Nenhuma investigação, por mais meritórios que sejam seus objetivos, pode ser feita ao arrepio da lei. Processos malconduzidos, quando fogem aos trâmites formais, acabam sendo anulados e só fazem insuflar o sentimento de impunidade diante da corrupção. A decisão do ministro Asfor Rocha não é definitiva. A suspensão dos processos vale até o julgamento de um habeas corpus pela 6ª turma de ministros do STJ. Os argumentos dos advogados da Camargo Corrêa são rebatidos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal da Justiça Federal, em São Paulo, onde correm os processos da Castelo de Areia. Eles afirmam que a investigação não começou a partir de denúncia anônima, mas com base em indícios colhidos em outra operação da PF, a Downtown, realizada contra doleiros em 2008. A Downtown teria levantado as suspeitas de envolvimento dos executivos da Camargo Corrêa com remessas ilegais de dinheiro. O MPF e De Sanctis afirmam também que as escutas foram feitas legalmente e sem abusos.
A decisão do ministro Asfor Rocha de suspender os processos ocorre em um momento crucial. Dois dias antes, o juiz De Sanctis aceitara parcialmente uma denúncia apresentada pela procuradora da República Karen Kahn, do Ministério Público Federal, contra três diretores da Camargo: Pietro Francesco Bianchi, Dárcio Brunato e Fernando Dias Gomes. De Sanctis aceitou a denúncia na parte relativa a acusações de lavagem de dinheiro e evasão de divisas e abriu processo penal contra os executivos. Ao mesmo tempo, negou a abertura de processo com base em acusações de corrupção contra a administração pública. De Sanctis reconheceu indícios de pagamentos feitos “supostamente de forma ilícita”, mas determinou que o MPF e a PF se aprofundassem na apuração dos casos suspeitos.
Na semana passada, ÉPOCA teve acesso à denúncia da procuradora Karen Kahn. Feita com base num relatório da PF, o documento aponta três casos em que a Camargo Corrêa supostamente teria usado contas no exterior para pagar propinas como forma de conseguir que seus interesses fossem atendidos em contratos com governos e empresas públicas. As conclusões da PF e do MPF foram tiradas a partir da análise de manuscritos e documentos digitais armazenados em dois pen drives apreendidos na casa de Pietro Bianchi, diretor financeiro da Camargo. A denúncia relata operações relativas a construções de hospitais no Pará, a um contrato da Transpetro, empresa ligada à Petrobras, com o Estaleiro Atlântico Sul (no qual a Camargo é acionista), e à aquisição de um terreno no município de Caieiras, região metropolitana de São Paulo.
No caso das obras no Pará, a procuradora Karen Kahn diz que as anotações encontradas com Pietro Bianchi mostram que a Camargo Corrêa teria pago propinas ao PT e ao PMDB relativas a cinco obras de hospitais feitas pelo governo do Pará, nos municípios de Belém, Santarém, Breves, Redenção e Altamira. As obras, realizadas em parceria pela Camargo Corrêa com a construtora Schahin Engenharia, começaram em 2005, ainda no governo de Simão Jatene, do PSDB, mas os pagamentos e execução avançaram nos anos seguintes. Em 2007, a petista Ana Júlia Carepa assumiu o governo paraense, com o apoio do PMDB.
O Hospital Regional do Baixo Amazonas em Santarém, um dos cinco citados pelo MPF na denúncia que fala em propinas para o PT e o PMDB
A construção de navios da Transpetro no estaleiro da Camargo, no Porto de Suape, Pernambuco, é investigada. Sergio Machado, presidente da estatal, nega ter recebido dinheiro da construtora
A Polícia Federal encontrou anotações em que, segundo o MPF, “pode-se ver claramente a divisão e destinação de quantias elevadas aos partidos PT e PMDB, respectivamente nas quantias de R$ 286.854,79, para ser destinada à Conta Internacional, e o segundo montante de R$ 130.258,79, a ser repassado em São Paulo”. Posteriormente esses valores teriam sido reajustados para baixo. Segundo o MPF, as anotações de Pietro Bianchi mostram que o pagamento para o PT teria sido feito em uma conta em Taiwan no First Commercial Bank CO., Hong Kong Branch, sob o no 941-11-013368-2. O titular da conta seria a Tiger Information CO. LTD, descrita pela procuradora como “suposta offshore titular (nominal) da referida conta que acobertaria a identificação de seu verdadeiro detentor”. Na denúncia, Karen Kahn diz que, no documento encontrado com Pietro Bianchi, a sigla PT aparece ao lado da informação sobre a conta em Taiwan e da cifra correspondente a R$ 261.285,52. Esse valor “teria sido pago pela Camargo Corrêa em duas parcelas (R$ 77.584,38 e R$ 183.701,14), ali também discriminadas e que foi, exatamente, o montante remetido àquela conta, ao que tudo indica, em favor do requerido partido”, afirma a denúncia. O PMDB teria ficado com R$ 129.598,37. Segundo o MPF, o pagamento teria ocorrido no dia 17 de abril de 2008.
Para o MP, outros indícios de pagamentos de propinas na construção dos hospitais do Pará apareceriam em anotações feitas à mão, datadas de julho de 2008, em que supostamente a Camargo Corrêa destina para PT e PMDB porcentuais dos valores recebidos pelas obras dos hospitais. A divisão, segundo o MPF, é descrita da seguinte forma nos manuscritos de Pietro Bianchi: “PT 5% e PMDB 3% a serem calculadas sobre a rubrica Total 1, no valor de R$ 554.655,46 e Total 2, no valor de R$ 308.807,67”. Ao lado do valor supostamente destinado ao PT aparece a anotação “Partido e Carlos Botelho”. Ao lado do valor destinado ao PMDB, estão anotados “JB, eleição e partido”.
Carlos Botelho é o nome do conselheiro- -geral do governo do Pará, uma das pessoas mais influentes do governo Ana Júlia. É ele quem dá os pareceres sobre a legalidade ou não dos atos do governo. “Não faz sentido. A maioria das obras já havia terminado quando entramos no governo. Não sei por que meu nome aparece nisso. Quero que isso seja esclarecido o mais rápido possível”, disse Botelho a ÉPOCA. “Eu me encontrei algumas vezes com pessoas da Camargo Corrêa, mas não me lembro de falar com Pietro Bianchi.” O diretório do PT no Pará não se manifestou.
Não há referência no documento do MPF ao significado da sigla JB anotada junto ao dinheiro que seria destinado ao PMDB do Pará. O homem forte do PMDB local é o deputado federal Jader Barbalho. Jader foi aliado do PT e indicou pessoas para o comando das secretarias de Saúde e de Obras no governo Ana Júlia. Procurado, Jader, por meio de sua assessoria, enviou um fax que mostra um depósito de R$ 300 mil, feito em 3 de outubro de 2008, pela Camargo Corrêa na conta do Diretório Estadual do PMDB no Pará. Segundo a assessoria de Jader, a doação foi registrada oficialmente.
Para provar que estão certos na denúncia sobre o uso de contas em Taiwan para pagamentos de propinas ao PT, o MPF e a PF seguem algumas pistas. Os investigadores da Castelo de Areia estão atrás da suspeita de que a suposta propina da Camargo, antes de chegar à conta Tiger no First Bank de Hong Kong, teria passado pela conta 021.000.21 no JP Morgan Chase Bank, de Nova York. A conta é a mesma que teria sido usada em transações suspeitas pelo ex-prefeito de São Paulo Paulo Maluf. A operação teria sido feita pelo doleiro Richard Andrew de Mol Van Otterloo, que ficou famoso por movimentar no exterior dinheiro de Maluf. Otterloo hoje colabora com a Justiça em investigações sobre lavagem de dinheiro.
Na denúncia de Karen Kahn, a Transpetro, subsidiária da Petrobras responsável pelo transporte de petróleo, também é alvo. A denúncia aponta o presidente da Transpetro, Sergio Machado, como receptor de um suposto pagamento de R$ 291 mil. O nome de Machado foi identificado pelo Ministério Público por meio da sigla SM. Segundo a denúncia, Machado teria recebido o dinheiro na casa de um dos conselheiros da Camargo, Fernando de Arruda Botelho. As transações teriam o objetivo de favorecer o estaleiro Atlântico Sul, num contrato com a Transpetro para a construção de navios. O estaleiro, localizado no Complexo Industrial e Portuário de Suape, em Pernambuco, ganhou quatro licitações e é o principal executor das obras do Programa de Modernização da Frota de Petroleiros da Transpetro. Os contratos com o estaleiro preveem investimento de US$ 3,1 bilhões.
A denúncia do MPF diz também que os documentos apontam repasses para um “terceiro interessado”, somando R$ 27 milhões, o equivalente a 1% do valor do contrato dos navios. A primeira parcela, de outubro de 2007, teria sido de R$ 3 milhões. No momento em que o contrato foi firmado entre a Transpetro e o estaleiro, teria havido outro repasse de R$ 2,7 milhões. Do pen drive apreendido na casa de Pietro Bianchi, a PF extraiu uma ordem que indicaria o pagamento de parte dos R$ 27 milhões, feito em parcelas e por meio de transações internacionais. Segundo a denúncia, oito parcelas de US$ 492 mil teriam saído de conta da Banca Privada de Andorra, supostamente mantida pela Camargo Corrêa e controlada por Pietro Bianchi. O valor teria sido depositado em conta do HSBC Bank Zurich, em benefício da empresa Javary Investments.
Sergio Machado preside a Transpetro há seis anos. Antes, foi senador pelo PSDB e pelo PMDB do Ceará. Chegou ao cargo com o apoio do líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). Por meio da assessoria de imprensa da estatal, ele negou ter recebido propinas, ter contas no exterior ou ter se encontrado com Fernando Botelho na casa do executivo. A nota diz que os encontros de Machado com Botelho “aconteceram em eventos públicos referentes ao andamento das obras”. E que o estaleiro Atlântico Sul venceu as licitações “por ter oferecido à Transpetro o menor preço”.
A terceira parte da denúncia refere-se ao uso pela Camargo Corrêa de um terreno de 5,2 milhões de metros quadrados comprado em Caieiras, município da região metropolitana de São Paulo, onde a construtora pretende erguer 20 mil unidades habitacionais. Em um manuscrito apreendido com Pietro Bianchi e datado de 18 de junho de 2008, consta o valor de R$ 2,1 milhões a ser pago em quatro parcelas de R$ 525 mil. Ao lado, há a inscrição “contrapartida aprovação lei de zoneamento caieiras”, seguido de menções a “Pres da Câmara de Caieiras KF” e “Sec de segurança WP”.
Essas inscrições foram identificadas pelo MPF como Cleber Furlan, ex-presidente da Câmara de Caieiras, e Wladimir Panelli, então secretário de Segurança. Furlan e Panelli teriam tido papel relevante na aprovação da Lei de Zoneamento da qual a Camargo se beneficiou. Segundo o MPF, a aprovação da lei, questionada por uma ação direta de inconstitucionalidade, interessava à construtora. O manuscrito seria uma indicação de pagamento de propina. Na mesma pasta em que estava o manuscrito, a PF encontrou outro documento com os dados de uma conta no Wachovia Bank, nos Estados Unidos, para onde teria ido parte da propina. O valor de US$ 100 mil aparece relacionado à inscrição “pagamento da 3a prestação da obra de Caieiras”. ÉPOCA procurou Furlan e Panelli. Furlan não foi localizado. Panelli não respondeu aos pedidos de entrevista.
Por meio do advogado Celso Villardi, a Camargo diz que os documentos apreendidos pela PF foram apresentados sem perícia. “Não reconheço esses documentos que sequer foram periciados. Esses documentos estão sub judice. Todos que embasam as ações estão sobrestadas (interrompidas) por decisão do STJ”, diz. Até fevereiro, o STJ deverá decidir se os argumentos da Camargo são válidos.
Área comprada pela Camargo em Caieiras, São Paulo. Para o MPF, a transação envolveu propinas para vereador e secretário municipal
Sulamérica Trânsito
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