emprestado por um tempo, mas ele teve de voltar para o mundo.
Você se policia para não se distanciar das suas filhas como ocorreu na sua relação com seu pai?
Sim. É algo que fica martelando na minha cabeça. Sou um pai participativo, estudioso. Me esforço ao máximo para que elas tenham o que eu não tive: o pai em casa. Quando pensava em ser pai, sempre tinha na cabeça o fato de ser dedicado, pai de verdade. Me preparei muito para isso.
Como educa suas filhas?
A vida delas é regida por horários. Estudei em colégio interno. Também tive horário para dormir, fazer a cama, estudava de terno e gravata, lavava a roupa, tirava a refeição da mesa... Graças a isso, o dia a dia da cadeia não me assustou. O pessoal na penitenciária até brincava: “Pô, parece que você já tirou dez anos de cadeia!”
Como se faz para contar para as filhas pequenas que o pai está preso?
Minhas filhas viram os policiais entrarem na nossa casa, revistarem tudo e me levarem preso. Imagino que, também, viram notícias na tevê e devem ter escutado coisas na escola, na rua, dos amigos. Em um primeiro momento, eu e minha mulher optamos por uma camuflagem. Dissemos que eu estava em uma escolinha. Depois, quando elas passaram a me visitar (na penitenciária), em Tremembé, expliquei que estava preso. Mas tentava não alimentá-las com informações que não poderiam assimilar. Só respondia o que elas perguntavam. Não sou a favor de deixar de posicionar a criança, seja da forma que for. Brincávamos em um salão (da penitenciária), comíamos, pintávamos, corríamos. Era um momento feliz. Mas a hora em que elas iam embora era muito triste. Eu as acompanhava até o último portão que podia. Daí, cada um ia para o seu lado, acontecia a última olhadinha para trás... complicado. Preferia não receber visita para não passar por isso.
Conviveu com quais presos notórios?
Com o Fernandinho Beira-Mar (Luiz Fernando da Costa, um dos maiores traficantes de armas e drogas da América Latina), o Marcola (líder do PCC), o Bin Laden (Célio Marcelo da Silva), que sequestrou a mãe do Robinho. Critiquei o que ele fez. Falei para ele que foi covardia. Depois, até fiquei meio preocupado.
Você fez amizade com o sequestrador da mãe do Robinho ou com esses outros presos famosos?
Não. Eu apenas disse para o Bin Laden que o Robinho era favela, uma pessoa humilde e que foi sacanagem ele ter feito aquilo. Eu o encontrava, assim como via os outros presos, no pátio. A gente tinha liberdade para conversar, mas só isso.
O que a prisão lhe trouxe de bom?
Fortalecimento. Há pouca coisa que me tira do sério. Não há desconforto que eu não tenha passado. Certa vez, em uma cela de delegacia, aguardando o momento de ser transferido para outro presídio, tive de comer pão que estava em um lixo. Fazia 13 horas que eu não comia. Na cadeia, às vezes, a marmita vinha com comida azeda ou com larva. Eu tentava separar um pouco o alimento e comia. Mas nunca me considerei um derrotado. Estou sempre vencendo, mesmo que seja um desafio no inferno. Hoje, estou aqui de pé, vivo, para contar essa história.