Dois anos depois, o caso que comoveu o País tem agora o seu julgamento final. Na segunda-feira 22, na sala número 3 do II Tribunal do Júri de São Paulo, o casal Alexandre Alves Nardoni e Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá Nardoni estará sentado lado a lado no banco dos réus. Os dois enfrentarão a acusação de terem assassinado a garotinha Isabella, de 5 anos de idade, no final da noite de 29 de março de 2008. Segundo a denúncia do promotor de Justiça Francisco Cembranelli, a menina foi estrangulada pela madrasta, Anna Carolina, e arremessada pelo próprio pai, Alexandre, através da janela do sexto andar do prédio em que moravam, na zona norte de São Paulo. A barbaridade do crime, que abalou a sociedade e resultou na execração pública dos dois acusados, faz com que esse julgamento tenha uma atenção especial. Nunca se assistiu no Brasil, desde que o Tribunal do Júri foi aqui instituído, em 18 de julho de 1822, semelhante mobilização popular em torno de um processo criminal. Somente o Google registra mais de um milhão de buscas referentes ao casal, há no Orkut cerca de mil comunidades debatendo diariamente o crime (as 12 maiores reuniam na última semana 97.639 seguidores) e o promotor Cembranelli tem consigo mais de 50 cartas de brasileiros no Exterior que acompanham os fatos – a título de comparação, o até hoje misterioso desaparecimento em Portugal da menina inglesa Madeleine McCann, fato que frequentou a mídia nos quatro cantos do mundo em 2007, apresenta no Google idêntico número de buscas.
Os Nardoni declaram-se inocentes desde a morte de Isabella, nunca se desmentiram ao longo de dois anos e jamais uma parte acusou a outra, como esperava a promotoria quando da decretação da prisão temporária e, a seguir, a prisão preventiva. Ambos devem reiterar essa condição ao serem interrogados no tribunal. Anna Carolina e Alexandre são culpados? Anna Carolina e Alexandre são inocentes? Na madrugada da quinta-feira 25 – transcorridos três dias de julgamento e ouvidas 24 testemunhas –, quando o juiz Maurício Fossen ler o veredicto dos sete jurados que integrarão o Conselho de Sentença, a resposta virá. Tal dúvida será então definitivamente dirimida nesse júri que traz em si uma revolução: pela primeira vez no País as provas serão avaliadas exclusivamente com base em evidências técnicas e científicas. Vejamos, então, como Alexandre e Anna Carolina chegarão a esse Tribunal do Júri. E quais as estratégias de acusação e defesa que nele se desenrolarão.
Anna Carolina e Alexandre sairão algemados, respectivamente, das penitenciárias feminina e masculina da cidade paulista de Tremembé, isso na madrugada do próprio dia 22 de março. Algemados e uniformizados, cada um entrará, então, em sua “barca” – é assim que presidiários chamam os veículos que os transportam – rumo a São Paulo e a Polícia Militar, com munição pesada, escoltará a “carga” – é dessa forma que policiais rotulam presos em trânsito. Anna Carolina fará o trajeto de aproximadamente 140 quilômetros pensando, como ela mesma diz, “em outro 22 de março, de sete anos atrás”: lembrará de uma noite quente quando, diante de uma “lanchonete McDonald’s da avenida Brás Leme”, no banco carona de um Marea e com Marisa Monte cantando “Velha Infância” no som do carro, beijou pela primeira vez a boca do então amigo (e instantaneamente, depois do beijo, namorado) Alexandre Alves Nardoni. De calça amarela e camiseta branca, uniforme de quem é “carga”, ela estará calçando o par de tênis que há tempo pediu para sua mãe comprar e lhe enviar à cadeia: “Ele tem velcro para o vuco-vuco.” O que Anna Carolina quer dizer com essa expressão estranha são os momentos em que, aparecendo em público, a multidão quer linchá-la aos gritos de “assassina” e os policiais têm de cercá-la e conduzi-la aos trancos e barrancos a um lugar seguro. “Tênis de cadarço machuca na hora do aperto, tropeço e caio. Com velcro é fácil tirá-lo para correr de pé no chão”, diz ela, com uma naturalidade que contrasta com o drama em que está envolvida.
Quanto ao antigo amigo do beijo de Big Mac e hoje marido, Alexandre Nardoni, a viagem lhe será o trem fantasma: terror, agitação, suor e falta de ar – ele é claustrofóbico e sofre de crises de ansiedade. Desembarcados no prédio do fórum, na zona norte de São Paulo, ficarão separados em celas com grades, posicionadas uma de frente para outra, até a uma hora da tarde, quando então serão conduzidos à sala do júri – talvez aí trajando roupas normais e não mais uniformes. Sem algemas (a não ser que tenham atitudes indisciplinadas), sentarão um ao lado outro, atrás dos defensores, o advogado Roberto Podval e a encarregada da parte técnico científica, Roselle Soglio. Não poderão conversar.
“Eles são culpados e isso ficará claro para os jurados. Eu vou pedir apenas justiça”, diz o promotor Cembranelli. “Eu acredito piamente na inocência do casal, mas os réus chegam ao fórum já condenados pela opinião pública”, afirma o advogado Podval. Até aí, jogo jogado, e com permissão da redundância: a acusação acusa e a defesa defende. No campo das estratégias, no entanto, esse julgamento promove para ambas as partes uma revolução na Justiça brasileira. Desde que o Tribunal do Júri Popular surgiu na face da Terra, mais precisamente na Inglaterra sob o reinado de João Sem Terra (1215), ele já sofreu uma série de transformações. No Brasil, por exemplo, prestou-se em seu nascimento, no início do século XIX, para tratar de crimes de imprensa e hoje passa longe disso. Outra mudança significativa, um século e meio depois, foi na década de 1970, quando se sepultou definitivamente nos plenários a tese de crime passional a justificar que o homem traído assassinasse a mulher e saísse absolvido em nome da honra lavada a sangue: é daí o surgimento da máxima “quem ama não mata”. Agora, as alterações são infinitamente mais profundas, significativas e modernas.
No caso Nardoni, promotor e defensores trabalharão basicamente em cima de provas científicas (ou seja, periciais) produzidas pelo Instituto de Criminalística e Instituto Médico Legal de São Paulo. Mais ainda: o Tribunal do Júri Popular que decidirá o futuro de Anna Carolina e Alexandre inaugurará efetivamente no País a atuação do assistente técnico, profissional especializado e legitimado para contestar ou ratificar tudo aquilo que os peritos oficiais, representando o Estado, apresentam como fato, podendo funcionar para quem acusa ou para quem defende. Assim, pode-se dizer que, além da perícia em si, o júri em questão terá “a perícia da perícia” – e o Brasil torna-se, dessa forma, um dos pioneiros em todo o mundo a empregar tal metodologia de apresentação de provas. “O assistente técnico fará com que a perícia do Estado se aprimore e contribua muito mais como um órgão auxiliar do juízo, porque essa é a sua função primordial”, diz o promotor de Justiça Levy Emanuel Magno. “A atuação da assistência técnica não significa que se esteja colocando o papel do perito em xeque, mas apenas se reconhecendo que a perícia oficial nem sempre está certa, até porque todos nós, seres humanos, somos falíveis”, afirma Roselle, uma das principais consultoras jurídicas do País, professora de direito penal, direito processual penal e coordenadora de pós-graduação em perícias criminais da Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus.
Um ditado há muito tempo corrente entre os juristas diz que a prova testemunhal, embora importante, “é a prostituta das provas” – se três pessoas presenciarem um acidente, corre-se o risco de cada uma narrar o acontecimento de forma diferente. Mas é verdade também que, se a prova testemunhal é a “prostituta”, a prova pericial não é a “virgem” que se pode imaginar. O promotor Levy Magno lembra que é bastante comum réus admitirem que dispararam arma de fogo e o exame residuográfico de pólvora nas mãos, feito pelo Instituto de Criminalística, dar resultado negativo. Daí a importância do assistente técnico, uma espécie de corregedor pericial, nos processos em geral e, agora pontualmente, no tabuleiro de xadrez que será o intrincado julgamento do casal Nardoni – no qual tudo é prova da polícia científica, pois não há sequer uma testemunha ocular da morte de Isabella.
O promotor Cembranelli e o defensor Podval, apesar de estarem em campos opostos, têm um ponto de concordância: ambos admitem que a perícia foi benfeita. Distanciam-se em suas posições, no entanto, no passo logo adiante: a interpretação que foi escrita no relatório final dos peritos do próprio Instituto de Criminalística. “Não há dúvida de que o caso tem um trabalho pericial bem eficiente. A perícia conseguiu colher o que era possível e pode dar uma boa visão do que se passou naquela noite. Apanhou todos os objetos possíveis, fez o levantamento do local utilizando equipamentos de última geração”, diz Cembranelli. “Na minha opinião, a perícia é perfeita, o erro todo está na interpretação daqueles que assinam o documento final. Eu não discuto o trabalho dos peritos. Eu discuto, e aí muito, a conclusão a que chegaram a partir do material coletado e analisado”, diz Podval. Antecipam-se aqui algumas dessas constatações técnicas que serão apresentadas e debatidas no tribunal.
Segundo o documento final do Instituto de Criminalística, por exemplo, Anna Carolina teria agredido Isabella (pequeno corte do lado esquerdo da testa) no carro em que estavam quando retornavam ao apartamento da família na noite de 29 de março de 2008, um sábado. No automóvel (Ford Ka) estavam Alexandre ao volante, a sua mulher ao seu lado e, no banco traseiro, Isabella (atrás do pai) e os dois irmãos menores, um deles na cadeirinha veicular. O laboratório de DNA do Instituto de Criminalística de São Paulo relata que no braço esquerdo dessa cadeira veicular há vestígio de “marca de sangue de um ou mais contribuintes, sendo um deles do sexo masculino”. Deixa claro que é impossível cravar de quem é o sangue e de que data ele é. No relatório final do mesmo Instituto de Criminalística, porém, assegura-se que o sangue é da menina assassinada. Sem assistência, como resolver a contradição criada dentro do mesmo órgão do Estado e como auxiliar os jurados no entendimento de uma realidade de provas que ainda lhes é bastante estranha? Essa divergência entre o que o laboratório constatou e aquilo que está no relatório final é a “questão da interpretação” à qual Podval se refere.
Outro ponto que frequentará as falas da acusação e da defesa, sempre baseadas nos subsídios científicos que lhes foram fornecidos, é uma fralda que, supostamente, teria servido para estancar o sangue do ferimento na testa de Isabella. Esse ferimento, de acordo com as investigações, é o início do calvário da garotinha. A promotoria denuncia que ela foi levada pelo casal, da garagem do prédio ao apartamento, e, já em seu interior, sofreu a esganadura por parte da madrasta; na sequência foi defenestrada pelo pai. Novamente de acordo com a conclusão do laboratório de DNA, não há como dizer se a mancha na fralda é de sangue. A promotoria afirma que a tal fralda serviu para o pai cobrir o ferimento, evitando que o sangue pingasse na garagem, no elevador e no hall do sexto andar. Já Anna Carolina e Alexandre sustentam que, naquela noite, ele subiu primeiro ao apartamento carregando no colo Isabella, que estava dormindo. Anna Carolina permaneceu no carro com os dois filhos do casal, que também haviam caído no sono. O pai deixou a filha na cama, trancou o apartamento e voltou à garagem para ajudar a mulher a subir com os outros dois pequenos. Ao chegarem ao apartamento, deram imediatamente pela falta de Isabella e perceberam a tela de proteção do quarto dos meninos cortada. Ele correu a olhar por esse buraco e viu a filha caída no jardim do prédio. O relatório final do Instituto de Criminalística registra que havia marcas de sangue no chão do apartamento e nas peças nele coletadas, mesmo tendo recebido do laboratório de DNA, mais uma vez, o diagnóstico de resultados insatisfatórios para as amostragens. A acusação segue o relatório final e no julgamento embasará a sua convicção no fato de o reagente Bluestar ter dado coloração azul quando aplicado nesses materiais. A defesa e a assistência técnica contestam. “Há falso positivo para uma série de elementos. A coloração azul do Bluestar é indicativa de sangue, mas não conclusiva de sua presença. Só o laboratório pode dizer se existe sangue, se esse sangue é humano e a quem pertence”, diz Roselle. “Nabo, banana, alho, feijão-verde, gengibre, cenoura, verniz e inúmeros produtos de limpeza, se submetidos ao reagente, o tornarão azul. A olho nu, somente pela experiência profissional ou pela casuística, é impossível distinguir uma coisa da outra.”
Como insiste em observar o advogado Podval, Alexandre e Anna Carolina entrarão no tribunal condenados pela opinião pública, que acompanhou passo a passo o trabalho policial nos dias que se seguiram ao crime. É claro que esse é um fator que pesa em favor da acusação. Por sua vez, como acontece na maior parte dos júris, a defesa conta com a vantagem de não precisar produzir provas. A rigor, cabe aos advogados a tarefa de desconstruir os argumentos da acusação. Nesse sentido, as eventuais falhas cometidas por peritos podem ser decisivas no resultado final do julgamento de um crime sem testemunhas oculares ou réus confessos. No caso Isabella, no entanto, o problema maior a ser enfrentado pela defesa reside na quantidade das provas que poderão ser exploradas pelo promotor. São dezenas de perícias e exames técnicos distribuídos pelas cinco mil páginas dos 26 volumes do processo. A literatura jurídica é pródiga na sustentação de que vale mais o conjunto das provas do que cada uma delas isoladamente. No julgamento do casal Nardoni, os jurados terão diante de si um arsenal de laudos científicos que não se limita à questão da fralda ou dos supostos vestígios de sangue localizados no automóvel e no apartamento.
Além do duelo em torno das chamadas provas técnicas, promotor e advogado irão se enfrentar em uma outra questão. A acusação irá sustentar que todas as hipóteses surgidas na apuração do caso foram investigadas e descartadas. A defesa dirá o contrário e apresentará a tese de que uma terceira pessoa entrou no apartamento e matou Isabella no lapso de tempo em que Alexandre retornou à garagem do prédio após ter deixado a filha dormindo, contrapondo-se à convicção da promotoria de que o casal assassinou a menina. Com quem reside a razão? Os jurados é que dirão, e por isso o momento de sua escolha é de crucial importância para as duas partes – trata-se de uma roleta a justificar a célebre frase “cada cabeça, uma sentença” (leia quadro sobre a montagem do júri e do Conselho de Sentença). Os jurados é que decidirão se Alexandre e Anna Carolina são ou não culpados após entrarem pela primeira vez em contato com um mundo completamente novo de sofisticação tecnológica e provas periciais que até então eles só conheciam pelos seriados americanos de televisão.
Tanto o promotor Cembranelli quanto o advogado de defesa Podval terão diante de si a árdua empreitada de traduzir essas herméticas metodologias para a linguagem dos mortais. Um dado, porém, é certo: a época dos julgamentos nos quais só se ouvia um milhão de vezes a expressão “nobre colega” e apenas se via teatralidade nos tribunais será definitivamente deixada para trás a partir do dia 22 de março. Irão valer, daqui para a frente, as provas técnicas e, acima disso, a avaliação dessas provas pelos assistentes. “O júri do caso Isabella é o grande divisor de águas”, diz Raphael Martello, perito que acumula em seu currículo profissional “a honra de ter trabalhado” no caso do acidente automobilístico que matou o ex-presidente Juscelino Kubitscheck e na reconstituição do também “acidente” de carro que resultou na morte da estilista Zuzu Angel. “Consegui provar que ela não se acidentou, mas teve o seu carro fechado de forma criminosa porque combatia a ditadura que matou seu filho”, diz Martello. “Nesses casos sempre se usou muito a prova técnica. Agora chegou o momento de ela também ser usada nos tribunais.” Ele critica, no entanto, “a pressa com que se sepultam corpos no Brasil em casos complicados”, o que pode gerar problemas posteriores. “A polícia científica dos EUA demora semanas para sepultar porque um único erro pode anular todo o processo.” Nesse terreno, que não é mais do Instituto de Criminalística e sim do Instituto Médico Legal, o julgamento de Anna Carolina e Alexandre também reserva surpresas.
O slogan do IML é “sempre de portas abertas para você”, mas é claro que no mundo dos vivos ninguém deseja essa porta aberta nem se apressa em aceitar o convite. Brincadeiras à parte, na prática a direção do IML e seus profissionais ainda são extremamente fechados à sociedade. Em todas as circunstâncias de morte violenta, o corpo tem de ser encaminhado para esse órgão e, uma vez liberado para sepultamento, a certidão de óbito tem de seguir ao pé da letra o que consta na parte conclusiva da necropsia. Examinado o corpo de Isabella no IML, o médico legista atestou duas causas de falecimento: “A morte foi de causa violenta, por asfixia mecânica por ação vulnerante de agente físico-mecânico e politraumatismo por ação contundente.” No plenário, Podval e Cembranelli explicarão ao Conselho de Sentença que isso quer dizer esganadura combinada com uma série de lesões e fraturas. Resta saber, no entanto, como conseguirão explicar que o mesmo legista que assim encerrou a necropsia da menina registrou na certidão de óbito, surpreendentemente, a causa de morte como “indeterminada (aguarda exames complementares)”. Volta-se aqui ao ponto levantado pelo perito Martello: se o corpo foi apressadamente sepultado, como resolver aquilo que pode ficar pendente? Quais exames poderão agora ser feitos, como assinala entre parênteses a certidão? A contradição entre os conteúdos dos dois documentos assinados pela mesma autoridade é um incidente que revela um descuido profissional. Resta saber até que ponto essa falha poderá ser determinante para a convicção dos jurados. Afinal, o que é menos questionável em todo esse caso é a morte violenta da garota Isabella.
http://periciacriminal.com/novosite/2010/03/13/o-caso-nardoni/