Cada vez mais jovens
Em dez anos, o consumo de maconha cresceu
quatro vezes entre os adolescentes de 16 a 18 anos.
E a tolerância aumentou. Polícia, Justiça e
escola têm punido menos o usuário
Monica Gailewitch
Selmy Yassuda
A atriz Maria Mariana começou a fumar aos 14 anos. Logo na primeira experiência seu pai, Domingos de Oliveira, percebeu que ela havia fumado: ele não achou nenhuma tragédia e deu o aval para que ela usasse a droga em casa
A maconha é a droga ilícita mais tolerada pelos brasileiros. Embora o consumo tenha aumentado regularmente nos últimos anos, a polícia prende menos usuários, a Justiça condena pouco e a escola aceita mais. Dados da Secretaria de Segurança Estadual do Rio de Janeiro mostram que o número de pessoas flagradas com maconha vem diminuindo consideravelmente. Em apenas um ano, houve uma redução de 60%. No Estado de São Paulo, foi de 30%. Em Porto Alegre, os casos caíram pela metade. A situação é semelhante em outras capitais brasileiras. A análise dos últimos censos penitenciários não deixa margem a dúvidas: o volume de condenações por uso de drogas caiu mais de 20% nos últimos anos. Entre as maiores escolas particulares do país, o número de expulsões relacionadas com o uso de maconha também baixou. Hoje, em apenas um de cada dez casos, o estudante é convidado a se desligar do estabelecimento. Geralmente, quando fuma dentro das dependências do colégio.
De acordo com um cálculo aproximado, quase 700 toneladas de maconha são consumidas todos os anos no país. É quantidade suficiente para a confecção de 700 milhões de cigarros e para deixar satisfeitos algo como 5 milhões de usuários – um sétimo do número de fumantes de tabaco. No ranking do consumo das drogas, ela vem quilômetros à frente de crack, cocaína, heroína ou ecstasy (veja quadro). Um levantamento de uso de drogas entre estudantes em dez capitas brasileiras, realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), revelou que o consumo freqüente da maconha quadruplicou em apenas dez anos. O dado mais impressionante, no entanto, é outro. Conforme uma tendência também observada em outros países, esse aumento é maior entre adolescentes e jovens na faixa que vai dos 16 aos 18 anos. Nessa comunidade muito jovem, 13% das pessoas fazem uso da maconha no Brasil. Outro fato surpreendente: algumas estimativas extra-oficiais informam que até 50% dos jovens brasileiros experimentaram a Cannabis sativa, nome científico da erva, pelo menos uma vez na vida. Isso significa que se chegou perto de uma situação em que a dúvida não é mais saber se uma pessoa vai experimentar um cigarro de maconha. Agora, a pergunta mais realista é quando ela fará isso.
O problema desse avanço da maconha é a banalização do vício. A tolerância com o álcool e o cigarro produziu o fenômeno do "cigarrinho" e da "cervejinha". Hoje, já há quem use a expressão "baseadinho" para tratar de uma droga que, como o cigarro e o álcool, tem efeitos colaterais ruinosos. Segundo os especialistas, a maconha produziria uma perda da capacidade cognitiva. Ao fumar um baseado duas a três vezes por semana, o consumo médio de um usuário, a pessoa passa a apresentar alguma dificuldade para reter conhecimentos. Muitos usuários relatam uma perda da capacidade de memorização e também de aprendizado. Mesmo depois da interrupção do uso, o efeito pode persistir. A segunda característica é a perda da motivação. As pessoas, em geral, desistem de projetos a longo prazo e alegam cansaço para tarefas simples. "Quando você fuma, não segue uma seqüência lógica. A atenção fica flutuante. Depois de um tempo, essa postura acaba prevalecendo", diz F.P., estudante paulista de 23 anos e usuário.
Tanto no Brasil quanto em outros países, a maconha conquistou uma legião de usuários na década de 70, durante a fase "paz e amor", que se esticou por anos, sob a influência do movimento hippie dos Estados Unidos. A juventude que usava cabelos enormes, roupas desalinhadas e muito coloridas, numa manifestação de repúdio à cultura bem-comportada das gerações anteriores, também tomou a maconha como um de seus apetrechos na aventura de, como pensava, criar um mundo melhor. O sonho um dia acabou, como se sabe, e a religião do protesto pelas atitudes só sobreviveu em núcleos minúsculos e inexpressivos. Assim, é de perguntar o que faz a maconha conquistar velozmente uma geração de garotos e garotas tão novos nos dias de hoje. Existem várias razões apontadas pelos usuários, jovens ou não, para fumar maconha. Em primeiro lugar, obviamente, os consumidores usam a erva porque sentem que ela lhes proporciona sensações compensadoras. O publicitário paulista R.L., 25 anos, diz que ao fumar maconha sente que "trocou um chip". De repente, passa a ficar despreocupado, sente-se mais divertido e vê as coisas de outra maneira, conta ele. R.L. adora fumar maconha e andar de patins. Em sua opinião, o vento bate em seu corpo de outra maneira, e ele passa a respirar de forma mais satisfatória. Tudo fica mais colorido. "Vou continuar usando enquanto me fizer bem", afirma o publicitário, que fuma três baseados por semana. A mesma sedução a erva exerce sobre o médico D.J., 45 anos, morador de Brasília. Todas as semanas, ele fuma pelo menos uma vez, geralmente com os amigos. O médico diz que passa a reparar em coisas que não perceberia se estivesse sóbrio. Gosta de tocar músicas e fala que seu desempenho ao violão melhora muito quando fuma a erva. "Pareço sentir a música. Para mim, funciona como um drinque depois do expediente", conta o médico.
Orlando Brito
Gabeira: "Os consumidores de maconha de hoje não se enquadram em nenhum estereótipo. Não dá para desconfiar"
A maconha tem ainda sobre as concorrentes a vantagem de já ser considerada uma droga relativamente leve, diante da devastação física e psicológica provocada pelas mais pesadas. Por fim, ela é mais barata. Por 1 real, consegue-se um cigarro. A erva consumida no Brasil vem de dois lugares, do Nordeste e do Paraguai, transportada para os grandes centros em caminhões ou pequenos aviões. Ao chegar às cidades grandes, é dividida em blocos de 10 quilos para traficantes médios, que repartem esses sacos em volumes de 1 quilo cada um para vender aos pequenos traficantes. O preço da maconha vai crescendo conforme o ponto da rota em que se está. O quilo fica entre 30 e 60 reais no sertão de Pernambuco, onde é produzida. Em Ponta Porã (MS), na rota que vem do Paraguai, custa entre 50 e 100 reais. Em Santa Catarina, já se pagam 250 reais por 1 quilo, que bate nos 500 em São Paulo e em 1.000 reais no Rio. Apesar da diferença de rotas entre maconha e cocaína, a rede de traficantes é a mesma. A Polícia Federal diz que o tráfico da erva foi uma etapa anterior à da distribuição da cocaína. Quando passaram a ter contato com os cartéis colombianos de pó, os traficantes já tinham a experiência de distribuir a maconha pelo país e precisaram só fazer a adaptação do sistema à mercadoria mais lucrativa que vinha dos cartéis.
Encontrar a droga está longe de ser um problema para alguém que decida usar maconha. Numa pesquisa recente feita pela Unifesp, cerca de 70% dos usuários consideraram muito fácil achar quem lhes venda. Em geral, o usuário obtém a maconha com um amigo próximo. Alguma pessoa ligada a um pequeno traficante consegue uma quantidade maior e repassa aos outros do grupo. Aquela história de que é preciso subir morro para conseguir um baseado é apenas parte da verdade. A universitária carioca T.L., 20 anos, diz que para comprar a droga só precisa apertar o botão do elevador e sair da portaria de seu prédio. Uma vez por semana, o fornecedor da vizinhança, um jovem de 21 anos que luta jiu-jítsu, passa regularmente com a mercadoria. O encontro é às 18 horas de sexta-feira. Ele pára em frente do prédio dela num bairro de classe média do Rio e faz o sinal: um assovio. A jovem desce do prédio e pega o pacotinho. A trouxinha, com capacidade para dois baseados, custa 2 reais. Muitas vezes, há mais de uma pessoa para comprar a droga e uma delas toma a iniciativa de acender um cigarro ali mesmo na rua. Quando isso acontece, geralmente se passa o cigarro também às pessoas em volta para um "tapinha". Ao contrário da cocaína, a maconha é uma droga mais democrática no sentido distributivo.
Cadu Pilotto
A atriz Claúdia Ohana já experimentou, mas não quer que sua filha Dandara use a droga
A mudança em relação à década de 70 é espantosa. Naquele tempo, havia um preconceito explícito contra quem fazia uso de maconha. O deputado federal Fernando Gabeira, do Rio, lembra que existiam apenas dois caminhos para o jovem rebelde: a luta armada ou o fumo. Gabeira, que percorreu os dois, diz que fumar era uma maneira de protestar contra o sistema e aderir aos ideais pacifistas daqueles conturbados anos. Entre os universitários e intelectuais de esquerda, consumir a erva tinha um significado difuso que poderia traduzir-se em oposição a várias coisas praticadas pelas outras pessoas. Significava, por exemplo, opor-se às guerras, como a do Vietnã, à destruição da natureza e, no caso do Brasil, à ditadura militar que governava o país. Diferentemente de Gabeira, a maioria dos brasileiros jovens e rebeldes aderiu apenas à droga. No início, o grupo de maconheiros era pequeno e facilmente identificável. Além dos cabelos compridos, da calça boca-de-sino, das batas e outros adornos no estilo indiano, muitos deles adoravam pendurar uma foto "rebelde" na parede do quarto, como a do líder guerrilheiro Che Guevara ou do cantor jamaicano Bob Marley. Na Jamaica, maconha é uma religião.
"Era uma curtição", lembra o arquiteto mineiro A.N., 57 anos. Ele usou a droga pela primeira vez em uma viagem à Bahia. Estava com os amigos e doido para saber o que era aquilo de que as pessoas tanto falavam. Da curiosidade, passou ao vício. Fumou todos os dias durante cinco anos. Hoje, "aperta um" raramente. Clientes e colegas nem sequer desconfiam que A.N., um senhor seriíssimo, seja um maconheiro com mais de trinta anos de estrada. Para essa geração, a maconha passou a ser cultuada como uma droga que permitia a reflexão e a divagação, observa o deputado Gabeira. O passo seguinte foi a adesão de outras turmas, como surfistas e universitários. Não há uma figura que sintetize o maconheiro de hoje em dia. Existem cabeludos, carecas, atletas, sedentários, descolados, pobres, ricos, jovens e velhos fumando maconha. E a droga é consumida livremente em lugares como praias, universidades e shows de rock. "Os consumidores de hoje não se enquadram em nenhum estereótipo. São pessoas das quais ninguém desconfiaria", diz Gabeira, que lança um livro sobre o tema no próximo mês.
A maconha resistiu ao avanço de várias outras drogas. Na década de 80, a cocaína se tornou uma coqueluche. Em certos meios, como o mercado financeiro, com seu ritmo alucinante, o pó prosperou muito nesse período. Mais tarde, veio o crack, um tipo de pasta de cocaína para as camadas mais pobres da população e, recentemente, o ecstasy, droga bastante utilizada pelos que gostam de passar a noite inteira sacolejando em danceterias. Comparados aos efeitos dessas drogas, os da maconha são muito mais brandos. Ninguém, por exemplo, vai morrer de overdose de maconha. Seu poder viciante também não é tão alto. De cada dez pessoas que experimentam a erva, só uma desenvolverá dependência. Em usuários de cocaína, esse número é cinco vezes maior. Os males mais freqüentes da Cannabis são comparáveis aos do cigarro e do álcool. Com a vantagem de não deixar a pessoa mais agressiva ou propensa a algum tipo de ato violento, como no caso do álcool. O cantor Lobão, 42 anos, que fez a transição da maconha para a cocaína, vê uma diferença fundamental entre a erva e o pó. "A maconha é um poderoso relaxante mental e muscular. Você fica mais introspectivo. A cocaína é como uma bateria extra. A pessoa ganha uma energia que não tinha. Passa a pensar rápido e se acha brilhante", diz.
A revista High Times, especializada em todos os assuntos ligados à maconha: a droga vem ganhando espaço. Na Holanda e em Portugal, maconha não dá cadeia
Muitos dos que se viciam em maconha passam depois para drogas mais pesadas, como foi o caso de Lobão. Os especialistas afirmam que essa passagem é bastante comum. A erva seria, segundo eles, uma porta de entrada para outras drogas. Isso não significa que toda pessoa que fuma maconha vai passar a cheirar cocaína no mês seguinte e a fumar crack até o final do ano. No entanto, mais de 90% dos usuários dessas drogas fizeram primeiro um estágio na maconha. Estatísticas do Departamento de Saúde e Serviços Humanos do governo americano mostram que um em cada quatro consumidores de maconha já experimentou cocaína. O motivo é simples. As mesmas razões que induzem ao baseado podem arrastar a pessoa para o pó. Entre os vários motivos que levam o jovem a fumar maconha, há alguns mais freqüentes: desequilíbrio familiar, necessidade de auto-afirmação perante um grupo de amigos e também a curiosidade. Como essas situações são mais comumente encontradas entre adolescentes e jovens, é explicável por que razão a faixa com maior número de consumidores é a que vai dos 16 aos 18 anos de idade. "Antes, o encontro com a droga acontecia na faculdade. Hoje, a primeira experiência se dá no colégio", diz o psiquiatra Ronaldo Larangeira, professor do departamento de psiquiatria da Unifesp. Todos os adultos sabem o que é a busca de auto-afirmação das pessoas mais novas. Para elas, a necessidade de se sentirem aceitas por seu grupo social é muito maior. Aos olhos inexperientes de alguns jovens, o fumante de maconha revela certa autoconfiança, determinado tipo de coragem, porque faz algo que é proibido. Essa combinação pode tornar-se incontornável para pessoas mais frágeis. Um caso típico é o da estudante paulista Kamila Romero, 19 anos. Kamila sempre via os amigos do bairro usando a droga. O desejo de fazer parte da turma levou a menina a experimentar a erva. Passou a fumar todos os finais de semana e em pouco tempo havia trocado as velhas amizades por novos amigos. Hoje freqüenta uma clínica para dependentes de maconha. Comentário de sua mãe, Lourdes Romero, 47 anos: "Acho que acabei me tornando uma mãe ausente por causa do trabalho. Mas estou apostando tudo no tratamento. Já sinto minha filha mais próxima de mim".
João Passos
O cantor Lobão, hoje afastado das drogas, fez a transição da maconha para a cocaína: "Toda droga é um risco"
Entre os pais, os mais tolerantes são justamente aqueles que já fumaram. A atriz Maria Mariana tinha o aval do pai, o dramaturgo Domingos de Oliveira, para consumir maconha. Ela experimentou a erva aos 14 anos num condomínio onde morava. Assim que terminou de fumar, foi para casa. O pai, Oliveira, abriu a porta e, ao reparar que a menina estava com os olhos vermelhos, perguntou se ela tinha fumado. Sim, tinha. Para o dramaturgo, não foi nenhuma tragédia. Na sua visão, experimentar maconha era uma espécie de rito de passagem. Ele próprio chegou a provar a droga, mas não gostava de fazer uso dela porque se sentia um pouco abobado quando fumava. Com a concordância dos pais, Mariana fumou muito durante três anos dentro de casa mesmo. Hoje, não tem boas lembranças desse período e reprova o consumo da droga. A atriz diz que a maconha deixa as pessoas sem iniciativa e que ficava deprimida com o uso. A atriz Cláudia Ohana fuma apenas em festas e em ocasiões especiais. Ela não gostaria que sua filha Dandara, 16 anos, fumasse maconha. Mas as duas já conversaram sobre o tema e Cláudia disse à filha que, se for experimentar, faça tudo dentro de casa.
Entre as razões que facilitam a adesão à droga, cita-se com freqüência o ambiente familiar desajustado. Um estudo sobre a relação entre pais e filhos e o uso de maconha, conduzido pelo Hospital Mount Sinai, nos Estados Unidos, que teve início em 1979 e ainda está em andamento, mostrou que crianças agressivas, que têm um relacionamento distante com os pais, estão mais predispostas a usar maconha na adolescência. Os especialistas também citam como fator capaz de favorecer a inclinação pela droga o autoritarismo excessivo de alguns pais ou seu inverso, a incapacidade de impor autoridade aos filhos. O fato é que, se alguém fuma maconha, isso não significa que jamais deixará de fazê-lo. Ao contrário. Segundo levantamentos, uma em cada quatro pessoas que experimentam a droga o faz por duas ou três oportunidades e pára. Até os antigos viciados muitas vezes se livram da escravização à droga. "O trabalho de recuperação tem até 40% de chance de sucesso", diz Elisaldo Carlini, especialista no tema e professor da Universidade Federal de São Paulo.
Ricardo Benichio
Ambulatório da maconha, ligado à Unifesp: o trabalho de recuperação com os viciados tem 40% de chance de funcionar sem nenhum problema
No Brasil, consumir drogas é crime. Os infratores estão sujeitos a uma pena que varia entre seis meses e dois anos e que está prevista no artigo 16 do Código Penal. Como esse artigo vem sendo cada vez menos aplicado, VEJA ouviu vinte delegados das polícias Militar, Civil e Federal para saber quais os motivos que as estão levando a abrandar o tratamento aos usuários. As respostas foram parecidas. A droga continua sendo uma prioridade para a polícia. Tanto que as apreensões de maconha cresceram oito vezes de 1993 para cá. O que mudou foi o foco. O policial não tem mais interesse em prender fumantes de maconha por três razões básicas. A primeira é que é outro o conceito que a polícia tem do usuário. Hoje, ele é visto como uma pessoa que precisa de ajuda e não como um criminoso. "A polícia é um reflexo da sociedade. Se a maconha é tolerada largamente, o policial fica influenciado por isso", diz o ex-coronel da Polícia Militar José Vicente da Silva Filho, atualmente especialista em segurança pública do Instituto Fernand Braudel, um centro de pesquisa de São Paulo.
Nas instituições policiais, a explicação para a tolerância com o usuário de maconha está num termo jurídico: adequação social. De acordo com juristas ouvidos por VEJA, a Justiça condena aquilo que é reprovado pela sociedade. Quando uma contravenção passa a ser tolerada pelas pessoas, as sentenças sofrem imediatamente esse reflexo. É o mesmo princípio que leva à complacência com os apontadores do jogo do bicho, por exemplo. Os juízes passam a não condenar o usuário de maconha porque o consumo dessa droga específica não é mais tão recriminado pelas pessoas. No máximo, punem com penas alternativas como trabalhos comunitários e multas. No caso de menor de 18 anos, o tratamento também mudou. Hoje, ele é conduzido às varas da infância e juventude. Lá, é avaliado por uma assistente social e por um médico enquanto espera o julgamento, que em geral ocorre no mesmo dia. As detenções são raras. Os pais são convidados a participar de palestras de orientação sobre drogas e os adolescentes encaminhados para fazer um curso antidrogas e, se for o caso, um tratamento médico. É uma mudança significativa para quem sempre tratou essa questão a bordoadas. "Temos observado que orientar ajuda mais do que repreender de forma enérgica", diz Aglausio Novais Filho, delegado titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, no Rio de Janeiro.
Ricardo Benichio
Kamila, 19 anos, experimentou a droga para fazer parte da turma do bairro. A mãe, Lourdes, não desconfiou
A visão da maconha dentro das escolas também mudou. VEJA ouviu vinte pessoas na área da educação. Foram diretores de instituições particulares, associações de pais e mestres e sindicatos de professores. Todos os entrevistados confirmaram que o tema é tratado com muito mais flexibilidade hoje em dia. Alguns disseram que a maconha é um problema cotidiano nas escolas e, se todos os alunos fossem expulsos, as salas ficariam reduzidas quase à metade. A solução de uma parte dos estabelecimentos foi criar programas de prevenção, em que o assunto é discutido, e introduzir o tema em diversas disciplinas do currículo escolar. Uma pesquisa realizada recentemente pelo Colégio São Vicente de Paulo, onde estudam filhos da elite carioca, revelou que 40% de seus alunos já usaram a maconha, 18% são consumidores esporádicos e 6% são dependentes. O resultado levou a instituição a criar um projeto em que profissionais especializados e coordenadores promovem palestras, dinâmicas de grupo, debates e filmes sobre drogas. O Colégio Objetivo, em São Paulo, também afrouxou o tratamento: não expulsa os alunos que fumam maconha desde 1998. "Houve um aumento considerável no número de casos e nós preferimos adotar uma política de prevenção e orientação", diz Alfredo Antonio Fernandes, coordenador-geral do Colégio Objetivo Júnior. Uma prova de que a maconha atingiu um patamar que nunca havia alcançado: a aceitação.
O que acontece depois
Depois da primeira tragada, a maconha não demora para fazer efeito. A ação da droga chega ao seu pico máximo em apenas vinte minutos. Quem fuma a erva sente um relaxamento geral, aumento da percepção dos sentidos, uma leve euforia e sensação de bem-estar. A noção de tempo e espaço fica distorcida. Os batimentos cardíacos se aceleram e a pressão sanguínea sobe. O fumante apresenta as pupilas dilatadas, certa secura na boca e tem o apetite aumentado. Em alguns casos, o usuário manifesta leve rinite e faringite. Depois de uma hora, o efeito mais forte começa a passar. A partir daí, vai diminuindo gradativamente, mas pode demorar de cinco a doze horas para passar completamente.
A maconha, cujo nome científico é Cannabis sativa, compõe-se de mais de sessenta substâncias. Mas a ação da droga no organismo é resultante de apenas uma delas: o delta-9-tetrahidrocanabinol, conhecido como THC. Ela é a substância ativa que proporciona os efeitos mentais desejados por quem consome a droga. Na década de 60, a maconha apresentava de 0,5% a 1% de THC. O que significa que a geração hippie fumava cigarros de maconha bem mais fracos que os atuais. Hoje em dia, a concentração dessa substância na droga é de 5%. O THC age no cérebro por meio de receptores específicos e outros sistemas de neurotransmissores. Normalmente, uma pequena quantidade da substância, algumas tragadas por exemplo, é suficiente para desencadear o estado de bem-estar e euforia no usuário.
A maconha tem sido o foco de um debate científico acirrado. Nos últimos anos, os pesquisadores vêm procurando dimensionar os malefícios da droga com afinco. Entre algumas dúvidas, já se sabe, por exemplo, que seu uso crônico traz conseqüências danosas à atividade cerebral e provoca câncer. Também descobriram que o THC modifica a forma como as informações sensoriais são processadas pelo hipocampo, uma parte fundamental do cérebro. Um estudo com alunos de 15 a 17 anos, realizado pelo Nida, o instituto americano de abuso de drogas, mostrou que as habilidades em que se exigem atenção, raciocínio e memória ficam prejudicadas entre os usuários pesados de maconha. Os pesquisadores compararam 65 deles, que fumaram maconha diariamente durante trinta dias, e 64 usuários leves, que usaram a droga moderadamente no mesmo período. Depois de 24 horas de abstinência de maconha, foram aplicados vários testes medindo aspectos como atenção, memória e aprendizado. Os usuários pesados cometeram muito mais erros do que os que fumavam pouco.
A maconha no mundo
A maconha é a droga ilícita mais consumida no mundo. A Organização Mundial de Saúde estima que existam mais de 140 milhões de usuários espalhados pelo planeta. Os Estados Unidos são o país que mais consome. Ela é utilizada com regularidade por 9% de sua população, um contingente de 25 milhões de pessoas. Quase 36% dos americanos já experimentaram a droga pelo menos uma vez na vida. Na Europa, ela é consumida, em média, por 5% da população.
Assim como no Brasil, alguns países europeus têm uma tolerância razoável com as pessoas que fazem uso da droga. Na Alemanha, na Itália e na Espanha, o conceito de que o usuário é um caso de saúde pública e não de polícia vem aumentando. Nesses países, o consumo da maconha continua sendo um ilícito penal, mas a tolerância social a esse hábito tem crescido. Entre os europeus, dois países foram mais longe no caminho da liberalização. Em Portugal, acaba de ser aprovada uma lei que descrimina o uso de drogas. Os consumidores pegos em flagrante não serão mais presos. Agora, quando alguém for apanhado fumando um baseado, será encaminhado para tratamento médico. No máximo, será obrigado a pagar multa, que pode variar de 40 a 250 reais.
O outro país que descriminou a droga é a Holanda. Lá, os usuários podem carregar até 5 gramas de maconha sem ser perturbados pelas autoridades. Há centenas de bares que dispõem de cardápios com inúmeras variações da erva. Elas são consumidas sem a menor cerimônia pelos fregueses. Basta entrar no bar, escolher a procedência da maconha preferida e pedir ao garçom. Tem do Paquistão, da Colômbia, do Marrocos e de outros. No cardápio, igualzinho aos de um restaurante comum, existem avisos sobre qual é a droga mais forte. Para os adeptos, é uma festa.
"Guardava até as pontas"
Divulgação/Paulo de Tarso
O apresentador de TV Thunderbird: "Houve períodos em que eu comprava meio quilo de baseado para fumar"
O apresentador de TV e músico Luiz Fernando Duarte, 38 anos, o Thunderbird, foi consumidor de maconha e de outras drogas. Hoje, está limpo. Sua experiência com a erva:
Veja – Quando você conheceu a maconha?
Thunderbird – Na faculdade, aos 18 anos. Soube que um amigo estava fumando maconha e fui alertá-lo sobre os perigos da droga. Minha educação pregava que as drogas eram um monstro. Acho que isso até favoreceu meu consumo. Quando descobri que a maconha não era um monstro, mas uma coisa simples, corriqueira, percebi que os caretas estavam errados. Os loucos estavam certos. Na primeira vez, imaginei que fosse ver ETs. Só fiquei chapado. Fumei de novo no dia seguinte. Dessa vez foi uma "bomba" enorme e aí sim parecia que tinha sido abduzido por extraterrestres.
Veja – Você comprava?
Thunderbird – Comecei a usar todos os dias e vi que estava na hora de comprar. Era emocionante enfrentar todo aquele perigo de conseguir a droga. Eu me arriscava nas favelas. Naquela época, no começo dos anos 80, tudo era mais difícil. Muito mais do que é hoje. Eu me lembro de que tudo isso me encantava. Mais ainda: a turma da maconha me recebeu muito bem.
Veja – Quantos baseados você fumava por dia?
Thunderbird – Houve períodos em que eu comprava meio quilo de baseado para fumar. Só para mim. Montei uma banda que se chamava Cannabis Sativa. A gente não tocava nada. Só fumava maconha. E aí vieram os primeiros pesadelos. A maconha é muito desmotivante. Dá uma preguiça....
Veja – E os estudos?
Thunderbird – Acordava às 6 da manhã para ir à faculdade de odontologia e tinha de estudar à tarde. Fumava todos e não conseguia acordar. Começou a ficar muito difícil estudar.
Veja – Quando você descobriu que não ficava sem a maconha?
Thunderbird – Quando acabava eu sempre queria mais. Existem períodos de estiagem em que some a maconha do Brasil. Aí batia o desespero. Guardava até as pontas no cinzeiro para não ficar sem.
Veja – Você mudou seu comportamento com as pessoas?
Thunderbird – Completamente. Meu convívio com a família ficou muito difícil. Todos para mim eram caretas. Minha rebeldia nessa época foi fermentando com a maconha e cresceu muito. Em 1980, fumar maconha era um ato de rebeldia. Hoje é corriqueiro.
Veja – Até quando durou seu namoro com a maconha?
Thunderbird – Isso durou até o final da faculdade. Em 1982 briguei com a maconha. Eu fumava e ficava paranóico. Achava que estava todo mundo atrás de mim. Mas não conseguia largar. Aos 21 anos, quando me formei em odontologia, conheci a cocaína.
Com reportagem de Angela Nunes, Anna Paula Buchalla,
Maurício Oliveira, Tatiana Chiari, Ronaldo França e Silvia Rogar
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