Amigos, boa parte de vocês não tinha idade na época para saber, ou já não se lembra mais, mas houve um político americano de destaque que, ao saber que portava um câncer terminal, fez da doença, paradoxalmente, uma celebração da vida que lhe restava.
Trata-se do 38º vice-presidente dos Estados Unidos, Hubert H. Humphrey, um liberal extremamente preparado para a Presidência cuja lealdade ao presidente Lyndon Johnson (1963-1969) e a condução da impopularíssima Guerra do Vietnã o levaram à derrota por pequena margem, como candidato democrata, diante do republicano Richard Nixon em 1968. Ela já havia tentado ser o candidato democrata em 1960, contra John Kennedy, e voltaria a lutar pela candidatura em 1976, contra o então ex-governador da Geórgia Jimmy Carter.
Após essas tentativas à Casa Branca, Humphrey voltaria ao Senado, onde havia despontado para a política, vencendo duas eleições consecutivas até que o câncer o apanhou, em meados de 1977, aos 67 anos. Longe de esconder o problema e sumir de vista do público, numa época em que assumir a doença e falar dela em público eram um tabu, ele optou por revelar ser portador, enfatizar que tinha pouco tempo de vida e continuar com sua apertada agenda de senador importante. Não recusou palestras nem entrevistas, mesmo quando versasse sobre sua saúde.
Brincalhão, Humphrey telefonou ao rival para convidá-lo a seu enterro
Mais: no hospital em que se tratava, sistematicamente visitava doentes graves para encorajá-los. Brincalhão, telefonou para o velho rival, Nixon, convidando-o para o futuro enterro. Foi homenageado pela Câmara dos Representantes em sessão conjunta, caso único na história dos Estados Unidos. Na última viagem que faria a Washington antes de regressar a seu Estado natal, Minnesota, para morrer, o presidente Jimmy Carter homenageou Humphrey, simbolicamente, colocando-o onde ele tentou várias vezes, sem sucesso, estar, na condição de comandante supremo – como passageiro principal do Air Force One, o avião presidencial.
A revista Time, diante disso tudo, publicou uma reportagem inesquecível, intitulada “The public dying of Hubert Humphrey” (a tradução literal não confere o sentido original da frase, que seria algo como “O processo de morrer em público de Hubert Humphrey”).
Chávez explora sua tragédia de forma barata e demagógica
Pois bem, amigos, tudo isso para mostrar um outro exemplo, bem menos palatável, de exposição pública dos problemas de saúde de um político. Refiro-me à forma barata, lacrimosa e demagógica como o homem forte da Venezuela, coronel Hugo Chávez, explora sua tragédia pessoal com o câncer que o acometeu e de que foi operado em Cuba.
Desde que voltou de surpresa à Venezuela, dias atrás, após um sumiço de quase um mês que provocou uma crise política e deixou a população sem informações, Chávez incorporou o câncer, suas formas de tratamento e suas chances de recuperação à ladainha de discursos intermináveis com que bombardeia diariamente os venezuelanos pela TV e pelo rádio. (Leia aqui uma das notícias a respeito).
Transparência é uma coisa, o carnaval sinistro de Chávez, outra
Ora abraçado às filhas, ora beijando a bandeira da Venezuela e em uniforme militar, Chávez não pára de falar no assunto. Transparência sobre a saúde dos governantes é uma coisa – algo desejável e digno de aplauso nas democracias. Mais que isso: é obrigação, quase nunca cumprida, pelos dirigentes. Outra coisa é o carnaval sinistro, francamente obsceno, que Chávez vem levando a cabo, no curso do qual se detém a explicar se o câncer atingiu ou não determinada região de seu organismo, a comentar diferentes tipos de tumores, a contar detalhes de sua quimioterapia — tudo em meio a juras de amor ao país, a metáforas cafonas sobre escalar montanhas e por aí vai.
Foi uma forma mórbida que o coronel encontrou de manter-se em mais evidência ainda do que normalmente ocorre. Com dois aparentes objetivos: o primeiro, e mais imediato, é inibir ambições dentro de seu grupo, os principais pau-mandados que tem no seu partido, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). O segundo, de mais longo prazo, é comover o eleitorado, preparando terreno para sua terceira reeleição no pleito de dezembro do ano que vem.
Não é de se estranhar que Chávez recorra a esse tipo de comportamento para fins políticos. Ele já atingira limites inimagináveis ao promover a exumação do cadáver do libertador Simón Bolívar — o grande general e revolucionário venezuelano que, em guerras contra a Espanha colonial, liderou o processo de independência de Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá e seu próprio país — e mandar transmitir tudo pela TV, ao vivo, numa operação supostamente destinada a investigar as reais causas de sua morte.
Venezuelanos continuam sem informação confiável
Paradoxalmente, os venezuelanos, agora encharcados pela discurseira sobre a doença presidencial, até agora não sabem com precisão de onde foi extirpado o tumor inicial, se houve ou não metástese, se os prognósticos do presidente são bons, regulares ou maus – de há muito a Medicina tem como prestar essas informações, que o país de Chávez continua ignorando.
Chávez, como se sabe, acabou não aceitando a sugestão da presidente Dilma Rousseff para vir tratar-se periodicamente no Brasil, provavelmente no Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. Nesses períodos, os venezuelanos provavelmente seriam poupados do despudor presidencial com a própria intimidade. Agora, não mais.
Ricardo Setti
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