Alexandre Oltramari, Leandra Peres e Malu Gaspar Os 20 000 habitantes de Ponta de Pedras, cidade situada na exótica Ilha do Marajó, no Pará, tinham razões de sobra para entrar em estado de alerta cada vez que o prefeito viajava para Belém para sacar o dinheiro da prefeitura. Em abril de 2001, ele desembarcou na capital, sacou o dinheiro e foi assaltado. Foram-se 160 000 reais. Quatro meses mais tarde, o prefeito retornou a Belém, retirou o dinheiro e deu-se novo infortúnio: roubaram-lhe 120 000 reais. Passaram-se dois meses e ele voltou a Belém, ao banco e – suprema desgraça – ao assalto. Dessa vez, sumiram 80 000 reais. Em sete meses, o prefeito Bernardino Ribeiro, do PSDB, sofreu três assaltos. A cidade logo entendeu por que o prefeito não usava o posto bancário de Ponta de Pedras e fazia questão de manter a conta em Belém, a três horas de barco, e sacar tudo em dinheiro vivo. Em agosto de 2002, acusado de improbidade administrativa, ele perdeu o mandato. "Alguns funcionários da prefeitura ficaram até seis meses sem receber salário", conta a vice-prefeita, Consuelo Castro, que sucedeu ao cassado – e nunca foi assaltada. O caso de Ponta de Pedras parece adequar-se mais ao anedotário da política paroquial, mas está longe de ser um episódio marginal. Ao contrário. As 5.560 prefeituras brasileiras movimentam uma bolada de 107 bilhões de reais por ano, cifra que corresponde à metade do PIB do Chile, a mais azeitada economia do continente. Não se sabe com precisão quanto dessa dinheirama some no ralo da corrupção – 10%? 20%? 30%? –, mesmo porque parte da roubalheira se dá na surdina, no varejo e no anonimato que os rincões oferecem. As indicações mais seguras dão conta de que os desvios ficam, calculando-se por baixo, na órbita dos 20 bilhões de reais. O procurador gaúcho Luiz Carlos Ziomkowski, 53 anos, é uma das maiores autoridades do país no assunto. Há doze anos, ele coordena o combate à corrupção, ao desperdício e à inépcia nas 467 prefeituras do Rio Grande do Sul e, nesse período, já conseguiu condenar 133 prefeitos por desvio de recursos públicos – um recorde nacional. Ziomkowski diz que, com base na sua experiência nos pampas, pelo menos 20% de todo o dinheiro que passa pelas prefeituras é incinerado na fogueira da corrupção. A caça aos corruptos municipais pode estar se tornando uma saudável mania nacional. A Amigos Associados de Ribeirão Bonito (Amarribo), nascida da bem-sucedida experiência de expurgo de um administrador corrupto no interior de São Paulo, está dando ensejo à criação de entidades semelhantes em diversas regiões do país (veja a reportagem seguinte). À parte a corrupção, o municipalismo brasileiro é um caso único no mundo. Ele combina a tradição de descentralização administrativa que caracteriza os países europeus com a dependência de recursos federais típica da federação brasileira. Com isso, os prefeitos escapam da fiscalização direta de suas contas e sentem-se à vontade para aumentar gastos na certeza de que o salvamento virá dos cofres federais. A Constituição de 1988 deu às Assembléias Legislativas estaduais o poder de criar municípios, antes uma prerrogativa da União. Desde então, a multiplicação do número de cidades no Brasil tornou-se uma farra. "Mais de 1.000 municípios foram criados nos últimos doze anos. A maioria deles sem nenhuma justificativa econômica", diz o ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega, da consultoria Tendências. O peso do sistema municipal nas contas nacionais só cresceu em ritmo menor do que o do déficit previdenciário. Mas, ao contrário dele, o custo de manter as atuais prefeituras e criar novas cidades no Brasil tende a crescer. "Sua dinâmica é de um câncer", diz Mailson. O Brasil tem o sistema municipalista mais adubado com verbas federais do mundo – e mesmo assim os prefeitos são os maiores pidões da República. As prefeituras brasileiras rateiam entre si 15% de toda a arrecadação nacional. A média mundial é de 6%. No México, por exemplo, a União fica com 97% da arrecadação. Estados e municípios dividem os restantes 3%. "Agora os prefeitos brasileiros reivindicam também participação nos tributos aos quais eles não têm direito por lei e que já chegam a 40% da arrecadação da União", diz Mailson. Ele alerta: "Se essa bandeira deles vingar, o desequilíbrio fiscal vai se acentuar de maneira ainda mais dramática no Brasil". De 1995 para cá, o volume de recursos federais e estaduais repassados aos municípios subiu quase 70%. A fiscalização, porém, não foi incrementada na mesma medida. "Na década de 80, discutia-se muito a descentralização, pois os repasses eram feitos diretamente pela União. Além de parte do dinheiro não chegar ao destino, o processo era lento. Agora, a descentralização agilizou o percurso, mas a dúvida sobre o destino final do recurso continua a mesma", diz o pesquisador Jorge Abrahão de Castro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com sede no Rio de Janeiro. "O desafio agora é aperfeiçoar os mecanismos de fiscalização." Em São Paulo, uma extensa pesquisa realizada pelo instituto Transparência Brasil descobriu que, numa lista de dezoito órgãos públicos, os dois que a população considerou mais corruptos são a Câmara de Vereadores e o Tribunal de Contas do Município – dois órgãos que, em tese, deveriam ajudar a fiscalizar a prefeitura. Os repasses de recursos federais de vários programas, da merenda escolar ao combate ao trabalho infantil, são todos condicionados à instalação de "conselhos municipais", órgãos que deveriam se encarregar de fiscalizar o destino do dinheiro dado pela prefeitura. A idéia, em tese, é ótima: dota a cidade de uma fiscalização local e permanente, e ainda envolve os cidadãos nos assuntos da comunidade. Mas não está dando certo. Numa amostra de cinqüenta cidades, a Controladoria-Geral da União (CGU) constatou que em 49 delas os conselhos municipais não cumprem seu papel. Há casos como o de Pau d'Arco, no Tocantins, onde a presidente do conselho é esposa do prefeito e secretária municipal da área que deve ser fiscalizada. Em Curral Velho, na Paraíba, o conselho responsável pela fiscalização dos recursos do programa Bolsa-Escola simplesmente não existe. Por isso, as verbas do programa são supervisionadas por um conselho social com dezesseis membros. Dez deles são funcionários da própria prefeitura. Nirley Sena/Ag. A Tribuna | FECHANDO O CERCO Paulo Julião, de São Sebastião: bens bloqueados e sigilo quebrado pela Justiça | Há quatro anos, com a vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabeleceu limites aos gastos públicos, o controle ficou um pouco maior. Os prefeitos são obrigados a produzir a cada bimestre um relatório simplificado informando como os recursos foram gastos e, de quatro em quatro meses, precisam fazer uma avaliação sobre despesas com pessoal, dívida pública e cumprimento de metas fiscais. Além disso, a contabilidade dos prefeitos passou a ter prazo para ser analisada pelos tribunais de contas, o que acabou com o tempo em que os tribunais podiam ficar meses, até anos a fio, sem julgar a prestação de contas de uma administração. "A Lei de Responsabilidade Fiscal foi um marco, mas o controle efetivo só pode ser feito com a participação da população, porque é ela que sabe de fato o que está acontecendo no município", diz Sol Garson, consultora em orçamento e finanças públicas. De fato, nada substitui a importância dos habitantes da cidade. Em Alto Alegre do Pindaré, no interior do Maranhão, a prefeitura garante que pagou três abonos salariais aos professores em 2002. Os fiscais da CGU resolveram entrevistar professores. Passaram, então, por 23 escolas da cidade. Todos os professores, sem exceção, negaram ter recebido abono. Alguma dúvida do que foi feito com o dinheiro?
A todo instante há um caso de suspeita de corrupção em prefeitura chamando a atenção do país. Na semana passada, a Justiça concedeu liminar pedindo o bloqueio dos bens e a quebra dos sigilos bancário, telefônico e fiscal do prefeito Paulo Julião (PSDB), de São Sebastião, no litoral de São Paulo. Julião é um dos prefeitos que estão sendo investigados pela comunidade com base no método concebido pela Amarribo e que agora orienta comunidades a farejar irregularidades. "Há uma relação clara entre atraso político e corrupção", diz o ministro do Controle e da Transparência, Waldir Pires, ao informar que suas equipes de fiscalização sempre encontram mais desvios nas prefeituras das regiões Norte e Nordeste. É provável, portanto, que nos municípios do Rio Grande do Sul ocorram menos irregularidades que em prefeituras de regiões mais pobres – sinal de que a média de desvio de 20%, constatada no Rio Grande do Sul, tende a ser maior no país como um todo. Além disso, o trabalho do procurador Ziomkowski reduziu a impunidade e mostrou às autoridades do Estado que qualquer delito pode render punição, o que serve, em tese, como um desestímulo ao roubo. Em fevereiro passado, por ter desviado 441 reais, o prefeito Pedro Paulo Fischer, de Três de Maio, foi condenado a quatro anos de prisão, pena substituída por multa e prestação de serviço à comunidade. Isso mesmo: menos de dois salários mínimos. Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem | UM CASO INTRIGANTE Nas gestões de Celso Pitta e Paulo Maluf, as ações de ressarcimento propostas pelo Ministério Público somam 13,7 bilhões de reais | Considerando que a sangria dos cofres municipais não se dá apenas por corrupção, mas também por desperdício e má gestão financeira, muitas das prefeituras brasileiras se assemelham em sua atuação a saúvas que devoram riqueza. Agora mesmo, a Câmara dos Deputados está querendo contornar a redução, determinada pela Justiça, do número de vereadores de vários municípios brasileiros que se aproveitaram de uma brecha legal e aumentaram o contingente de parlamentares de modo desproporcional ao de habitantes. Hoje, o país tem 60.000 vereadores e, seguindo a determinação judicial, o número cairia para 51.000. Mas os vereadores, os prefeitos, os deputados e senadores, os políticos em geral não querem 9.000 vereadores a menos. Na Câmara, os deputados se articulam para aprovar uma lei que autorizará o corte de 5.000 vereadores, preservando 4.000 – que seguirão sendo remunerados, terão gabinete, verba para gastos, carro e um séquito de assessores.
Com o sexto maior orçamento do país, beirando os 15 bilhões de reais, a prefeitura de São Paulo tem sido, nos últimos anos, um grande sumidouro de dinheiro público no nível municipal. De 1993 até agora, somando-se todas as ações de ressarcimento propostas pelo Ministério Público, referentes principalmente às gestões de Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (1997-2000), chega-se a nada menos que 13,7 bilhões de reais – e isso sem correção monetária ou qualquer tipo de reajuste. Para se ter uma idéia da grandeza das suspeitas na prefeitura de São Paulo, as ações de ressarcimento contra todas as outras prefeituras do Estado, também no período de 1993 até hoje, somam 12,3 bilhões de reais, menos portanto do que na capital. Curiosamente, na pesquisa do instituto Transparência Brasil constatou-se que todos acham que, depois da violência, a corrupção é o principal problema da cidade. Só quem pensa diferente são os servidores municipais. Para eles, o grande drama urbano é a violência, depois o narcotráfico, depois o desemprego... A corrupção aparece num modesto oitavo lugar. Arnaldo Carvalho/JC Carvalho | CAMPEÃ NACIONAL Jacilda Urquisa, ex-prefeita de Olinda: recorde de desvios em 2003, diz o TCU | Além de chegar a mais de 20 bilhões de reais por ano, a roubalheira nas prefeituras é fenômeno em franco crescimento. Na semana passada, o Tribunal de Contas da União (TCU) preparou um levantamento mostrando que, nos últimos cinco anos, a média de recursos federais desviados por cada um dos prefeitos-saúvas saltou de 55.000 reais em 1999 para 269.000 reais no ano passado. Um aumento de quase 400%. Entre as 500 prefeituras cujas contas foram auditadas pelo TCU no ano passado, a de Olinda ganhou o troféu nacional de irregularidades. Sumiu com 7 milhões de reais. O TCU concluiu que a prefeitura, durante a gestão de Jacilda Urquisa, hoje deputada estadual em Recife, recebeu os recursos federais para erguer um muro de contenção da água do mar e restaurar um prédio histórico, e nenhuma das duas obras saiu do projeto. A ex-prefeita alega inocência e promete recorrer contra o TCU. "O Ministério Público já constatou que não houve enriquecimento ilícito. E todo o dinheiro que não foi aplicado nas obras foi devolvido ao município", diz ela.
De todos os recursos federais destinados às prefeituras, o mais atacado pela praga da corrupção é o dinheiro do Fundef, fundo destinado a qualificar professores do ensino fundamental, aumentar seus salários e ajudar na melhoria das instalações escolares. Por ano, as prefeituras recebem quase 10 bilhões de reais do Fundef. E a roubalheira, aí, chega ao descaramento. Em Cansanção, município de 32.000 habitantes no interior da Bahia, uma fiscalização da CGU descobriu que verbas do Fundef foram usadas para bancar despesas pessoais do prefeito e para comprar um carro da marca Mitsubishi para o vice-prefeito. Um curso de treinamento para 570 professores da cidade foi ministrado por uma empresa do comércio varejista de cereais! Na nota fiscal de prestação de contas, a empresa de cereais garante que prestou serviços de "encino". Depois de se constatar como se lida com o dinheiro da educação na cidade, não surpreende que o analfabetismo em Cansanção atinja 40% da população com mais de 15 anos. Há mais indícios de que a coisa está chegando a um nível de abuso nunca antes detectado no Brasil. Num universo de 150 prefeituras visitadas por auditores da CGU no ano passado, apenas seis estavam com suas contas corretas. Trinta e oito haviam cometido falhas apenas formais, como o preenchimento incorreto de um formulário. Em 106 prefeituras, porém, os fiscais tropeçaram em algum tipo de corrupção. Ou seja: de uma amostra aleatória, 70% das prefeituras foram pegas cometendo alguma irregularidade. Um bom lembrete para outubro próximo: como mostram as experiências bem-sucedidas de erradicação dos prefeitos-saúvas, a participação da sociedade não pode se esgotar com a escolha do melhor candidato nas eleições municipais. Irresponsabilidade e dependência Frederic Jean | O sistema municipalista brasileirotem a péssima combinação de irresponsabilidade de gastos com a certeza de que as prefeituras serão sempre salvas da insolvência pelos cofres da União. É um dos exemplos mais citados na literatura mundial dessa combinação ruinosa conhecida em inglês como "moral harzard" – ou "risco moral" Os municípios brasileiros recebem proporcionalmente a maior quantidade de repasses federais em todo o mundo. Eles ficam com 15% da arrecadação nacional. No México, por exemplo, Estados e municípios somados ficam com apenas 3%. A média mundial de repasses a prefeituras é de 6% | | |
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