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segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Passageiros da agonia

Passageiros da agonia

No auge da vida, jovens perdem a luta contra as drogas.
Parentes rompem o silêncio e relatam seus dramas

Samarone Lima e Thaís Oyama
Fotos: Album de Familia

Cristiane Gaidies,
a "Maçãzinha", 20
anos. Assassinada
em São Paulo José Eduardo Motta, o "Duda", 24
anos. Suicídio
em Salvador, BA Pedro Públio
de Goes, 21 anos,
afogado em
Brasília, DF

Nelson Dal Poggetto matou-se aos 19 anos, deixando um bilhete de despedida para a família: "Amei muito vocês e vou tranqüilo. Isso vai ser um alívio". Tão jovem, ele sabia o que era sofrer. Desde os 12 anos envolvido com o mundo das drogas, passou da maconha e do álcool para a cocaína, e dela para o crack. "Eu sentia um cheiro de morte no ar", lembra a advogada paulista Nina Dal Poggetto, mãe de Nelsinho. Internado duas vezes, o rapaz voltava a fumar o cachimbinho de crack pouco tempo depois de receber alta. Na última vez, a mãe hospitalizada, ele não apareceu como havia combinado. Preocupada, ela telefonou para o celular. Deu caixa postal. Nina gelou. Sabia que era mais uma recaída. No dia seguinte, o menino apareceu em casa e ligou para a mãe. Estava deprimido e contou que vendera o celular para comprar a droga. "Tudo bem, filho." Nada estava bem. Nelson foi ao banheiro, tomou banho, escreveu o bilhete e deu um tiro na cabeça.
Marcelo Mesquita
Serva, 25 anos.
Overdose em
Marília, SP
Ângela Vieira
Mazzini, 32 anos.
Overdose em
Lisboa, Portugal
Nelson Dal
Poggetto, 19
anos. Suicídio
em São Paulo

Dramas como o de Nina são muito mais comuns do que as pessoas em geral gostam de acreditar. Só no ano passado, 20.000 pessoas morreram no Brasil vítimas da dependência química, entre casos de overdose, suicídios e assassinatos. É um terço de todas as baixas americanas em dez anos de guerra no Vietnã. Já seria um drama a perda de tantas vidas, em geral na flor dos anos. É pior do que isso. Meninos e meninas dependentes não lutam contra um inimigo visível ou facilmente identificável. Lutam consigo mesmos, contra a pulsão irresistível de seguir numa rota de autodestruição. Para os pais, amigos e irmãos, é impossível examinar a trajetória do jovem com a cabeça fria. Remorsos e sentimentos de culpa são inevitáveis. A pergunta que sintetiza essa dor sempre é: "Onde foi que errei?"

Na maioria das vezes, essa pergunta não tem resposta. Numa mesma família, sujeitos ao mesmo tipo de educação, um irmão será "careta", o outro, o malucão. Desfeito o namoro, uma adolescente chorará, poderá até fumar um cigarro de maconha, mas isso passa. A outra afundará em drogas cada vez mais poderosas. Os pais se separaram? Um garotão buscará conforto com os amigos, o outro... Nessa loteria, joga-se com probabilidades. Os meninos são mais sujeitos ao envolvimento com drogas ilícitas do que as meninas, na proporção de quatro para uma. Histórico familiar contendo depressão, tentativas de suicídio ou uso abusivo de álcool e drogas também contribui. Ambiente familiar desfavorável e falta de perspectivas profissionais completam o quadro do que os especialistas chamam de "fatores predisponentes". É pura estatística. Na vida real, um jovem pode não apresentar nenhum desses fatores e no entanto decair. Outro, que tenha todos, pode jamais se envolver com drogas.

Resultados da última pesquisa do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Cebrid, indicam que a droga é hoje uma ameaça onipresente. O estudo aponta que um quarto dos estudantes brasileiros com idade entre 10 e 18 anos já provou alguma droga ilegal. Na Universidade de São Paulo, uma das melhores e mais disputadas do país, com clientela ultra-seleta, outra enquete revelou que um em cada três estudantes já apertou um cigarro de maconha. A imensa maioria sairá ilesa da experiência. Menos de 2% dos que experimentam tornam-se dependentes. Por que uns recebem o bilhete fatal é um mistério.

Maurício Teixeira
Branco, 16 anos.
Overdose
em São Paulo Adriana de Oliveira,
20 anos.
Overdose em
Inconfidentes, MG Patrícia Guazzelli,
23 anos. Overdose
em Canoas, RS

Substâncias alucinógenas e estupefaciantes fazem parte da história da humanidade. A Bíblia faz referência ao uso de bebidas alcoólicas, a maconha já era utilizada na China 3.000 anos antes de Cristo. Vêm da mesma época os primeiros registros do consumo de ópio, como relaxante e analgésico. No México, um cacto alucinógeno, o peiote ou mescal, integrava os rituais religiosos desde o ano 1000 a.C. Mais recentemente, nos anos 40, soldados nas frentes de batalha da II Guerra Mundial ganharam a coragem que lhes faltava para os combates na base da ingestão de anfetaminas. Aumentava-lhes a vigilância e a excitabilidade. Nos anos 60, a maconha acompanhou os jovens nas manifestações de protesto. Depois, foi tudo ao mesmo tempo. Ácido lisérgico, o LSD, cocaína, heroína, crack, ecstasy, além das drogas antigas. Trata-se de um imenso arsenal químico, oferecido todos os dias, legal ou ilegalmente, para preencher o vazio da vida ou como lenitivo para a dor e o sofrimento. "A tendência do ser humano é buscar alternativas que o ajudem a escapar de sensações dolorosas e desagradáveis. E, para algumas pessoas, a droga é uma saída para isso", afirma o professor Elisaldo Carlini, titular de psicofarmacologia na Universidade Federal de São Paulo e diretor do Cebrid. O custo disso pode ser muito alto. Diariamente, no Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas consomem algum tipo de psicotrópico.
Naílton de Abreu
Torres, 20 anos.
Suicídio em
São Paulo
Mirella Pascotto,
16 anos. Queda
de um edifício
em São Paulo
Marcos Dallal,
36 anos.
Assassinado no
Rio de Janeiro

É arriscado, muitas vezes inevitável, requer atenção da família, mas o uso eventual não conduz necessariamente à dependência. Não fosse o fato de a maconha ser uma droga ilegal, que obriga o fumante a percorrer corredores do submundo para consegui-la, seu consumo numa festinha equivaleria a uma bebida alcoólica, coisa que não leva obrigatoriamente ao alcoolismo. É natural que os pais sintam medo. A ameaça das drogas é a quarta maior preocupação do brasileiro. Só perde para o desemprego, a saúde e o salário, segundo pesquisa do Ibope realizada no início deste ano. Primeiro, a família não sabe até onde o uso da droga pode tornar-se crônico e compulsivo, tomando conta da vida do filho. Depois, há o perigo do envolvimento com a violência do tráfico e de outros usuários. A psiquiatra carioca Maria Tereza de Aquino lembra: "Esses jovens acabam se envolvendo com a polícia, os traficantes e os tiroteios". Maria Tereza tem uma contabilidade macabra. Todos os anos perde uma média de quatro a cinco pacientes de forma violenta.

Foi assim num caso que chocou a cidade de São Paulo, em outubro de 1995, quando Cristiane Gaidies, de 20 anos, morreu alvejada por um tiro de pistola 9 milímetros. A menina, filha de uma psicóloga, até os 18 anos dormia abraçada ao ursinho de pelúcia. Gostava de ir a shopping centers e a shows de rock. No final de 1992, de repente, abandonou os amigos e envolveu-se com maconha e crack. A família tentou de tudo. Levou-a a terapeutas e psiquiatras. Internou-a durante um mês numa clínica especializada. Mas "Maçãzinha", o apelido da garota, recaía sempre. "Ela sumia de casa, ficava vagando pelas ruas fumando crack e depois reaparecia parecendo uma mendiga", lembra-se a mãe, Marli. Foi morta quando tentava roubar um toca-fitas de um Fiat Tipo. O toca-fitas tinha sido exigido por um traficante que a abastecia. Era o preço da droga.
De cada quatro estudantes brasileiros com idade entre 10 e 18 anos, um já experimentou alguma droga ilegal

O que preocupa os especialistas é que a aflição das famílias em relação ao problema das drogas é desproporcionalmente maior do que o grau de informação sobre o assunto. O paulista Égas Branco, professor de tênis, via o filho chegar em casa com os olhos injetados, sintoma mais evidente dos usuários de maconha, mas achava que Maurício, estudante de 16 anos, apenas tinha "tomado umas cervejinhas a mais". A paisagista baiana Almaísa Motta, mãe de José Eduardo, o "Duda", que se suicidou aos 24 anos, não percebia os jarros de chá de cogumelo (um alucinógeno) que o filho colocava na geladeira, ao lado dos sucos de frutas consumidos pela família. O filho de repente começa a mentir que perdeu todo o dinheiro — na verdade, usou-o para comprar a droga. Cerca-se de "más companhias", em geral outros dependentes. Desaparece do círculo familiar. Reduz o ritmo de estudo e de trabalho. É um tipo de vida que as famílias ainda costumam resumir como "vagabundagem". Não é assim. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a dependência pode ser definida como a perda de controle sobre tudo aquilo que envolve o consumo da droga: a quantidade, a qualidade e a freqüência. Um dependente químico, portanto, não é um fraco de caráter, um sem-vergonha ou ovelha negra da família. É um doente. Precisa ser tratado. E rapidamente.

Mariana Johannpeter,
23 anos. Queda de
um edifício, RS José Artur Machado,
o "Petit", 32 anos.
Suicídio no
Rio de Janeiro Fernanda
Ferreira de
Moraes, 16 anos. Overdose em
Contagem, MG

Psicólogos e psiquiatras reconhecem a enorme diferença entre o uso esporádico e a dependência. Mas advertem: quando os pais ficam sabendo, geralmente é porque a situação já fugiu ao controle. O que fazer quando a notícia do consumo de drogas chega em casa? O médico Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo, diz que um dos primeiros procedimentos dos pais deve ser parar de acobertar o filho. Se ele consumiu droga e não pôde ir trabalhar ou faltou à escola, o próprio usuário deve se explicar. "Nada de inventar desculpas para ele", aconselha. Ameaças do tipo "se você não parar, vou expulsá-lo de casa" não funcionam. Com o tempo, isso apenas aumenta os atritos. Abrir espaços de diálogo é uma ótima alternativa. Devem-se impor limites. Os pais são responsáveis pela educação dos filhos, e, enquanto eles moram na mesma casa, têm de obedecer a certas regras. Ou seja, é importante o diálogo, mas deixando bem claro que para a família não é "tudo bem" com as drogas. Pais e irmãos devem agir em conjunto, ajudando e encorajando o parente em dificuldade. Ignorar os protestos dos dependentes contra o atendimento especializado é fundamental. "Eles sempre acham que podem se recuperar sozinhos", diz o médico. Devem-se marcar consultas com psiquiatras mesmo contra a vontade do dependente. Se não conseguem levar o filho a uma clínica ou especialista, vale a pena os pais se dirigirem a serviços de atendimento em busca de orientação. É até fácil falar, mas, na procura pela salvação do filho dependente, o que mais acontece são as famílias se dilacerarem.
Marcelo Bhering,
30 anos.
Assassinado no
Rio de Janeiro
André Maciel, 20
anos. Acidente em
uma motocicleta,
em São Paulo
Marcus Roberto
Pazini, 19 anos.
Assassinado em
São Paulo
Ana Catharina
Nogueira, 15
anos. Suicídio
no Recife, PE

"Meu pai não admitia e não admite que uma pessoa não consiga se autocontrolar", lembra a contadora carioca Marcia Dallal. "Quando ele soube que meu irmão Marcos estava envolvido até a medula com drogas — ele era um ex-hippie —, reagiu com ódio." O pai surrava o filho, chamava a polícia. Achava que assim estava ajudando. "Nossa família ficou um trapo. Eu não suportava a forma violenta com a qual papai tratava o Marcos." Afundado na dependência, isolado da família, sem dinheiro, o rapaz foi morto com dois tiros nas costas quando roubava um pedaço de carne. "Nunca mais os encontros em família viram um sorriso", lamenta Marcia.

A dificuldade é convencer o dependente de que ele tem um problema sério de saúde, e não uma rebeldia, um inconformismo às vezes até encarado por ele como coisa positiva. Um estudo realizado pelo departamento de psicologia da Universidade Federal de São Paulo sobre imprensa e drogas aponta as raízes dessa imagem favorável de que as drogas gozam até hoje. De 1968 a 1975, período mais violento da repressão política, havia uma associação constante entre o uso de drogas e a rebelião libertária dos jovens. Em outros países, fenômenos parecidos ocorreram e continuam ocorrendo. A simples associação da droga com a juventude já transfere ao vício uma certa aura benévola. Nos anos 80 veio o susto. Substâncias que antes se ligavam à idéia de "paz e amor" agora vinham vinculadas às palavras violência, tráfico, morte. Mas talvez o maior risco seja o atual, quando essas coisas se banalizaram. Uma das maiores autoridades brasileiras no estudo de drogas, o professor e psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, titular da Universidade de São Paulo, pai de um adolescente, conta que, quando chamou o filho para uma primeira conversa sobre os perigos da maconha, obteve a seguinte resposta: "Nem vem, pai. É claro que eu vou experimentar". O professor ficou perplexo. Percebeu, naquele momento, que seu filho não era diferente da maioria dos jovens: curioso, estava sujeito a uma tragada experimental — e a todos os riscos que advêm dela. O principal: o contato com outras drogas, que criam a dependência química mais velozmente. "O uso da droga, infelizmente, é hoje quase como um rito de passagem para o adolescente. Uma fase parecida com a iniciação sexual", diz Guerra de Andrade.

A família tem de prestar muita atenção nessa "iniciação", porque a recuperação de um dependente é muito difícil, mesmo quando se usam todos os recursos à disposição. Contam-se às pencas histórias de derrotas no decorrer do tratamento. A terapeuta corporal paulistana Tereza de Jesus Ferreira Maciel viu o filho André lutar por cinco anos para se recuperar da dependência de cocaína. "Quatro vezes internado em clínicas especializadas, cada internação era uma esperança. Ele parecia que queria voltar a viver, submetia-se a todas as normas, ganhava peso, ficava lindo. Eu ressuscitava junto", lembra Tereza. Mas a cada recaída ele piorava. Mergulhava ainda mais profundamente nas drogas, apesar de ter vergonha da dependência. Um dia, quando André acabava de receber alta na última de suas internações, ele foi visitar a mãe no trabalho. "Sentou-se, olhou para mim e sorriu daquele jeito horrível como só fazia quando estava sob efeito da droga. Eu disse para ele: 'Você está com a mão na maçaneta da porta do inferno, meu filho'." Era mais uma recaída. Pouco tempo depois, o menino, de apenas 20 anos, estatelou-se num acidente de moto. A mãe tem certeza de que ele estava drogado na hora da morte. Segundo o professor Guerra de Andrade, a maioria dos dependentes clinicamente diagnosticados não consegue recuperar-se. Tratamentos e internações têm sucesso em apenas 30% dos casos. "Nos demais, o paciente torna-se um dependente crônico. Ou, pior, morre prematuramente, como André, de overdose, acidentes, suicídio ou por envolvimento com traficantes", afirma o professor.
Os melhores tratamentos para a dependência de drogas recuperam apenas 30% dos pacientes que
se internam

Mesmo com tão baixas taxas de recuperação, as famílias não poupam esforços. O tratamento de um dependente não exige da família só uma boa dose de paciência e compreensão: requer também uma polpuda conta bancária. As clínicas particulares para tratamento de dependentes cobram, em média, 180 reais a diária, o que totaliza uma despesa mensal de mais de 5.000 reais. Como as internações quase nunca duram menos de dois meses e têm de ser acompanhadas por consultas a terapeutas e psiquiatras, o custo total do tratamento soma uma pequena fortuna da qual poucas famílias podem dispor. Para a grande maioria dos pais de dependentes químicos, portanto, restam os grupos de ajuda mútua, os serviços gratuitos oferecidos por unidades psiquiátricas de algumas faculdades de medicina e os centros de saúde de hospitais públicos, sempre lotados. Os mais pobres ficam a descoberto porque, na guerra contra as drogas, o Brasil ainda luta com estilingues. A verba destinada a gastos com internações, campanhas de prevenção e repressão ao tráfico não passou de 110 milhões de reais no ano passado. No mesmo período, os Estados Unidos investiram 16 bilhões de dólares.
O Brasil gastou com internações, prevenção e repressão ao tráfico de drogas 110 milhões de reais em 1997

As trinta famílias que aceitaram falar a VEJA sobre o inferno das drogas vivido por seus filhos enfrentaram a vergonha e o preconceito porque acham necessário derrubar o muro de silêncio que cerca o assunto. "É a forma que temos de ajudar outros meninos que estão passando pelo que já passamos", justifica Márcio Mesquita Serva, reitor da Universidade de Marília. No dia 18 de janeiro de 1991, Serva foi informado pela polícia de que seu filho, Marcelo, de apenas 21 anos, morrera de ataque cardíaco em uma festa. O professor não acreditou. Fez uma detalhada apuração e descobriu que o rapaz sofrera uma overdose de cocaína, aspirada numa festinha com talagadas de uísque Logan. "É muito mais fácil para a polícia dizer que foi um infarto do que admitir que não consegue conter o tráfico e que a droga está em todos os lugares", reclama. Dias depois de enterrar o filho, ele convocou a imprensa e pediu que algo fosse feito para evitar o surgimento de "outros Marcelos". "Eu não quero mais as mentiras e os enganos", disse ele na época. Tem razão. Droga mata e é preciso enfrentá-la com toda a energia possível. E o melhor jeito de começar a batalha é olhar o problema de frente.
" Perdi meu filho,
meu filhinho, de
quem, naquela fase
horrível, eu tinha
me tornado um
grande amigo...
Foto: Egberto Nogueira

...Ele era um garotão lindo. Com 16 anos, tinha quase 2 metros de altura. Era generoso e educado. Chamava todo mundo de senhor. Não era um aluno extraordinário, mas também nunca havia perdido um ano. Quando minha mulher disse que ele andava chegando tarde, com os olhos vermelhos, achei que fosse coisa da idade. Só descobrimos o problema quando recebemos um telefonema dizendo que o Maurício fora preso. Durante uma alucinação, achou que estava sendo perseguido e arrombou o apartamento do vizinho. Era crack. Fiquei arrasado. Ele prometeu que pararia, e de fato passava alguns dias tranqüilo. Mas depois voltava. Decidimos interná-lo. Ele ficou seis meses e saiu outro. Até passou a rezar. Um dia, Maurício me ligou, pedindo que fosse buscá-lo no Viaduto do Chá. Tremi na hora. Quando cheguei, ele estava sentado na beira do viaduto, com os olhos estatelados. Tinha começado tudo de novo. 'Vacilei, pai!', ele me disse. A morte dele nos foi contada pela polícia. O Maurício estava correndo como louco pela rua. Um policial que já o conhecia conseguiu agarrá-lo e colocá-lo na viatura. Lá, ele começou a ter convulsões. Levado ao hospital, não resistiu a várias paradas cardíacas. Meu filho era fraco, desprotegido, e eu o vi travar uma luta miserável durante um ano para largar a droga. Mil vezes eu queria ter estado no lugar dele."

Égas Branco, professor de tênis, e sua mulher,
Helena, pais de Maurício Teixeira Branco, morto
de overdose aos 16 anos, em São Paulo


"Meu filho foi
enterrado como
indigente. Só
encontrei o corpo
quatro meses depois...
Foto: Paulo Jares

...no cemitério de Santa Cruz. Uma pessoa telefonou e disse que tinha um Marcelo Bhering lá. O corpo tinha uma bala no crânio. Na minha investigação, soube que, junto com uma menina, ele tinha ido de táxi buscar cocaína na Ladeira dos Tabajaras. No último réveillon que passou vivo, eu estava na casa da minha filha. Ele me ligou à meia-noite e ficou falando que não prestava. Telefonou doze vezes. Ele tinha cheirado e estava muito triste. Falava dos filhos e da mulher. Estava muito consciente do que poderia ter feito e não fez, e muito infeliz com a condição de drogado. Dizia que não desejava aquilo para ninguém. O brilho dele sempre foi voltado para o lado esportivo. Dava aula de jiu-jítsu desde os 16 anos e tinha um bom corpo. Quando eu e meu marido nos separamos, acho que isso mexeu muito com a cabeça dele. Tinha 20 anos e não conseguiu superar o desmantelamento da família. O pai sempre foi um mito para ele, e de repente desmanchou tudo. Marcelo não se conformava, chorava muito. Logo depois ele foi morar na Austrália para competir e acho que começou a droga pesada. Em 1994, acabamos internando-o numa clínica, mas ele detestava e saiu. Começou a dar aula de novo, proibia os alunos de usar drogas, mas sentia-se completamente impotente para lidar com a própria dependência. Quando ele morreu, eu e meus outros filhos conversamos e chegamos à conclusão de que ele não estava feliz aqui."

Helena Bhering, mãe de Marcelo Bhering,
assassinado aos 30 anos no Rio de Janeiro


"Várias vezes encontrei
o meu filho conversando
com o espelho, pedindo
a ajuda de Deus...
Foto: Fernando Vivas

...Ele queria sair do martírio das drogas, mas não conseguia. No dia 24 de julho, após várias tentativas perdidas de livrar-se da dependência, o Duda achou em nosso sítio um revólver calibre 38, mantido por medo de assalto. Ele deu um tiro na cabeça. Ainda ficou cinco dias na UTI. Eu olhava para o meu filho no hospital e não queria acreditar que ele fosse morrer. Ele começou aos 16 anos, fumando maconha, depois descobriu o chá de cogumelo. Os potes com a bebida ficavam na geladeira, junto com as jarras de suco da família. Ele me dizia que era suco, e como sempre acreditei nos meus filhos, não me preocupei. Uma namorada do meu filho mais velho desconfiou e, pressionado, Duda acabou abrindo o jogo. Procurei psiquiatras, psicólogos, centros espíritas e até a umbanda, mas nada adiantou. Comecei a compreender que estava perdendo o meu filho. Me convenci que era necessário interná-lo em uma clínica para tratamento de dependentes químicos em São Paulo, porque na Bahia não havia locais apropriados, mas ele se recusou a ir se eu não pudesse ficar com ele. Eu não podia ficar muito tempo longe dos meus outros filhos e do meu trabalho e decidimos buscar ajuda por aqui mesmo. Se na época houvesse lugares parecidos por aqui, meu filho talvez tivesse tido uma chance. Agora freqüento um centro espírita e recebi duas mensagens psicografadas dele. Duda reconheceu que ele próprio fez o seu caminho."

Almaísa Motta, mãe de José Eduardo Motta, o
"Duda", que suicidou-se aos 24 anos em Salvador

"Tenho 51 anos e
nos últimos cinco
envelheci mais de vinte...
Foto: Egberto Nogueira

...tentando fazer do meu filho uma pessoa decente, viva, feliz. Não consegui vencer. O André morreu em um acidente de moto no dia 3 de outubro de 1997, aos 20 anos. Oficialmente, foi vítima do acidente, mas ele morreu por causa das drogas. Descobri o problema quando ele tinha 16 anos e passou um cheque falsificando minha assinatura. Ele revelou que tinha começado com a maconha. Depois veio a cocaína. Tenho duas filhas, e nos tornamos três mães para ele. Em quatro vezes o internamos. Ele cumpria toda a programação, parecia ir bem, dava uma grande esperança de se livrar da dependência. Mas a cada recaída ficava pior. Um dia, ele foi me visitar no trabalho. Tinha saído há pouco tempo de uma clínica. Teve um momento em que ele se sentou, olhou para mim e deu um sorriso estranho. Era o efeito da droga. Eu disse: 'Filho, você está com a mão na maçaneta da porta do inferno'. Era mais uma recaída. Cada internação era uma esperança, mas o custo era muito alto. Eu vivia com a conta no vermelho, fazia chocolate para fora, costurava, trabalhava em dois empregos, mas sempre deixei claro para ele que, enquanto tivesse esperança, eu estaria junto, lutando com ele. Um milagre podia acontecer. Fiz tudo o que foi possível para salvar o meu filho, enfrentei situações terríveis. Agora que ele morreu, sinto um alívio e um vazio enorme. Quando me aposentar, quero construir um lugar para recuperar meninas drogadas."

Tereza de Jesus Ferreira Maciel, mãe de André
Maciel Paulino, morto aos 20 anos,
num acidente de moto em São Paulo

"Ana Catharina,
minha irmã mais
nova, se suicidou
em setembro de 1992,
aos 15 anos...
Foto: Pio Figueiroa

...Seu primeiro contato com drogas foi no começo de 1991. Logo depois de acabar um namoro, ela procurou alívio através de tragadas num cigarro de maconha, presente de um conhecido de Olinda. Só descobrimos seu envolvimento por acaso. Ela estava faltando às aulas na escola, sempre tinha os olhos vermelhos e o andar cambaleante. Quando a pressionei, ela revelou tudo, inclusive o uso esporádico de cocaína. Deu um tempo na droga, mas duas semanas depois chegou em casa do mesmo jeito. Eu e meu irmão decidimos contar ao meu pai, que exigiu dela uma lista dos seus colegas usuários e dos fornecedores. Catharina não queria, mas acabou entregando todos. Chegou a sugerir que gostaria de morar com meu pai em nosso sítio no interior, e tudo parecia resolvido. Fomos embora e Catharina ficou sozinha, com a chave da gaveta onde meu pai guardava um revólver. Meia hora depois escreveu uma carta e ligou para casa se despedindo da empregada, que chegou a ouvir o disparo. Deu um tiro na cabeça. Na carta, acusou meu irmão e a mim por sua morte e pediu apenas para que cuidássemos de seus cachorros, que adorava. Foi um trauma muito grande que demorou a ser superado. Logo depois meus pais se separaram, fui morar sozinha e só agora minha mãe consegue falar dela sem chorar. Quando acontece uma tragédia dessas, ou a família se une ou se afasta. Com a minha aconteceu a segunda hipótese."

Ana Claúdia Nogueira, irmã da estudante
pernambucana Ana Catharina


"A perda de um filho
é uma dor que não
acaba nunca, que fica
com a gente as
24 horas do dia...
Foto: Flavio Canalonga

...Na noite da morte do Marcelo, eu estava em São Paulo, e quando cheguei a Marília, a polícia me informou que a causa mortis tinha sido um ataque cardíaco. Comecei a desconfiar que as coisas não estavam muito claras. Falei com amigos dele e com os empregados da casa e consegui descobrir o que realmente aconteceu na minha casa na noite do dia 18 de janeiro de 1991. Um grupo de amigos do Marcelo, todos de famílias influentes da cidade, consumiu duas garrafas de uísque Logan e cocaína. Na verdade, o meu filho morreu de overdose. É muito comum, nos casos de morte provocada por drogas, os familiares dizerem que a vítima estava consumindo pela primeira vez. Isso é realmente muito bom para quem quer se enganar e não enfrentar a realidade, mas não era o meu caso. É muito mais fácil para a polícia dizer que foi um infarto do que admitir que a droga está presente em todos os lugares na região onde vivo. Imediatamente convoquei a imprensa e divulguei o que tinha acontecido, na tentativa de alertar a sociedade e lutar para que não surjam outros Marcelos. Logo depois a polícia reabriu quatro casos idênticos que tinham sido arquivados. As investigações, como sempre, não deram em nada. Ninguém quer falar das drogas e vamos nos enganando até que, infelizmente, acontece com a nossa família.

Márcio Mesquita Serva, reitor da Universidade
de Marília, pai de Marcelo Mesquita Serva,
morto aos 25 anos de overdose


Os primeiros sinais...

A iniciação nas drogas vem acompanhada, em geral, por mudanças físicas e de comportamento. Sintomas isolados podem significar apenas problemas passageiros de saúde. Dois ou mais sinais servem de alerta:

Olhos vermelhos — o THC, substância encontrada na folha da maconha, dilata os vasos sanguíneos oculares, provocando vermelhidão.

Sangramento nasal — o uso de cocaína estimula a produção de substâncias como dopamina e noradrenalina no cérebro, que aumentam a pressão arterial, ocasionando o rompimento de pequenos veias e artérias.

Perda de peso e apetite — a cocaína provoca aumento na liberação de serotonina, neurotransmissor que inibe o apetite.

Síndrome persecutória — a cocaína causa um curto-circuito no sistema límbico (que comanda as emoções) e no córtex (responsável pelas funções psíquicas), o que pode ocasionar delírios no usuário.

Mudança de amigos — é comum a troca de antigas amizades por outras que facilitem o acesso rápido e constante à droga.

Uso de gírias novas — branquinha, baque, larica, farinha são expressões comuns no círculo dos viciados. Seu uso pode indicar, no mínimo, relacionamento com pessoas ligadas a drogas.

...e o caminho da cura

O caminho da cura exige o reconhecimento, pelo dependente, de que precisa de ajuda. O envolvimento da família e a ajuda profissional são as principais armas à disposição. Algumas vezes, funciona.

Grupos de auto-ajuda — encontro de usuários para troca de experiências e discussão. O objetivo é aumentar a auto-estima com o apoio de pessoas na mesma situação.

Tratamento ambulatorial — consultas regulares a psiquiatras ou terapeutas, acompanhadas por atividades individuais ou em grupo, para restabelecer motivações e estimular a volta à vida normal.

Internação domiciliar — alternativa mais barata e menos radical do que a internação em clínica. Só é possível quando alguém da família pode monitorar o paciente em tempo integral. O dependente tem de se comprometer a aceitar regras como só sair de casa acompanhado e participar de grupos de auto-ajuda ou fazer tratamento ambulatorial.

Internação em clínica — recomendada quando tentativas anteriores de tratamento não deram certo, ou quando o dependente apresenta deterioração física, sintomas psicóticos e pulsões suicidas.

Com reportagem de Alexandre Oltramari,
de Porto Alegre, José Edward, de Belo Horizonte,
Rodrigo Cardoso, de São Paulo, Roberta Paixão,
do Rio de Janeiro, e Juliana De Mari, do Recife




Copyright © 1998, Abril S.A.






No auge da vida, jovens perdem a luta contra as drogas.
Parentes rompem o silêncio e relatam seus dramas

Samarone Lima e Thaís Oyama

Fotos: Album de Familia

Cristiane Gaidies,
a "Maçãzinha", 20
anos. Assassinada
em São Paulo
José Eduardo Motta, o "Duda", 24
anos. Suicídio
em Salvador, BA
Pedro Públio
de Goes, 21 anos,
afogado em
Brasília, DF

Nelson Dal Poggetto matou-se aos 19 anos, deixando um bilhete de despedida para a família: "Amei muito vocês e vou tranqüilo. Isso vai ser um alívio". Tão jovem, ele sabia o que era sofrer. Desde os 12 anos envolvido com o mundo das drogas, passou da maconha e do álcool para a cocaína, e dela para o crack. "Eu sentia um cheiro de morte no ar", lembra a advogada paulista Nina Dal Poggetto, mãe de Nelsinho. Internado duas vezes, o rapaz voltava a fumar o cachimbinho de crack pouco tempo depois de receber alta. Na última vez, a mãe hospitalizada, ele não apareceu como havia combinado. Preocupada, ela telefonou para o celular. Deu caixa postal. Nina gelou. Sabia que era mais uma recaída. No dia seguinte, o menino apareceu em casa e ligou para a mãe. Estava deprimido e contou que vendera o celular para comprar a droga. "Tudo bem, filho." Nada estava bem. Nelson foi ao banheiro, tomou banho, escreveu o bilhete e deu um tiro na cabeça.

Marcelo Mesquita
Serva, 25 anos.
Overdose em
Marília, SP
Ângela Vieira
Mazzini, 32 anos.
Overdose em
Lisboa, Portugal
Nelson Dal
Poggetto, 19
anos. Suicídio
em São Paulo

Dramas como o de Nina são muito mais comuns do que as pessoas em geral gostam de acreditar. Só no ano passado, 20.000 pessoas morreram no Brasil vítimas da dependência química, entre casos de overdose, suicídios e assassinatos. É um terço de todas as baixas americanas em dez anos de guerra no Vietnã. Já seria um drama a perda de tantas vidas, em geral na flor dos anos. É pior do que isso. Meninos e meninas dependentes não lutam contra um inimigo visível ou facilmente identificável. Lutam consigo mesmos, contra a pulsão irresistível de seguir numa rota de autodestruição. Para os pais, amigos e irmãos, é impossível examinar a trajetória do jovem com a cabeça fria. Remorsos e sentimentos de culpa são inevitáveis. A pergunta que sintetiza essa dor sempre é: "Onde foi que errei?"

Na maioria das vezes, essa pergunta não tem resposta. Numa mesma família, sujeitos ao mesmo tipo de educação, um irmão será "careta", o outro, o malucão. Desfeito o namoro, uma adolescente chorará, poderá até fumar um cigarro de maconha, mas isso passa. A outra afundará em drogas cada vez mais poderosas. Os pais se separaram? Um garotão buscará conforto com os amigos, o outro... Nessa loteria, joga-se com probabilidades. Os meninos são mais sujeitos ao envolvimento com drogas ilícitas do que as meninas, na proporção de quatro para uma. Histórico familiar contendo depressão, tentativas de suicídio ou uso abusivo de álcool e drogas também contribui. Ambiente familiar desfavorável e falta de perspectivas profissionais completam o quadro do que os especialistas chamam de "fatores predisponentes". É pura estatística. Na vida real, um jovem pode não apresentar nenhum desses fatores e no entanto decair. Outro, que tenha todos, pode jamais se envolver com drogas.

Resultados da última pesquisa do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Cebrid, indicam que a droga é hoje uma ameaça onipresente. O estudo aponta que um quarto dos estudantes brasileiros com idade entre 10 e 18 anos já provou alguma droga ilegal. Na Universidade de São Paulo, uma das melhores e mais disputadas do país, com clientela ultra-seleta, outra enquete revelou que um em cada três estudantes já apertou um cigarro de maconha. A imensa maioria sairá ilesa da experiência. Menos de 2% dos que experimentam tornam-se dependentes. Por que uns recebem o bilhete fatal é um mistério.

Maurício Teixeira
Branco, 16 anos.
Overdose
em São Paulo
Adriana de Oliveira,
20 anos.
Overdose em
Inconfidentes, MG
Patrícia Guazzelli,
23 anos. Overdose
em Canoas, RS

Substâncias alucinógenas e estupefaciantes fazem parte da história da humanidade. A Bíblia faz referência ao uso de bebidas alcoólicas, a maconha já era utilizada na China 3.000 anos antes de Cristo. Vêm da mesma época os primeiros registros do consumo de ópio, como relaxante e analgésico. No México, um cacto alucinógeno, o peiote ou mescal, integrava os rituais religiosos desde o ano 1000 a.C. Mais recentemente, nos anos 40, soldados nas frentes de batalha da II Guerra Mundial ganharam a coragem que lhes faltava para os combates na base da ingestão de anfetaminas. Aumentava-lhes a vigilância e a excitabilidade. Nos anos 60, a maconha acompanhou os jovens nas manifestações de protesto. Depois, foi tudo ao mesmo tempo. Ácido lisérgico, o LSD, cocaína, heroína, crack, ecstasy, além das drogas antigas. Trata-se de um imenso arsenal químico, oferecido todos os dias, legal ou ilegalmente, para preencher o vazio da vida ou como lenitivo para a dor e o sofrimento. "A tendência do ser humano é buscar alternativas que o ajudem a escapar de sensações dolorosas e desagradáveis. E, para algumas pessoas, a droga é uma saída para isso", afirma o professor Elisaldo Carlini, titular de psicofarmacologia na Universidade Federal de São Paulo e diretor do Cebrid. O custo disso pode ser muito alto. Diariamente, no Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas consomem algum tipo de psicotrópico.

Naílton de Abreu
Torres, 20 anos.
Suicídio em
São Paulo
Mirella Pascotto,
16 anos. Queda
de um edifício
em São Paulo
Marcos Dallal,
36 anos.
Assassinado no
Rio de Janeiro

É arriscado, muitas vezes inevitável, requer atenção da família, mas o uso eventual não conduz necessariamente à dependência. Não fosse o fato de a maconha ser uma droga ilegal, que obriga o fumante a percorrer corredores do submundo para consegui-la, seu consumo numa festinha equivaleria a uma bebida alcoólica, coisa que não leva obrigatoriamente ao alcoolismo. É natural que os pais sintam medo. A ameaça das drogas é a quarta maior preocupação do brasileiro. Só perde para o desemprego, a saúde e o salário, segundo pesquisa do Ibope realizada no início deste ano. Primeiro, a família não sabe até onde o uso da droga pode tornar-se crônico e compulsivo, tomando conta da vida do filho. Depois, há o perigo do envolvimento com a violência do tráfico e de outros usuários. A psiquiatra carioca Maria Tereza de Aquino lembra: "Esses jovens acabam se envolvendo com a polícia, os traficantes e os tiroteios". Maria Tereza tem uma contabilidade macabra. Todos os anos perde uma média de quatro a cinco pacientes de forma violenta.

Foi assim num caso que chocou a cidade de São Paulo, em outubro de 1995, quando Cristiane Gaidies, de 20 anos, morreu alvejada por um tiro de pistola 9 milímetros. A menina, filha de uma psicóloga, até os 18 anos dormia abraçada ao ursinho de pelúcia. Gostava de ir a shopping centers e a shows de rock. No final de 1992, de repente, abandonou os amigos e envolveu-se com maconha e crack. A família tentou de tudo. Levou-a a terapeutas e psiquiatras. Internou-a durante um mês numa clínica especializada. Mas "Maçãzinha", o apelido da garota, recaía sempre. "Ela sumia de casa, ficava vagando pelas ruas fumando crack e depois reaparecia parecendo uma mendiga", lembra-se a mãe, Marli. Foi morta quando tentava roubar um toca-fitas de um Fiat Tipo. O toca-fitas tinha sido exigido por um traficante que a abastecia. Era o preço da droga.

De cada quatro estudantes brasileiros com idade entre 10 e 18 anos, um já experimentou alguma droga ilegal

O que preocupa os especialistas é que a aflição das famílias em relação ao problema das drogas é desproporcionalmente maior do que o grau de informação sobre o assunto. O paulista Égas Branco, professor de tênis, via o filho chegar em casa com os olhos injetados, sintoma mais evidente dos usuários de maconha, mas achava que Maurício, estudante de 16 anos, apenas tinha "tomado umas cervejinhas a mais". A paisagista baiana Almaísa Motta, mãe de José Eduardo, o "Duda", que se suicidou aos 24 anos, não percebia os jarros de chá de cogumelo (um alucinógeno) que o filho colocava na geladeira, ao lado dos sucos de frutas consumidos pela família. O filho de repente começa a mentir que perdeu todo o dinheiro — na verdade, usou-o para comprar a droga. Cerca-se de "más companhias", em geral outros dependentes. Desaparece do círculo familiar. Reduz o ritmo de estudo e de trabalho. É um tipo de vida que as famílias ainda costumam resumir como "vagabundagem". Não é assim. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a dependência pode ser definida como a perda de controle sobre tudo aquilo que envolve o consumo da droga: a quantidade, a qualidade e a freqüência. Um dependente químico, portanto, não é um fraco de caráter, um sem-vergonha ou ovelha negra da família. É um doente. Precisa ser tratado. E rapidamente.

Mariana Johannpeter,
23 anos. Queda de
um edifício, RS
José Artur Machado,
o "Petit", 32 anos.
Suicídio no
Rio de Janeiro
Fernanda
Ferreira de
Moraes, 16 anos. Overdose em
Contagem, MG

Psicólogos e psiquiatras reconhecem a enorme diferença entre o uso esporádico e a dependência. Mas advertem: quando os pais ficam sabendo, geralmente é porque a situação já fugiu ao controle. O que fazer quando a notícia do consumo de drogas chega em casa? O médico Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo, diz que um dos primeiros procedimentos dos pais deve ser parar de acobertar o filho. Se ele consumiu droga e não pôde ir trabalhar ou faltou à escola, o próprio usuário deve se explicar. "Nada de inventar desculpas para ele", aconselha. Ameaças do tipo "se você não parar, vou expulsá-lo de casa" não funcionam. Com o tempo, isso apenas aumenta os atritos. Abrir espaços de diálogo é uma ótima alternativa. Devem-se impor limites. Os pais são responsáveis pela educação dos filhos, e, enquanto eles moram na mesma casa, têm de obedecer a certas regras. Ou seja, é importante o diálogo, mas deixando bem claro que para a família não é "tudo bem" com as drogas. Pais e irmãos devem agir em conjunto, ajudando e encorajando o parente em dificuldade. Ignorar os protestos dos dependentes contra o atendimento especializado é fundamental. "Eles sempre acham que podem se recuperar sozinhos", diz o médico. Devem-se marcar consultas com psiquiatras mesmo contra a vontade do dependente. Se não conseguem levar o filho a uma clínica ou especialista, vale a pena os pais se dirigirem a serviços de atendimento em busca de orientação. É até fácil falar, mas, na procura pela salvação do filho dependente, o que mais acontece são as famílias se dilacerarem.

Marcelo Bhering,
30 anos.
Assassinado no
Rio de Janeiro
André Maciel, 20
anos. Acidente em
uma motocicleta,
em São Paulo
Marcus Roberto
Pazini, 19 anos.
Assassinado em
São Paulo
Ana Catharina
Nogueira, 15
anos. Suicídio
no Recife, PE

"Meu pai não admitia e não admite que uma pessoa não consiga se autocontrolar", lembra a contadora carioca Marcia Dallal. "Quando ele soube que meu irmão Marcos estava envolvido até a medula com drogas — ele era um ex-hippie —, reagiu com ódio." O pai surrava o filho, chamava a polícia. Achava que assim estava ajudando. "Nossa família ficou um trapo. Eu não suportava a forma violenta com a qual papai tratava o Marcos." Afundado na dependência, isolado da família, sem dinheiro, o rapaz foi morto com dois tiros nas costas quando roubava um pedaço de carne. "Nunca mais os encontros em família viram um sorriso", lamenta Marcia.

A dificuldade é convencer o dependente de que ele tem um problema sério de saúde, e não uma rebeldia, um inconformismo às vezes até encarado por ele como coisa positiva. Um estudo realizado pelo departamento de psicologia da Universidade Federal de São Paulo sobre imprensa e drogas aponta as raízes dessa imagem favorável de que as drogas gozam até hoje. De 1968 a 1975, período mais violento da repressão política, havia uma associação constante entre o uso de drogas e a rebelião libertária dos jovens. Em outros países, fenômenos parecidos ocorreram e continuam ocorrendo. A simples associação da droga com a juventude já transfere ao vício uma certa aura benévola. Nos anos 80 veio o susto. Substâncias que antes se ligavam à idéia de "paz e amor" agora vinham vinculadas às palavras violência, tráfico, morte. Mas talvez o maior risco seja o atual, quando essas coisas se banalizaram. Uma das maiores autoridades brasileiras no estudo de drogas, o professor e psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, titular da Universidade de São Paulo, pai de um adolescente, conta que, quando chamou o filho para uma primeira conversa sobre os perigos da maconha, obteve a seguinte resposta: "Nem vem, pai. É claro que eu vou experimentar". O professor ficou perplexo. Percebeu, naquele momento, que seu filho não era diferente da maioria dos jovens: curioso, estava sujeito a uma tragada experimental — e a todos os riscos que advêm dela. O principal: o contato com outras drogas, que criam a dependência química mais velozmente. "O uso da droga, infelizmente, é hoje quase como um rito de passagem para o adolescente. Uma fase parecida com a iniciação sexual", diz Guerra de Andrade.

A família tem de prestar muita atenção nessa "iniciação", porque a recuperação de um dependente é muito difícil, mesmo quando se usam todos os recursos à disposição. Contam-se às pencas histórias de derrotas no decorrer do tratamento. A terapeuta corporal paulistana Tereza de Jesus Ferreira Maciel viu o filho André lutar por cinco anos para se recuperar da dependência de cocaína. "Quatro vezes internado em clínicas especializadas, cada internação era uma esperança. Ele parecia que queria voltar a viver, submetia-se a todas as normas, ganhava peso, ficava lindo. Eu ressuscitava junto", lembra Tereza. Mas a cada recaída ele piorava. Mergulhava ainda mais profundamente nas drogas, apesar de ter vergonha da dependência. Um dia, quando André acabava de receber alta na última de suas internações, ele foi visitar a mãe no trabalho. "Sentou-se, olhou para mim e sorriu daquele jeito horrível como só fazia quando estava sob efeito da droga. Eu disse para ele: 'Você está com a mão na maçaneta da porta do inferno, meu filho'." Era mais uma recaída. Pouco tempo depois, o menino, de apenas 20 anos, estatelou-se num acidente de moto. A mãe tem certeza de que ele estava drogado na hora da morte. Segundo o professor Guerra de Andrade, a maioria dos dependentes clinicamente diagnosticados não consegue recuperar-se. Tratamentos e internações têm sucesso em apenas 30% dos casos. "Nos demais, o paciente torna-se um dependente crônico. Ou, pior, morre prematuramente, como André, de overdose, acidentes, suicídio ou por envolvimento com traficantes", afirma o professor.

Os melhores tratamentos para a dependência de drogas recuperam apenas 30% dos pacientes que
se internam

Mesmo com tão baixas taxas de recuperação, as famílias não poupam esforços. O tratamento de um dependente não exige da família só uma boa dose de paciência e compreensão: requer também uma polpuda conta bancária. As clínicas particulares para tratamento de dependentes cobram, em média, 180 reais a diária, o que totaliza uma despesa mensal de mais de 5.000 reais. Como as internações quase nunca duram menos de dois meses e têm de ser acompanhadas por consultas a terapeutas e psiquiatras, o custo total do tratamento soma uma pequena fortuna da qual poucas famílias podem dispor. Para a grande maioria dos pais de dependentes químicos, portanto, restam os grupos de ajuda mútua, os serviços gratuitos oferecidos por unidades psiquiátricas de algumas faculdades de medicina e os centros de saúde de hospitais públicos, sempre lotados. Os mais pobres ficam a descoberto porque, na guerra contra as drogas, o Brasil ainda luta com estilingues. A verba destinada a gastos com internações, campanhas de prevenção e repressão ao tráfico não passou de 110 milhões de reais no ano passado. No mesmo período, os Estados Unidos investiram 16 bilhões de dólares.

O Brasil gastou com internações, prevenção e repressão ao tráfico de drogas 110 milhões de reais em 1997

As trinta famílias que aceitaram falar a VEJA sobre o inferno das drogas vivido por seus filhos enfrentaram a vergonha e o preconceito porque acham necessário derrubar o muro de silêncio que cerca o assunto. "É a forma que temos de ajudar outros meninos que estão passando pelo que já passamos", justifica Márcio Mesquita Serva, reitor da Universidade de Marília. No dia 18 de janeiro de 1991, Serva foi informado pela polícia de que seu filho, Marcelo, de apenas 21 anos, morrera de ataque cardíaco em uma festa. O professor não acreditou. Fez uma detalhada apuração e descobriu que o rapaz sofrera uma overdose de cocaína, aspirada numa festinha com talagadas de uísque Logan. "É muito mais fácil para a polícia dizer que foi um infarto do que admitir que não consegue conter o tráfico e que a droga está em todos os lugares", reclama. Dias depois de enterrar o filho, ele convocou a imprensa e pediu que algo fosse feito para evitar o surgimento de "outros Marcelos". "Eu não quero mais as mentiras e os enganos", disse ele na época. Tem razão. Droga mata e é preciso enfrentá-la com toda a energia possível. E o melhor jeito de começar a batalha é olhar o problema de frente.

" Perdi meu filho,
meu filhinho, de
quem, naquela fase
horrível, eu tinha
me tornado um
grande amigo...
Foto: Egberto Nogueira

...Ele era um garotão lindo. Com 16 anos, tinha quase 2 metros de altura. Era generoso e educado. Chamava todo mundo de senhor. Não era um aluno extraordinário, mas também nunca havia perdido um ano. Quando minha mulher disse que ele andava chegando tarde, com os olhos vermelhos, achei que fosse coisa da idade. Só descobrimos o problema quando recebemos um telefonema dizendo que o Maurício fora preso. Durante uma alucinação, achou que estava sendo perseguido e arrombou o apartamento do vizinho. Era crack. Fiquei arrasado. Ele prometeu que pararia, e de fato passava alguns dias tranqüilo. Mas depois voltava. Decidimos interná-lo. Ele ficou seis meses e saiu outro. Até passou a rezar. Um dia, Maurício me ligou, pedindo que fosse buscá-lo no Viaduto do Chá. Tremi na hora. Quando cheguei, ele estava sentado na beira do viaduto, com os olhos estatelados. Tinha começado tudo de novo. 'Vacilei, pai!', ele me disse. A morte dele nos foi contada pela polícia. O Maurício estava correndo como louco pela rua. Um policial que já o conhecia conseguiu agarrá-lo e colocá-lo na viatura. Lá, ele começou a ter convulsões. Levado ao hospital, não resistiu a várias paradas cardíacas. Meu filho era fraco, desprotegido, e eu o vi travar uma luta miserável durante um ano para largar a droga. Mil vezes eu queria ter estado no lugar dele."

Égas Branco, professor de tênis, e sua mulher,
Helena,
pais de Maurício Teixeira Branco, morto
de overdose aos 16 anos, em São Paulo


"Meu filho foi
enterrado como
indigente. Só
encontrei o corpo
quatro meses depois...
Foto: Paulo Jares

...no cemitério de Santa Cruz. Uma pessoa telefonou e disse que tinha um Marcelo Bhering lá. O corpo tinha uma bala no crânio. Na minha investigação, soube que, junto com uma menina, ele tinha ido de táxi buscar cocaína na Ladeira dos Tabajaras. No último réveillon que passou vivo, eu estava na casa da minha filha. Ele me ligou à meia-noite e ficou falando que não prestava. Telefonou doze vezes. Ele tinha cheirado e estava muito triste. Falava dos filhos e da mulher. Estava muito consciente do que poderia ter feito e não fez, e muito infeliz com a condição de drogado. Dizia que não desejava aquilo para ninguém. O brilho dele sempre foi voltado para o lado esportivo. Dava aula de jiu-jítsu desde os 16 anos e tinha um bom corpo. Quando eu e meu marido nos separamos, acho que isso mexeu muito com a cabeça dele. Tinha 20 anos e não conseguiu superar o desmantelamento da família. O pai sempre foi um mito para ele, e de repente desmanchou tudo. Marcelo não se conformava, chorava muito. Logo depois ele foi morar na Austrália para competir e acho que começou a droga pesada. Em 1994, acabamos internando-o numa clínica, mas ele detestava e saiu. Começou a dar aula de novo, proibia os alunos de usar drogas, mas sentia-se completamente impotente para lidar com a própria dependência. Quando ele morreu, eu e meus outros filhos conversamos e chegamos à conclusão de que ele não estava feliz aqui."

Helena Bhering, mãe de Marcelo Bhering,
assassinado aos 30 anos no Rio de Janeiro


"Várias vezes encontrei
o meu filho conversando
com o espelho, pedindo
a ajuda de Deus...
Foto: Fernando Vivas

...Ele queria sair do martírio das drogas, mas não conseguia. No dia 24 de julho, após várias tentativas perdidas de livrar-se da dependência, o Duda achou em nosso sítio um revólver calibre 38, mantido por medo de assalto. Ele deu um tiro na cabeça. Ainda ficou cinco dias na UTI. Eu olhava para o meu filho no hospital e não queria acreditar que ele fosse morrer. Ele começou aos 16 anos, fumando maconha, depois descobriu o chá de cogumelo. Os potes com a bebida ficavam na geladeira, junto com as jarras de suco da família. Ele me dizia que era suco, e como sempre acreditei nos meus filhos, não me preocupei. Uma namorada do meu filho mais velho desconfiou e, pressionado, Duda acabou abrindo o jogo. Procurei psiquiatras, psicólogos, centros espíritas e até a umbanda, mas nada adiantou. Comecei a compreender que estava perdendo o meu filho. Me convenci que era necessário interná-lo em uma clínica para tratamento de dependentes químicos em São Paulo, porque na Bahia não havia locais apropriados, mas ele se recusou a ir se eu não pudesse ficar com ele. Eu não podia ficar muito tempo longe dos meus outros filhos e do meu trabalho e decidimos buscar ajuda por aqui mesmo. Se na época houvesse lugares parecidos por aqui, meu filho talvez tivesse tido uma chance. Agora freqüento um centro espírita e recebi duas mensagens psicografadas dele. Duda reconheceu que ele próprio fez o seu caminho."

Almaísa Motta, mãe de José Eduardo Motta, o
"Duda", que suicidou-se aos 24 anos em Salvador


"Tenho 51 anos e
nos últimos cinco
envelheci mais de vinte...
Foto: Egberto Nogueira

...tentando fazer do meu filho uma pessoa decente, viva, feliz. Não consegui vencer. O André morreu em um acidente de moto no dia 3 de outubro de 1997, aos 20 anos. Oficialmente, foi vítima do acidente, mas ele morreu por causa das drogas. Descobri o problema quando ele tinha 16 anos e passou um cheque falsificando minha assinatura. Ele revelou que tinha começado com a maconha. Depois veio a cocaína. Tenho duas filhas, e nos tornamos três mães para ele. Em quatro vezes o internamos. Ele cumpria toda a programação, parecia ir bem, dava uma grande esperança de se livrar da dependência. Mas a cada recaída ficava pior. Um dia, ele foi me visitar no trabalho. Tinha saído há pouco tempo de uma clínica. Teve um momento em que ele se sentou, olhou para mim e deu um sorriso estranho. Era o efeito da droga. Eu disse: 'Filho, você está com a mão na maçaneta da porta do inferno'. Era mais uma recaída. Cada internação era uma esperança, mas o custo era muito alto. Eu vivia com a conta no vermelho, fazia chocolate para fora, costurava, trabalhava em dois empregos, mas sempre deixei claro para ele que, enquanto tivesse esperança, eu estaria junto, lutando com ele. Um milagre podia acontecer. Fiz tudo o que foi possível para salvar o meu filho, enfrentei situações terríveis. Agora que ele morreu, sinto um alívio e um vazio enorme. Quando me aposentar, quero construir um lugar para recuperar meninas drogadas."

Tereza de Jesus Ferreira Maciel, mãe de André
Maciel Paulino, morto aos 20 anos,
num acidente de moto em São Paulo


"Ana Catharina,
minha irmã mais
nova, se suicidou
em setembro de 1992,
aos 15 anos...
Foto: Pio Figueiroa

...Seu primeiro contato com drogas foi no começo de 1991. Logo depois de acabar um namoro, ela procurou alívio através de tragadas num cigarro de maconha, presente de um conhecido de Olinda. Só descobrimos seu envolvimento por acaso. Ela estava faltando às aulas na escola, sempre tinha os olhos vermelhos e o andar cambaleante. Quando a pressionei, ela revelou tudo, inclusive o uso esporádico de cocaína. Deu um tempo na droga, mas duas semanas depois chegou em casa do mesmo jeito. Eu e meu irmão decidimos contar ao meu pai, que exigiu dela uma lista dos seus colegas usuários e dos fornecedores. Catharina não queria, mas acabou entregando todos. Chegou a sugerir que gostaria de morar com meu pai em nosso sítio no interior, e tudo parecia resolvido. Fomos embora e Catharina ficou sozinha, com a chave da gaveta onde meu pai guardava um revólver. Meia hora depois escreveu uma carta e ligou para casa se despedindo da empregada, que chegou a ouvir o disparo. Deu um tiro na cabeça. Na carta, acusou meu irmão e a mim por sua morte e pediu apenas para que cuidássemos de seus cachorros, que adorava. Foi um trauma muito grande que demorou a ser superado. Logo depois meus pais se separaram, fui morar sozinha e só agora minha mãe consegue falar dela sem chorar. Quando acontece uma tragédia dessas, ou a família se une ou se afasta. Com a minha aconteceu a segunda hipótese."

Ana Claúdia Nogueira, irmã da estudante
pernambucana Ana Catharina


"A perda de um filho
é uma dor que não
acaba nunca, que fica
com a gente as
24 horas do dia...
Foto: Flavio Canalonga

...Na noite da morte do Marcelo, eu estava em São Paulo, e quando cheguei a Marília, a polícia me informou que a causa mortis tinha sido um ataque cardíaco. Comecei a desconfiar que as coisas não estavam muito claras. Falei com amigos dele e com os empregados da casa e consegui descobrir o que realmente aconteceu na minha casa na noite do dia 18 de janeiro de 1991. Um grupo de amigos do Marcelo, todos de famílias influentes da cidade, consumiu duas garrafas de uísque Logan e cocaína. Na verdade, o meu filho morreu de overdose. É muito comum, nos casos de morte provocada por drogas, os familiares dizerem que a vítima estava consumindo pela primeira vez. Isso é realmente muito bom para quem quer se enganar e não enfrentar a realidade, mas não era o meu caso. É muito mais fácil para a polícia dizer que foi um infarto do que admitir que a droga está presente em todos os lugares na região onde vivo. Imediatamente convoquei a imprensa e divulguei o que tinha acontecido, na tentativa de alertar a sociedade e lutar para que não surjam outros Marcelos. Logo depois a polícia reabriu quatro casos idênticos que tinham sido arquivados. As investigações, como sempre, não deram em nada. Ninguém quer falar das drogas e vamos nos enganando até que, infelizmente, acontece com a nossa família.

Márcio Mesquita Serva, reitor da Universidade
de Marília, pai de Marcelo Mesquita Serva,
morto aos 25 anos de overdose


Os primeiros sinais...

A iniciação nas drogas vem acompanhada, em geral, por mudanças físicas e de comportamento. Sintomas isolados podem significar apenas problemas passageiros de saúde. Dois ou mais sinais servem de alerta:

Olhos vermelhos — o THC, substância encontrada na folha da maconha, dilata os vasos sanguíneos oculares, provocando vermelhidão.

Sangramento nasal — o uso de cocaína estimula a produção de substâncias como dopamina e noradrenalina no cérebro, que aumentam a pressão arterial, ocasionando o rompimento de pequenos veias e artérias.

Perda de peso e apetite — a cocaína provoca aumento na liberação de serotonina, neurotransmissor que inibe o apetite.

Síndrome persecutória — a cocaína causa um curto-circuito no sistema límbico (que comanda as emoções) e no córtex (responsável pelas funções psíquicas), o que pode ocasionar delírios no usuário.

Mudança de amigos — é comum a troca de antigas amizades por outras que facilitem o acesso rápido e constante à droga.

Uso de gírias novas — branquinha, baque, larica, farinha são expressões comuns no círculo dos viciados. Seu uso pode indicar, no mínimo, relacionamento com pessoas ligadas a drogas.


...e o caminho da cura

O caminho da cura exige o reconhecimento, pelo dependente, de que precisa de ajuda. O envolvimento da família e a ajuda profissional são as principais armas à disposição. Algumas vezes, funciona.

Grupos de auto-ajuda — encontro de usuários para troca de experiências e discussão. O objetivo é aumentar a auto-estima com o apoio de pessoas na mesma situação.

Tratamento ambulatorial — consultas regulares a psiquiatras ou terapeutas, acompanhadas por atividades individuais ou em grupo, para restabelecer motivações e estimular a volta à vida normal.

Internação domiciliar — alternativa mais barata e menos radical do que a internação em clínica. Só é possível quando alguém da família pode monitorar o paciente em tempo integral. O dependente tem de se comprometer a aceitar regras como só sair de casa acompanhado e participar de grupos de auto-ajuda ou fazer tratamento ambulatorial.

Internação em clínica — recomendada quando tentativas anteriores de tratamento não deram certo, ou quando o dependente apresenta deterioração física, sintomas psicóticos e pulsões suicidas.

Com reportagem de Alexandre Oltramari,
de Porto Alegre, José Edward, de Belo Horizonte,
Rodrigo Cardoso, de São Paulo, Roberta Paixão,
do Rio de Janeiro, e Juliana De Mari, do Recife




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