A tragédia que se abateu sobre o Rio de Janeiro mostra que não há mais tempo a perder: é preciso superar velhos tabus e adotar, com urgência, uma política firme e responsável de remoção das pessoas que vivem em áreas de risco
Eliane Lobato e Wilson Aquino O amanhecer no Rio de Janeiro na terça-feira 6 foi estranho sob todos os aspectos. Não havia ruído de carros, as ruas estavam vazias e as lojas fechadas. Em muitos bairros, o que era calçada tinha virado um amontoado de lama, avenidas tinham se alinhado à Lagoa, crateras se abriram no solo, a chuva que caíra forte durante a noite ainda castigava a cidade e o vento varria o nada – porque era o nada que ocupava o espaço público do mais belo cartão-postal do País. O Rio entrara em colapso. Não era uma parte, uma região, um lugar. Desde a requintada zona sul, passando pela zona norte e indo até os confins da zona oeste, tudo parou e todos, ricos e pobres, foram afetados. Não há registro na história recente das grandes metrópoles de uma pane urbana paralela. Um governador e um prefeito repetiam à exaustão o pedido para que as pessoas não saíssem de casa. Pela televisão e pela internet o carioca viu a destruição que o temporal tinha causado. Além das enchentes e do caos urbano, o pior: pessoas tinham morrido. Noventa por cento das quase 200 pessoas mortas até a sexta-feira 9 foram engolidas pela terra que deslizou do alto dos morros em que moravam. Em Niterói, até o final da tarde da sexta-feira, 111 corpos haviam sido resgatados e os bombeiros estimavam em cerca de 200 o número de pessoas ainda soterradas. Em São Gonçalo, 16 pessoas morreram; em Santa Tereza, na região central da capital, 21 corpos foram localizados e o trabalho de resgate se reproduzia em todas as partes da cidade e da região metropolitana. São pessoas que perderam a vida numa tragédia anunciada. Moravam em áreas de risco, em encostas de favelas. E, desde que o mundo é mundo, todos sabem que esses lugares são endereços de catástrofes. Não foi a primeira e não será a única se a questão não for enfrentada com coragem. Se, ao longo de décadas, as autoridades não tivessem negligenciado a urgência da desocupação das áreas de risco no Rio, hoje não estaríamos lamentando a perda de tantas vidas. É preciso remover todos os moradores de encostas e beiradas de rios urgentemente. “Sabe por que essa remoção é urgente? Porque a qualquer momento podem ocorrer novos deslizamentos, devido a novas chuvas ou ao efeito retardado das chuvas que já caíram e infiltraram os terrenos”, alerta Leonardo Becker, engenheiro civil especializado em geotecnia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Lixo e entulho nas encostas são um perigo, e nossas favelas têm essa característica”, disse o ex-presidente da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e professor de engenharia civil da PUC/RJ Alberto Sayão. “As áreas de risco já estão mapeadas. Só falta o governo remover quem vive nelas”, acrescenta. Segundo o vice-governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB), “realizar as remoções é um enfrentamento que não é mole” porque esbarra, principalmente, em duas dificuldades: “a burocracia e a demagogia.” Ele diz que apenas a palavra “remoção” provoca arrepios em muita gente. Mas, para preservar vidas, é necessário superar um tabu que, ao que tudo indica, teria começado a partir das ações do governo de Carlos Lacerda, no início dos anos 1960, que retirou, na marra, os habitantes das favelas da zona sul e mandou-os para bem longe: a Cidade de Deus e Bangu. O problema é que essa população foi abandonada nas fronteiras urbanas, sem nenhuma infraestrutura, o que gerou comunidades ainda mais sofridas e violentas, como retrata o filme “Cidade de Deus”. A história ensina que remover, no sentido urbano, não é apenas tirar de um lugar e colocar em outro. “Ao longo dos anos, a missão da ocupação do solo urbano não foi tratada com a devida seriedade e nada justifica a incapacidade do poder público de impedir a construção em áreas de risco”, adverte o governador Sérgio Cabral. “É muita, muita, muita demagogia. De ONGs, de políticos, de gente que diz que defende os direitos humanos. Mas que direito? De morrer numa encosta?”, completa o vice Pezão. “Em três anos e três meses de governo Sérgio Cabral nós removemos 7.200 famílias, ou seja, mais de 30 mil pessoas.” A desculpa usada por seguidos governos para explicar uma política absolutamente eleitoreira e permissiva é a resistência da população em abandonar um lugar que é próximo ao emprego, à escola e aos amigos. Segundo o presidente do Movimento Popular de Favelas, William de Oliveira, também ex-presidente da Associação dos Moradores da Rocinha, a maior favela do País, isso mudou. “Não dá mais para continuar contando mortos em tragédias. Sempre fui favorável à remoção, que agora rebatizamos de realocação.” Oliveira pede uma “política de habitação séria” e que o morador não seja transferido para lugares que inviabilizem o trabalho. “Se tiver que usar a força para tirar as pessoas de lugares condenados, que seja. Importante é que esteja viva”, disse. Na quinta-feira 8, o prefeito Eduardo Paes publicou no “Diário Oficial” um decreto declarando 158 áreas do Rio, afetadas por deslizamentos de terra, em situação de emergência. Isso significa que a Secretaria de Saúde e Defesa Civil passa a ter direito de entrar nas casas nestes locais, mesmo sem consentimento dos moradores, e retirar as famílias, à força, se necessário. “Se houver resistência, chama a polícia”, resumiu o prefeito. Paes anunciou que vai começar já a remover pelo menos dois mil dos 13 mil moradores que, segundo ele, vivem em áreas de risco na capital. E vai começar pelo Morro dos Prazeres, em Santa Tereza, no centro, o lugar mais atingido por desabamentos na última semana. Segundo Elisa Rosa, presidente da Associação dos Moradores dessa comunidade que contabiliza nove mil habitantes, pelo menos 16 casas foram arrastadas pela avalanche – e ainda há gente soterrada nos escombros. “meu filho, eu te amo” “Me tira daqui. Eu tô aqui, pai. Me tira daqui logo.” O apelo desesperado de Marcus Vinicius Vieira França da Mata, 8 anos, insiste em ecoar na cabeça dos parentes e dos bombeiros que tentaram resgatá-lo dos escombros no Morro dos Prazeres, em Santa Tereza, no Rio. Ele foi localizado com vida, na terça-feira, 6, mas as tentativas de salvamento tiveram que ser interrompidas às 18h30, devido a um novo deslizamento. Quando o trabalho recomeçou, no dia seguinte, Marcus já estava morto. A reação do pai, Vilmar França da Mata, ao vê-lo inerte e todo enlameado emocionou o País todo. Ele arrancou o frágil Nesse momento, a prioridade é “salvar vidas.” Se alguém disser que as escolas municipais não são confortáveis para abrigar os que serão removidos, vai ouvir do prefeito um sonoro “Dane-se, pelo menos está seguro.” De acordo com o presidente da Federação das Favelas do Rio (Faferj), Rossino de Castro Dinis, existem 942 favelas na capital fluminense, totalizando quase dois milhões de habitantes. “As pessoas não podem ser retiradas de casa e amontoadas em ginásios. Defendemos os reassentamentos”, acentua. “É verdade que não podemos criar depósitos humanos, mas a remoção com seriedade e responsabilidade é inevitável”, afirma o governador Cabral. COMO SURGIRAM AS FAVELAS DO RIO Poucos sabem, mas a origem das favelas tem vínculos até com a Guerra de Canudos, na Bahia. De volta ao Rio, em 1897, soldados que ficaram sem soldo chamaram de Morro da Favela a elevação na qual se instalaram de forma precária. O termo favela refere-se a uma planta abundante em Canudos. Aos poucos, “favela” passou a designar áreas similares às dos soldados. À época, outros morros do Rio já abrigavam escravos libertos. A grande ocupação, porém, começou cinco anos depois, quando a derrubada de 1.600 construções abriu espaço para as reformas urbanas do prefeito Pereira Passos. Expulsos de casa, muitos dos moradores desses casarios seguiram o rumo dos soldados e dos ex-escravos. Foi um caminho sem volta. Na verdade, como disse a pesquisadora Suzana Pasternak no livro “Cidade (i)legal” (Mauad Editora), “o Estado burguês” se debate no dilema de defender a propriedade privada de um lado e cuidar do bem-estar da população, do outro. Para ela, a armadilha é a seguinte: “Primeiro, há a invasão, a ocupação coletiva de glebas ociosas” e, depois, “o governo é colocado perante o fato consumado.” E aí se vê obrigado a levar luz, água, saneamento, etc. Ou seja, acaba oficializando a invasão. Por isso, a política de remoção não termina com o reassentamento digno. “Tem que remover e impedir que elas voltem para as antigas áreas de risco ou habitem outras”, frisa o pesquisador da Coppe/UFRJ, Moacyr Duarte. Também são inaceitáveis as frequentes desculpas referentes à surpresa em relação às chuvas inesperadas, como vimos recentemente em Santa Catarina e em São Paulo. Dessa vez, segundo o Alerta Rio, instituto de meteorologia ligado à prefeitura, em 24 horas choveu no Rio quase o dobro do que estava previsto para o mês inteiro. Porém, o que mais é preciso para que as autoridades entendam que o padrão climático mudou no mundo inteiro devido ao aquecimento global? Já sabemos que o volume de chuvas num país tropical como o Brasil só tende a crescer e tragédias como as que se abateram sobre o Rio certamente irão se repetir em outras grandes cidades brasileiras, pois em todas elas o descaso com as ocupações das áreas de risco é semelhante. “As grandes cidades sofreram uma destruição ambiental violenta”, explica Agostinho Guerreiro, presidente do Conselho Regional de Arquitetura (Crea-RJ). A desgraça que atingiu o Rio, para ele, estava anunciada há tempos: “As chuvas acontecem todos os anos. E todos já sabem que os fenômenos climáticos estão mais graves devido ao aquecimento global.” Por fim, nunca é demais lembrar a união de forças para socorrer uma cidade em estado de calamidade, como está o Rio de Janeiro, sede da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. Os governos estadual, municipal e federal deram as mãos para tomar atitudes rápidas. Pelas contas do prefeito e do governador, são necessários R$ 370 milhões para realizar obras de drenagem e contenção de encostas. O presidente Lula liberou, na quinta-feira 8, por meio de uma medida provisória emergencial, R$ 200 milhões. Além da afinidade dos três níveis de poder na questão da liberação de recursos financeiros, a tragédia do Rio pode representar um marco na política de ocupação do solo urbano. Assim como o governador e o prefeito, o presidente Lula também se manifestou a favor das remoções com responsabilidade e até os representantes dos moradores dos morros e das encostas já admitem que a retirada dessas áreas é inadiável. A verba é fundamental. Porém, mais que ela, é necessário agir rápido para que nunca mais venhamos a chorar a morte por soterramento de um menino como Marcus Vinicius Vieira França da Mata, 8 anos, cujo único delito era morar, com a família, numa área de risco num lugar condenado que ainda tem o nome de Morro dos Prazeres.
PRAÇA DA BANDEIRA,
início da noite da segunda-feira 5: uma metrópole inteira entra em colapso
MORRO DO BUMBA, NITERÓI,
madrugada de quinta-feira 8: uma busca desesperada por sobreviventes
Duas faces da mesma tragédia
O martírio dos habitantes da zona sul e a luta pela sobrevivência das populações carentes,
em meio à implacável destruição das águas que levou o Rio ao colapso
DOR
Vilmar França é consolado por bombeiro ao lado do corpo do filho
corpo dos braços do bombeiro e abraçou o filho, desesperado. E chorou.
Chorou muito e convulsivamente. “Meu filho, eu te amo”, gritava.
ORIGEM
Obras da reforma urbanística (acima) e soldados da Guerra de Canudos
Colaborou Caio Barretto Briso