Os equívocos que matam novamente Isabella
Por: HELDER CALDEIRA - Estudante de Direito
O que faz o assassinato da menina paulistana, Isabella de Oliveira Nardoni, ganhar tamanha projeção (e comoção) no cenário nacional? Em um país onde a mortalidade infantil ainda é alta e que crianças assassinadas são cenas comuns (e não menos chocantes)..
O que faz o assassinato da menina paulistana, Isabella de Oliveira Nardoni, ganhar tamanha projeção (e comoção) no cenário nacional? Em um país onde a mortalidade infantil ainda é alta e que crianças assassinadas são cenas comuns (e não menos chocantes) do cotidiano das cidades brasileiras, qual é a “pedra de toque” que faz de Isabella e seu trágico destino um verdadeiro folhetim policial e com impressionante apelo popular? Será que a pergunta real “quem matou Isabella?” irá eternizar-se como as novelescas “quem matou Odete Roitman?” ou “quem matou Taís?”?
Em meio à totalidade das machetes dos principais jornais de grande circulação do país e da disputa entre emissoras de TV pela audiência (umas com extremo sensacionalismo; outras com certa cautela), uma pessoa já tornou-se o grande protagonista dessa tragédia urbana: o promotor Francisco Cembranelli. Desde os primeiros momentos do caso, Dr. Cembranelli já mostrou a que veio: quer ser o mais novo galã da TV brasileira! Na sede de tornar-se mocinho e o mais novo “herói nacional”, o promotor tratou criar os antagonistas e desenhá-los como os grandes vilões e, assim, deu-se o início da nova novela “ecumênica” e de grande audiência no Brasil.
No entanto, uma pergunta começa tornar-se maior que a própria “novela” criada: o promotor Francisco Cembranelli é um herói ou quer apenas aparecer e valorizar seu “cachê”? A segunda opção, apesar de ser a menos óbvia, é a que mais se aproxima da verdade e coloca em xeque a credibilidade e a decência do Poder Judiciário e da Polícia de São Paulo. Incauto e midiático, Cembranelli comprometeu (e continua a fazê-lo) toda a estrutura central das investigações e está servindo de névoa para ocultar os grandes e sucessivos equívocos da Polícia no Caso Isabella Nardoni.
No olho do furacão, o pai da menina, Alexandre Nardoni, mais parece o mordomo das célebres obras de Agatha Christie: sempre o principal suspeito, todas as pistas levam a ele e, mesmo com todos os destacados bons antecedentes, já ganhou o cartaz de “monstro” e pode ter de carregar o rótulo pelo resto de sua vida. Já a jovem Anna Carolina Jatobá tornou-se a encarnação viva das grandes madrastas da ficção, a revelação de todos os nossos medos infantis quando o assunto é a “stepmother” da Branca de Neve ou da Bela Adormecida.
Culpar (e condenar, por pré-conceitos) o casal Alexandre e Anna Carolina é a prova final de que o Poder Judiciário e a Polícia de São Paulo são muito mais frágeis que a própria vítima, a pequena Isabella. Ambos comentem erros grotescos e, ao lado do promotor Francisco Cembranelli, devem ser responsabilizados, sob todos os aspectos, caso a integridade física do casal seja violada de alguma forma por um cidadão, levado pela irresponsabilidade desses Poderes instituídos e pelo absurdo sensacionalismo de alguns meios de comunicação, muito mais preocupados em alavancar suas audiências e faturar alguns milhões do que realmente prestar um serviço digno à população.
Para se ter uma idéia, uma apresentadora de programa de TV vespertino, sentiu-se agredida com o fato de o Departamento Policial ter criado um esquema especial para retirar Alexandre Nardoni do prédio onde estava preso, após a sábia decisão do Desembargador Caio Eduardo Canguçu de Almeida de acatar o pedido de Habeas Corpus. Para a apresentadora, a “encenação” foi absurda e “colocar tantos carros de polícia à disposição da situação é uma afronta numa cidade violenta como São Paulo, que precisa desses carros na rua, no combate à criminalidade”. No mínimo, a apresentadora vibraria mais se Alexandre fosse agredido pela grande massa que cercava a Delegacia e as cenas a fizessem ganhar mais dinheiro com a elevação de sua audiência e o “merchandising” infinito que assola seu programa. Ela é apenas mais uma que antecipa-se em condenar Alexandre e Anna Carolina pelo assassinato de Isabella.
Por falar em antecipação, o que são as declarações do Dr. Francisco Cembranelli? Logo nas primeiras horas do Caso, o promotor do Ministério Público Estadual de São Paulo tratou de colocar os pais de Isabella no centro das investigações. Repete sua imprudência agora, quando ambos receberam o Habeas Corpus, insistindo em classificá-los como assassinos e dizendo que a Polícia já tem provas reais que ligam as agressões físicas sofridas por Isabella ao casal Alexandre e Anna Carolina. Cembranelli, com essa última declaração, questiona e coloca em dúvida a capacidade e a seriedade do Desembargador Canguçu, que afirmou estar concedendo o Habeas Corpus devido ao fato de a Polícia não dispor de provas que incriminem o pai e a madrasta e de os mesmos terem sido submetidos à constrangimentos ilegais. Ou seja, será que um renomado Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo foi incapaz de visualizar as ditas provas que o promotor diz ter ou está “levando uma grana por fora” para expedir a soltura do casal? Na verdade, mais parece é que o Dr. Cembranelli anda assistindo demasiadamente as telenovelas.
Em meio à essa sucessão de absurdos, os equívocos cometidos pela Polícia de São Paulo passam ao largo de toda história e acabam não ganhando a dimensão que deveriam ter. Um exemplo é o fato de a equipe que chegou ao local do crime, não ter isolado imediatamente todas as imediações e feito uma varredura milimétrica em todo prédio, inclusive nos apartamentos, mesmo nos vazios. O tenente responsável pela operação primeiro afirmou ter vistoriado todos e, depois das declarações do advogado Antônio Nardoni, avô da vítima, se auto-desmentiu e revelou que não teve acesso à algumas unidades. Da mesma forma, após um “disse-que-disse”, a Polícia não se presta a investigar a denúncia de que o prédio ao lado fora arrombado na noite do crime. O pedreiro responsável pelas obras primeiro afirmou que houve o arrombamento, e, após comparecer à delegacia para depoimento, disse que não houve nada. Alguns dias após, volta a dizer que houve arrombamento.
Aliás, desse prédio é possível ter acesso com grande facilidade ao Edifício London, local do crime, através da churrasqueira, localizada na área de lazer e em um “ponto-cego” às câmeras de segurança. A imprensa já divulgou imagem de pegadas no telhado da churrasqueira e já está confirmado o fato de que a cerca elétrica estava desligada na noite do crime. Apesar disso, a Polícia insiste em não investigar mais a miúde essa hipótese, afinal, fazê-lo seria um “mea culpa” de que não estão realizando um bom trabalho desde o início das investigações (nada) sigilosas. Enquanto isso, a delegada Renata Pontes, responsável pelo caso, inspira-se na matemática para elaborar percentuais que margeiam a comicidade. Há alguns dias afirmou que tinham 70% da cena do crime revelada; atualmente é categórica ao dizer que tem 99% do caso solucionado, mesmo sem os resultados técnicos das perícias.
Partindo dessa tosca matemática da delegada, nós, da classe dos cidadãos comuns, podemos chegar a apenas três conclusões: ou a delegada é mais uma a antecipar-se no pré-julgamento de Alexandre e Anna Carolina como assassinos (até por ser mais prático, mostrar uma falsa eficiência e ocultar os grandes erros de sua equipe); ou a delegada já sabe que o crime foi cometido por uma terceira pessoa e tem provas disso, tais que levaram o Desembargador Canguçu a conceder o Habeas Corpus; ou, ainda, o empenho no sigilo do caso é tanto, que essas provas que apontam os 99% de solução da delegada foram ocultadas até mesmo do Desembargador e, ironicamente, só são repassadas à imprensa!
O “grand finale” dessa epopéia pode ser cruel. Com a forte pressão da imprensa e o apelo popular pela imediata conclusão do caso, a Polícia de São Paulo pode sentir-se obrigada a encontrar um “bode expiatório” para chamar de assassino. Para o bem e para o mal. Nesse fim incrédulo, Alexandre e Anna Carolina podem terminar atrás das grades, independente da real culpabilidade que carregam. Outrossim, um “bobão” qualquer pode ser acusado do crime e ser levado aos tribunais sem tê-lo cometido, apenas para saciar a sede de solução da população e da imprensa, chocados e tontos com os rodopios desse caso.
A escritora Agatha Christie sempre dizia em suas entrevistas que seus livros que fizeram mais sucesso, guardavam para o final o grande assassinato. O leitor perde-se nos mistérios de quem foi o assassino e qual o motivo que o levara ao crime e, nas últimas páginas, é derrubado com o verdadeiro assassinato que moveu a autora a conceber sua obra. Assim é neste caso da vida real: com seus esdrúxulos equívocos, a Polícia de São Paulo e o promotor Francisco Cembranelli matam novamente a pequena Isabella Nardoni. Na verdade, são eles os grandes assassinos: da verdade, da cautela, da responsabilidade, da credibilidade e da segurança. E o fazem com requintes de crueldade.