Asfalto e morro sempre foram territórios opostos no Rio de Janeiro. No asfalto, moram cidadãos com melhor poder econômico do que os que vivem nas favelas, morros acima, em condições precárias e cercados pelo crime organizado. A Polícia do Rio conseguiu, entretanto, unir esses dois lados numa mesma tragédia: ambos são vítimas de ações policiais que resultam em mortes de inocentes. É uma situação indefensável que vem se repetindo há muito tempo, mas que ganhou visibilidade máxima na semana passada, quando dois policiais militares executaram a tiros um garoto de quase quatro anos de idade, João Roberto Amorim Soares. Era noite do domingo 6 e ele estava no carro conduzido por sua mãe, Alessandra, e ao lado do irmão, Vinícius, nove meses. Passavam pela Tijuca, zona norte da cidade, quando os policiais mandaram o carro parar e, antes que a motorista pudesse obedecer, começaram a atirar. Foram 20 disparos contra o Fiat Weekend de Alessandra e seus filhos. O fogo só parou quando ela jogou uma bolsa de bebê pela janela. Já era tarde. A incompetência, o despreparo, a negligência e a insanidade dos policiais já tinham produzido o pior desfecho: João Roberto levara três tiros, um na cabeça. Faleceu no dia seguinte no hospital. Essa mesma polícia que atira primeiro e a esmo para ver, depois, o estrago que fez é investigada como suspeita pela morte da engenheira Patrícia Amieiro, 24 anos, que desapareceu na nobre Barra da Tijuca, em junho. Suspeita-se que ela tenha passado pelo bloqueio de uma blitz e seis policiais do 31º Batalhão da PM teriam respondido à desobediência com balas. Também há poucas semanas, o estudante Daniel Duque, 20 anos, tombou morto em frente à boate Baronetti, point da juventude dourada do Rio, em Ipanema. Foi morto pelo PM que fazia a segurança de Pedro Velasco, filho da promotora Márcia Velasco. Mais um despreparado que atirou, enquanto jovens se atracavam numa briga, até então, sem armas. Graças a essas ações, o Rio de Janeiro tem a polícia que mais mata no mundo, segundo vários rankings internacionais. Na comparação de autos de resistência (nome dado a mortes em confronto com a polícia), os homens da lei cariocas mataram sete vezes mais que os paulistanos. São 14 mortes por grupo de mil habitantes no Rio contra 1,8 em São Paulo. A triste supremacia continua: somente nos quatro primeiros meses deste ano, segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública, foram registrados 502 autos de resistência, 33,5% a mais do que o ocorrido no mesmo período de 2007. Na comparação do primeiro semestre de cada ano, o número de vítimas é crescente desde 2000, quando foram 172, até o ano passado, com 694 casos. É uma polícia a cada ano ainda mais letal. As estatísticas juntam as pontas opostas da sociedade carioca. Assim como Daniel Duque, Patrícia Amieiro e João Roberto, recentes vítimas no asfalto, nas favelas, áreas de maior concentração de criminosos, morrem inocentes. Há duas semanas, a comoção foi em torno do menino Ramon Fernandes da Silva, seis anos, que levou uma bala na cabeça enquanto brincava no quintal de sua casa, em Guadalupe, na favela do Muquiço, zona norte. O tiro foi disparado por um policial que perseguia um grupo de suspeitos nas imediações da casa de Ramon. Na semana passada foi a vez de a dona-de-casa Deise Batista Moreira Machado, 32 anos, perder a vida de maneira banal e estúpida justamente por quem deveria protegê-la. Foi atingida por um tiro na cabeça durante operação da PM na favela Vila Cruzeiro, na Penha, zona norte. Bala perdida, segundo a polícia. O termo "bala perdida", aliás, é um eufemismo carioca para o assassinato de quem não era o alvo. Para o advogado João Tancredo, presidente do Instituto de Defensores de Direitos Humanos, "por trás de uma bala perdida há quase sempre um agente da lei". Só ele atua em mais de 20 casos para acionar o Estado com pedido de indenização para as famílias das vítimas. O presidente da Associação dos Ativos e Inativos da Polícia Militar, Miguel Cordeiro, diz que "a PM do Rio vive de aparências, está falida e contaminada pela corrupção de boa parte de seus integrantes". Ele critica fortemente a política do governador Sérgio Cabral Filho: "Em vez de bravatas ou de culpar policiais isoladamente, o governador deveria ver de perto como nasce um policial militar, acompanhando o treinamento e a formação." Segundo Cordeiro, "o curso para policiais é insuficiente para que ele exerça sua função na proteção da sociedade". Além de a duração ser mínima, de apenas três meses, muitos policiais nem chegam a freqüentá-lo. Fazem apenas um treinamento rápido no quartel, recebem as armas e vão para as ruas. E não há reciclagem sobre abordagens e situações de crise. Segundo o presidente da Associação de Cabos e Soldados da PM, Vanderlei Ribeiro, um policial pode ficar até uma década sem nenhum curso de atualização. Infelizmente, na ponta final dessa sucessão de erros estão, muitas vezes, inocentes como o menino João Roberto. Apesar da imensurável dor pela perda do filho, o taxista Paulo Roberto Barbosa Soares tem conseguido manter a lucidez ao analisar a tragédia que levou seu primogênito. "Quem disse que o Estado pode matar? Quem delegou poderes para o Estado matar? Aqui não tem pena de morte não, gente! Se fossem bandidos, os policiais teriam que prendê-los, como manda a lei. O Estado matou meu filhinho", gritou, no cemitério em que o menino foi sepultado, na terça-feira 8, vestindo a mesma fantasia do Homem-Aranha que usaria na festa de seu aniversário, dia 29 deste mês. A declaração coincide com a tese de especialistas em segurança: mortes como a de João Roberto são o efeito colateral mais perverso da política de enfrentamento adotada pelo governo de Sérgio Cabral para combater a violência. "O conflito se generalizou. A primeira coisa que o policial faz é puxar a arma. Então, a chance de ocorrer uma tragédia é grande", disse o sociólogo Rubem César Fernandes, do Movimento Viva Rio. Sérgio Cabral refuta as acusações e diz que sua política "é para defender o cidadão e não para matar inocentes". O governador continua achando que está no caminho certo: "Não contemplamos e não passamos a mão na cabeça de policiais." A Coordenadoria de Comunicação Social da Secretaria de Estado enviou nota à ISTOÉ dizendo que "a chamada política de enfrentamento, cujo maior argumento é o aumento dos autos de resistência, na verdade é uma política de desarmamento dos bandidos". Segundo a nota, o Rio de Janeiro é o único estado do País em que a cultura dos bandidos é a de atacar a polícia. Em sintonia com o discurso exaustivamente proferido pelo governador, questiona: "Ficaremos de braços cruzados ou vamos desarmá- los (os bandidos)? Para agir, há um preço alto a se pagar, sem dúvida. Mas o que será do Rio se nada for feito?" Essa tese, para muitos estudiosos da violência, é uma espécie de salvo-conduto para os assassinatos em série que têm acontecido. Para Antonio Carlos da Costa, presidente da ONG Rio da Paz, sedimentou-se a "mentalidade do atirar primeiro para depois identificar o alvo". E, assim, morrem jovens, crianças e adultos, independentemente de classe social. "Há relatos de execuções. Trata-se de uma atitude desprovida de discernimento. O enfrentamento não apresentou nenhuma redução significativa da criminalidade", disse. Todo o quadro remete aos versos da música de Geraldo Vandré, Para não dizer que não falei das flores, antigo hino contra a ditadura: "Soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos de armas na mão." Perdidos e assassinos.
Quatro casos de execução de inocentes mostram o despreparo da PM carioca e questionam a eficácia da política de confronto ostensivo com bandidos
ELIANE LOBATO E RENATO GARCIA
domingo, 13 de julho de 2008
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