[Valid Atom 1.0]

domingo, 13 de julho de 2008

Ary Fontoura



Ary Fontoura

Qual é o seu nome completo e a data e o local de seu nascimento?
Meu nome é Ary Beira Fontoura. Nasci no dia 27 de janeiro de 1933, em Curitiba, Paraná.

Qual era a atividade de seus pais?
Meu pai era professor do que, hoje em dia, seria o ensino fundamental. Naquela época, era grupo escolar. Num país que cultiva a ignorância, eu me proponho ser igual a todos. Então, não sei dizer o que mudou, mas acho que, agora, a designação é ensino fundamental. Quanto à minha mãe, era do lar, uma italiana muito legal, que cozinhava para a gente.

E o nome deles, qual era?
O nome da minha mãe era Stelita, com st, mas todo mundo a chamava de Estela, e ficou Estela, com es. O nome completo era Stelita Travisani Fontoura. Meu pai se chamava Antônio Beira Fontoura e era de origem portuguesa. Minha avó veio de Londres para uma colônia de protestantes quacres ingleses em Ahú de Baixo, um bairro de Curitiba. Para obter cidadania, ela teve que casar. Minha avó já veio da Europa com os filhos. Ela se chamava Fani Cooper. Eu sempre reivindiquei esse Cooper, porque sou fã de Gary Cooper e poderia me chamar Ary Cooper. Seria ótimo.

Onde você estudou? Qual é sua formação?
Estudei em Curitiba, onde morei 32 anos da minha vida. Primeiro, estudei no grupo escolar; depois, fiz o ginasial no Colégio Estadual do Paraná; e, em seguida, cursei o clássico, que eu achava melhor do que o científico, pois gostava muito de ler. O que eu realmente gostaria de ter feito depois era estudar teatro, mas em Curitiba não havia essa possibilidade. Na época, seria preciso ir para São Paulo, onde já existia a Escola de Arte Dramática (EAD), ou para o Rio de Janeiro, onde acho que ainda não existia nenhuma escola, mas havia cursos isolados. Então, fiquei indeciso sobre o que deveria estudar. O que se parecia com teatro? Minha família achava que ser artista era um problema, não se constituía propriamente numa profissão. E não era só a minha família. Ator era sinônimo de homossexual, e atriz, de prostituta – almas completamente perdidas. Não tínhamos uma profissão garantida. Foi Getúlio Vargas quem permitiu que colocássemos a designação ator, ou atriz, na carteira de saúde – naquele tempo, era carteira de saúde –, o que regularizou um pouco a situação.

E você decidiu fazer faculdade de quê?
De Direito, porque achei que era um grande teatro. Evidentemente, não fiz a parte cível, fiz a penal. Eu achava que deveria ser advogado, promotor ou, talvez, juiz.

Chegou a se formar?
Não. Naquela época, era assim: cinco anos de curso, com quatro matérias em cada um. No primeiro ano, já fiquei preso em uma matéria, não passei. Dali em diante, fiquei sempre preso em uma matéria, até que, no quarto ano, apareceu um circo. Como eu estava muito interessado em trabalhar nele, abandonei tudo. Pensei: “Estou fazendo uma coisa que não me interessa, que não vou usar”. E eu tinha me desiludido um pouco com o Direito. Aquela estátua que simboliza a justiça, com a mulher vendada e a balança, me perturbava um pouco. Eu achava que a balança era disforme, tinha pesadelos com aquilo. Ficava pensando em ter que defender um criminoso sabendo que o cara havia matado a mãe, e eu tendo que dizer que ele não havia matado, usando de artifícios para tirar o sujeito da cadeia. Como se sente uma pessoa assim? Eu me sentiria com a consciência pesada. E ficar só na acusação também não seria legal, porque, eventualmente, eu poderia acusar alguém que não tinha cometido crime nenhum. Pensei: “Isso é um celeiro de injustiça. Eu quero é fazer teatro”. E me mandei.

Foi para onde?
Para o circo dos irmãos Queirolo, parentes de Bibi Ferreira. Era um circo-teatro. Havia uma primeira parte, num picadeiro, onde se apresentavam atrações como o globo da morte. E havia a tourada. Colocava-se um touro em um pequenino círculo, e alguém ficava toureando. Palhaços desvirtuavam a tourada, chamando a atenção do touro para outro lado, enquanto o toureador tinha a oportunidade de se recuperar. Eu fazia um desses palhaços e outras coisas, como andar no arame, além da parte teatral, que adorava.

Quanto tempo você ficou no circo?
Uns seis meses, fazendo um espetáculo por dia.

E depois?
Um dia, na faculdade, um professor fanhoso disse: “Ontem, levei meus filhos ao circo e tive o desprazer de ver um dos colegas dos senhores trabalhando com roupas de palhaço. Como um futuro advogado pode estar naquela profissão?”. Falei: “Era eu. Vou embora. Palhaçada é ficar aqui ouvindo o senhor”. E me mandei da universidade, no que fiz muito bem. Mais tarde, me vinguei do professor fanhoso fazendo um tipo igual a ele – bem ridículo, por sinal.

Você fundou uma sociedade de teatro em Curitiba?
Lá não havia nada. Então, quem tinha um olho era rei. Na verdade, sou autodidata em termos de teatro. Primeiro, busquei a parte teórica. Naquela época, aprendíamos inglês, francês e espanhol no colégio – hoje também, mas acho que nem tanto. Com o espanhol aprendido, estudei essa parte literária através da Argentores, uma editora de Buenos Aires que publicava muitos livros sobre teatro. No Brasil, não havia esse tipo de publicação. Eram livros técnicos, que mostravam desenhos de cenário, de maquiagem. Tudo o que se relacionava a teatro, aprendi em espanhol, nesses livros estrangeiros que eram traduzidos na Argentina. Eu pegava todo o dinheiro que tinha e mandava vir os volumes pelo correio, através da famosa posta-restante. Outra coisa que eu fazia muito era acompanhar o cenário teatral por meio de revistas como A cigarra e O cruzeiro, publicações do grupo de Assis Chateaubriand. Nelas, eu lia crônicas e reportagens a respeito de teatro, sabia da vida das pessoas, lia críticas teatrais, enfim, tudo o que havia. Eu tinha uma coletânea de tudo isso. Então, retomando a pergunta, resolvi montar um grupo e passei a ser o cabeça. Era a Sociedade Paranaense de Teatro, com vários colegas que estavam na mesma posição que eu, ou seja, gostariam de trabalhar em Curitiba. Eu me desenvolvi fazendo radioteatro e todo tipo de manifestação que fosse possível. A televisão aconteceu em Curitiba nos anos 1960. Nessa década, foi inaugurada a TV Paraná, uma associada da Rede Tupi de Televisão, de Chateaubriand. Eu entrei na emissora como diretor de teledramaturgia, e consegui fazer em Curitiba uma semiprofissionalização do teatro. Arrendei por um longo tempo um imóvel que deveria se destinar à prática de ginástica e o transformei em teatro. Vendi umas coisas que tinha, empenhei outras, me endividei para o resto da vida, mas fiz o troço. Lá, nós desenvolvíamos um trabalho muito importante no sentido cultural, numa terra em que não havia nada e passou a haver muita coisa. Hoje em dia, ninguém sabe disso, mas é algo que ficou guardado na memória de alguns espectadores que tiveram a oportunidade de acompanhar todo esse trabalho.

Durante quantos anos você foi diretor de dramaturgia?
Acho que de 1960 a 1962. Não tenho bem certeza da data em que a televisão começou. No Paraná, surgiu primeiro a emissora do dr. Nagib Chede, o canal 12, uma experiência em termos de televisão. Depois, a emissora de verdade, que chegou com equipamentos, carros, estúdio, com tudo armado, foi a TV Paraná.

Que nomes do teatro e do cinema o inspiraram?
A maior dificuldade das pessoas é descobrir o que querem da vida. Fui agraciado por Deus – vamos colocá-Lo nesta conversa –, porque eu sempre soube o que quis. Aos quatro anos, eu morava numa cidade do interior, já que meu pai, professor, se via obrigado a visitar várias cidades para fazer seu currículo e se colocar na capital. Funcionário público tinha que fazer isso. Resultado: a família caminhava junto. E lá fomos nós para Entre Rios do Oeste, onde não havia luz elétrica. Tudo era à base de querosene, lampião. Estou contando isso porque foi lá que me descobri. Era uma daquelas cidades com construções bem coloniais. Tudo começava em uma praça – fui vê-la recentemente e é pequena demais, mas, nas minhas lembranças de criança, tudo aquilo era muito grande. A gente cresce e os espaços vão diminuindo. Nós morávamos numa casa que dava para a praça. À noite, meu pai ia lecionar, e meus irmãos, estudar, enquanto eu ficava com minha mãe. Ventava muito na cidade, fazia muito frio, e costumava aparecer por lá um andarilho noturno, que vivia com um cajado na mão e tinha uma barba enorme e uma capa muito suja. Ele ficava andando de um lado para o outro, pedindo comida às pessoas. Todos tinham medo, pois o achavam louco, se assustavam com seus gritos horríveis, que demonstravam sua profunda solidão e desamparo. As portas e as janelas eram fechadas, para evitar que ele visse luz e se aproximasse. Um dia, quando eu estava brincando sozinho na sala, ouvi um grito. Minha mãe estava na cozinha, no fundo da casa. Eu peguei uma cadeira e abri a tramelazinha que fechava a janela. Havia uma cara no vidro. Era o andarilho, com aquela barba, os olhos fixos em mim, o lampião o iluminando. Eu peguei no rosto dele e o examinei. Duas lágrimas bem grossas caíram dos seus olhos. Nessa hora, mamãe chegou: “Meu Deus, feche isso!”. E fechou a janela na cara do homem. Saí dali e fiquei pensando. O tempo foi correndo. A todo lugar que eu ia, sempre que voltava para casa, eu imitava o que tinha visto. Se havia ido ao salão, por exemplo, eu voltava barbeiro, e cortava o cabelo de todas as crianças que apareciam. Criei problemas terríveis. Uma vez, uma japonesa que enchia de orgulho sua mãe porque tinha cabelos até o joelho caiu no meu salão de barbeiro, e eu cortei o cabelo dela todo. Eu fazia coisas assim. Imitava tudo o que via. Ia à missa e voltava padre. No decorrer da minha vida, eu já sabia verdadeiramente para onde ia, o que seria, o que aconteceria comigo. Tanto sabia que são mais de 70 anos e a minha memória regressiva recorda tranqüilamente cenas como a do andarilho. Só não me peçam para lembrar de quando eu tinha três anos, porque acho que nem falava ainda. Foi aos quatro anos que comecei a lidar com emoções, sentimentos – necessários para se representar. Comecei a colher as coisas na vida, para poder passá-las para os outros.

Como foi deixar Curitiba?
Eu tinha 18 anos quando surgiu a oportunidade de alguns alunos do colégio, os que mais se destacavam, irem a São Paulo. Eu me destacava muito, tinha um jornalzinho, e era tido como um autor. Eu e mais nove colegas fomos a São Paulo, que eu não conhecia. Aos 18 anos, eu não conhecia nada, nem o mar, porque em Curitiba só há frio e montanha – são 900m de altitude. A viagem foi feita num trem que levava 24h para fazer o percurso. Ainda não havia estradas como as atuais. Até hoje, a BR-116, no trecho entre Curitiba e São Paulo, é péssima, considerada a rodovia da morte. Quando cheguei a São Paulo, me maravilhei. Eu sabia do que estava acontecendo na cidade através de revistas. Tudo estava lá: o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, os grandes atores. Eu gastei todo o dinheiro que tinha levado vendo peças. Nós estávamos hospedados no Pacaembu, num dos vestiários dos jogadores de futebol, com aqueles banheiros de parede pela metade. Na hora de ir embora, para meu azar ou minha sorte, eu me escondi atrás da parede, abaixado. O professor que nos acompanhava perguntou: “Onde está Ary Fontoura? Sempre dando problema. Na hora em que procuramos, ele nunca está. Era para ter discursado, não apareceu; o trabalho, não terminou”. O professor subiu numa cadeira e começou a me procurar. Do alto, ele me viu e disse: “Se você quiser ficar, pode ficar, mas de uma outra vez, quando vier sozinho. Levante, arrume suas coisas e vamos embora para Curitiba”. E lá fui eu, para as 24h mais longas da minha vida. Nessa volta de trem, passou pela minha cabeça tudo o que seria bom para mim. Tudo o que deveria acontecer. Eu poderia largar aquele exercício dramático de ouvir rádio para aprender a representar. Eu ouvia as novelas da Rádio Nacional desde os oito anos de idade. E continuei ouvindo, ouvindo, ouvindo, até já crescido, porque queria ver como as pessoas se aprimoravam, como as interpretações se modificavam. Era uma dificuldade extrema. Tudo isso me passou pela cabeça. Pensei: “Meu Deus, num grande centro tem tudo! Há escola para eu aprender, pessoas em quem me basear, ídolos para, no futuro, quem sabe, até chegar perto. E vou voltar para Curitiba, onde deverei ser, naturalmente, mentor de tantos? O meu interesse é tão maior que o dos outros”. Mas, pressionado pela família, por minha mãe, extremamente ligada a mim, acabei ficando em Curitiba. Era aquela coisa bem italiana, visceral. Se um filho fica doente, ninguém trabalha mais, fica todo mundo em pé, esperando o cara sair da cama. Eu ouvia: “Você não pode ir, vai matar todo mundo”. Preso àquela chantagem emocional, fiquei em Curitiba até os 32 anos de idade. Mas vivia dizendo que queria ir embora. Até que, um dia, minha mãe disse: “Ary, pelo amor de Deus, quando for embora, não fale nada, só ‘mamãe, amanhã vou embora’. Não me mate aos pouquinhos assim. Eu quero que você fique perto de mim porque sei o que é a vida lá fora”. Havia sempre isso, que era a expressão da verdade sob um determinado ponto de vista, o das dificuldades que um indivíduo enfrenta para sair de um lugar onde tem tudo estabilizado e começar novamente. Eu sabia que essas dificuldades existiam, mas precisava ouvir outras coisas, como, por exemplo: “Vá, nós o ajudamos”. Mas ajudar como, se era uma família com tremendas dificuldades? O ordenado do meu pai acabava como o dos professores de hoje – se bem que, hoje, acaba depois de uma semana, e o do meu pai acabava em 15 dias. Eu trabalho desde os oito anos de idade. Comecei numa fábrica de graxa para sapato. Meu dinheiro era ganho ali. O colégio, a universidade, minhas roupas, as coisas de que precisei, tudo quem pagou fui eu. Sempre fui acostumado a trabalhar. Por isso, eu pensava: “Tanto faz trabalhar aqui como em outro lugar. Mas, em outro lugar, não vou ter família, não vou ter nada”. E fui me desvinculando da vida pessoal, porque começava a me ver preso. Ia me casar com uma pessoa, já falecida, que me dizia: “Ou o que você quer, ou eu”. Eu achava aquilo estranho: “Então, ela não me quer. Quer que eu seja dela”. Até que decidi: “Sabe o que vou fazer? Não vou me casar. Vou esperar até que me dê uma vontade mais ferrenha, até o dia em que eu me proponha realmente ir embora. Aí vou embora cuidar da vida”. E foi o que fiz. No dia 31 de março de 1964, às 11h30, desembarquei no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Vim num avião da Real Aerovias. A cidade estava parada, e eu pensei que era Dia do Comércio. Mas era um outro dia, o primeiro dia da revolução, da famosa, que durou 20 anos. Mas, para mim, estava tudo bem. Eu não sabia de nada, estava tudo censurado. Não se sabia o que aconteceria. Só se falava em Carlos Lacerda, e nisso, e naquilo.

Você conhecia alguém no Rio de Janeiro?
Conhecia alguns atores, porque todos que iam a Curitiba me encontravam. Eu recebia as pessoas, me infiltrava, queria saber como um espetáculo começava, como um cenário era montado, tudo. Queria ver desde o início. Então, conhecia muitas pessoas de teatro, mas era um conhecimento superficial. Na minha chegada ao Rio, mudava a minha vida, mudava o país. Foi péssimo chegar naquela época. Mas eu havia decidido – e decidido estava. No princípio, foi muito difícil, pois o dinheiro que eu tinha era pouco. Jamais poderia voltar para Curitiba, porque não queria e porque havia deixado tudo em definitivo. Queria realmente começar vida nova no Rio. Eu tinha conhecido a fama através da televisão, havia me transformado no primeiro nome do Paraná. Isso era muito importante. Os jornais se despediram de mim com manchetes nas primeiras páginas: “O nosso ator vai representar o Paraná”. Sempre discordei disso, porque eu não ia representar o Paraná coisa nenhuma. Ia era cuidar da minha vida. Mas eu deixava correr. Os primeiros meses no Rio foram complicados, porque eu só tinha um LP gravado. Eu também era cantor. A minha vida é muito extensa. Em Curitiba, eu também desenvolvia esse lado cantor, em bordéis. Os mais jovens nem conheceram isso. O que era um bordel? Era uma casa em que moravam 20, 30 prostitutas e na qual existia um salão que abria às 21h. Do lado de fora, havia luzes vermelhas, para marcar um estabelecimento classificado pelos governos como um local que deveria ser isolado da sociedade, porque o pecado morava ali. E ali eu trabalhava. Era contratado, com muito orgulho. Foi o primeiro contrato que assinei na vida, com uma senhora que gostava muito de mim. Ela me conheceu em circunstâncias outras, mas, depois que me viu cantar, adorou mais a minha voz do que o resto. E resolveu me contratar para trabalhar numa cadeia de bordéis que tinha.

Isso ainda no Sul?
Sim. Eu comecei a viajar pelo Paraná. Fui a Londrina, por exemplo, que ainda estava começando na década de 1950. Três quartos da cidade se constituíam de prostíbulos. Era o fim do boom do café, e as pessoas iam a Londrina gastar todo o dinheiro que haviam ganho. E eu estava lá, sempre cantando.

Qual era seu repertório?
Eu cantava as músicas da época. Era um cantor romântico por natureza, esse era meu estilo. Cantava boleros, sambas-canção, algumas músicas americanas, enfim, o que pediam. Crooner tinha que saber praticamente tudo.

No Rio você também trabalhou em bordéis?
Infelizmente, não havia bordéis na cidade. Era tudo mais sofisticado. Então, não pude executar essa minha função. Mas fiz de outra forma. Eu consegui gravar um LP, e andava com aquilo debaixo do braço. Eu pensava em ser n coisas. Dava um tiro para cá, outro para lá. Não sabia se seria um cantor que podia atuar ou um ator que podia cantar. Eu não tinha muita certeza das minhas qualidades vocais. Esse foi um papo que tive muito com Fábio Jr., quando trabalhamos juntos numa novela. Ele estava ali como ator, mas sempre com um disquinho debaixo do braço. Toda hora, eu ouvia aquilo: “Pai, você foi meu herói...”. Acabou dando certo. Fábio também tinha dúvida se queria ser cantor, verdadeiramente, ou se queria ser ator. Quando você depende do que faz para sobreviver, tem todo o direito de ter essas dúvidas e outras mais. Às vezes, eu apresentava o LP a pessoas nem um pouco interessadas. Mas foi assim que comecei a arranjar trabalho no Rio, na noite, fazendo musicais, shows com Carlos Machado. Fiz testes e mais testes. Eu me insinuava em todos os lugares, para todas as pessoas. Deixava bilhetinhos ou um cartão com meu endereço. Mas, às vezes, as pessoas queriam se comunicar e não conseguiam, porque eu morava dois meses num lugar e, por causa do aluguel alto, tinha que sair, me mudar para um quarto. De repente, ganhava um dinheirinho e voltava para um apartamento, um conjugado. Do conjugado, voltava para o quarto. Assim, meu endereço se perdia.

Quando surgiu o convite para trabalhar na Globo?
Em 1965, eu fazia Como vencer na vida sem fazer força, um musical vindo diretamente da Broadway. Marília Pêra era a principal figura feminina. Havia também Moacyr Franco e Procópio Ferreira. Era um elenco grande. Naquele ano, apareceu a Rede Globo de Televisão, e alguns testes foram feitos. Quando cheguei ao Rio, meu primeiro teste havia sido com Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque. Os dois tinham um teatro chamado São Jorge, no bairro do Catete. Eles já haviam me visto atuar em Curitiba, porque eu os tinha convidado para assistir ao nosso trabalho – eu sempre convidava os artistas para nos assistir. Na ocasião, me disseram: “Se um dia houver uma oportunidade, vamos lhe chamar, porque você é um excelente comediante e precisa de uma chance”. Na época do teste, eu morava na Rua Constante Ramos, em Copacabana, e vivia um período de impasse, porque a situação estava muito difícil para mim. Coloquei na portaria: “Engraxam-se sapatos”. Em seguida, saí para ir à feira. Eu sei cozinhar, graças a Deus, e ia fazer um almoço com o que fosse possível comprar. Meia hora depois de pôr o anúncio, quando voltei da feira, havia uma pilha de sapatos, cada par com o número do respectivo apartamento. Não deu outra: passei a engraxar sapatos. Só que não se engraxam sapatos a toda hora, e o prédio tinha apenas dez andares. Se eu fosse a outros lugares, talvez já houvesse alguém fazendo a mesma coisa, e eu entraria na seara alheia. Não era o caso disso. Fui, então, tomar um café na esquina, na lanchonete de um português. Acho que foi o café mais longo da minha vida. O português me olhou e, com sotaque, disse: “Nunca uma pessoa tomou café por tanto tempo nem ficou pensando tanto. O senhor está doente, está precisando de alguma coisa? Em que posso ajudá-lo?”. Contei a ele o que estava acontecendo. Falei: “O senhor não tem que me ajudar. Eu estou numa encruzilhada. Ou volto para a minha terra, ou arranjo algo para fazer na minha área, ou tenho que sair do meu objetivo até poder buscá-lo novamente. Não sei o que fazer”. O português disse: “Só o que posso é lhe oferecer um trabalho na minha lanchonete”. Eu falei: “Mas o que o senhor poderia me oferecer? A única coisa que sei é cozinhar”. E ele: “Mas é exatamente o que preciso. Estou com vontade de oferecer um prato feito aqui, porque meu vizinho está fazendo isso e está dando certo. Das 10h ao meio-dia, a lanchonete não tem muito movimento. Depois que as pessoas tomam o café da manhã, não aparece mais ninguém”. Eu disse: “Se quiser me testar... O senhor me libera até as 16h?”. Então, comecei a cozinhar. No primeiro dia, não deu certo, mas, uma semana depois, o tal prato feito era um sucesso. Eu sabia cozinhar bem. Hoje em dia, já não sei. Não deixei de cozinhar, mas só cozinho para mim. Um dia, quando cheguei em casa vindo da lanchonete, encontrei um bilhete de Rubens Corrêa debaixo da porta. Ele pedia, encarecidamente, para eu comparecer com urgência ao teatro. Pensei: “Será agora? Melhor ir logo, né?”. Essa história me faz lembrar uma piada muito boa. Um ator foi fazer teste na Broadway, e disseram a ele: “Você foi muito bem. Se até meia-noite não receber nenhum telegrama, com certeza passou”. O ator foi para casa e contou aos amigos, que decidiram fazer uma festa, para esperar com alegria. Todo mundo dançava, bebia e olhava o relógio. Deram 11h55 e nada. Meia-noite, todo mundo já estourando champanhe, a campainha tocou. Ouviu-se: “Telegrama!”. Naquele silêncio de expectativa geral, o ator abriu o telegrama, leu e disse: “Mamãe morreu!”. E todo mundo comemorou. A nossa carreira é assim. De repente, você substitui os valores. Quando veio aquilo – “Encarecidamente, o senhor poderia comparecer, a hora que pudesse” –, eu fui correndo, vestido como estava. Em cinco dias, ensaiei o papel de um ator chamado Graça Mello, que mais tarde se tornou o primeiro diretor artístico da TV Globo. Eu o substituí na peça. No primeiro dia, ele ficou lá comigo. Graça era muito gentil.

Que peça era?
Mister sexo, de João Bethencourt. Graça Mello tinha saído porque ia fazer um filme, Grande sertão: veredas, baseado na obra de Guimarães Rosa. Mais tarde, quando a Globo abriu testes, eu não soube de nada. Quando descobri que o diretor era Graça Mello, me apresentei. E ele: “Mas, se você já me substituiu, vai querer fazer teste?!”. E foi assim que entrei na Globo. Minha primeira participação foi como advogado numa série chamada Rua da Matriz, escrita por Hélio Tys, que era jornalista da Rádio Globo.

Você se lembra da inauguração da emissora?
Da inauguração, eu não participei. Lembro que tudo funcionava no bairro do Jardim Botânico. O auditório era no estúdio onde hoje está instalado o jornalismo. A maquiagem ficou no mesmo lugar. Eram três andares. No último, havia um restaurante. A Globo começou muito bem, já estruturada, com características bastante profissionais.

Que programas eram feitos na época? Quais profissionais se destacavam?
As novelas eram de Glória Magadan, uma senhora cubana que veio para o Brasil. Acho que ela era patrocinada pela Colgate-Palmolive. Glória escrevia as novelas e comandava o departamento artístico da Globo. Ziembinski, Fábio Sabag e Moacyr Deriquém também já estavam na emissora. Com Sérgio Britto e Fernanda Montenegro, eu fiz um teleteatro que, antes, era feito na TV Tupi. Yoná Magalhães e Carlos Alberto, Glória Menezes e Tarcísio Meira eram os dois casais mais importantes da teledramaturgia. Lembro-me também de Tônia Carrero. Muita gente eu já conhecia da Rádio Nacional, que tinha uma programação muito boa, talvez uma das melhores já feitas neste país. Havia de tudo: orquestra, cantores ao vivo, teatro. A Rádio Nacional reunia a nata da sociedade artística brasileira. E a Globo, de certa forma, se espelhou nisso.

Qual foi sua primeira novela?
Passo dos ventos, de Janete Clair. Eu era o imediato de um navio, e contracenava muito com Carlos Alberto, o capitão. Lembro que, numa quarta-feira, Chacrinha deveria entrar no ar às 20h. A nossa gravação tinha que terminar pelo menos 1min antes, porque era no mesmo estúdio. Além disso, o mesmo equipamento era usado pelos dois programas. Nós estávamos gravando uma cena de tempestade em alto-mar. Havia a ponta de um barco, com um mastro que cairia na cabeça de Carlos Alberto. A gravação era em blocos de 15min. Despejavam uma enxurrada de água em cima de nós, uma verdadeira tempestade. O barco ficava todo em cima de pneus. E os contra-regras bombeavam os pneus para simular o movimento do barco jogando. No fim, correu tudo bem. O tal mastro caiu na cabeça do capitão. Meu personagem dizia: “Comandante!”. Era o gancho para o próximo capítulo. Dali a pouco, Chacrinha entrava: “Abelardo Barbosa está com tudo e não está prosa”.

Entre Rua da Matriz, de 1965, e Passo dos ventos, de 1968, você fez algum outro trabalho?
Não me lembro. Devo ter feito algo, alguma participação em programa humorístico. Eu participei de TV0-TV1, que era um humorístico, mas não sei exatamente em que época. Depois, fiz Faça humor, não faça guerra, com Jô Soares, durante dois anos e meio.

Depois de Passo dos ventos, sua novela seguinte foi Rosa rebelde.
Fiz um personagem fixo, relativamente bom: o professor de boas maneiras da protagonista, que era Glória Menezes. Eu contracenava muito com ela, ensinava-a a andar a cavalo. Aliás, coisa que eu nunca soube foi andar a cavalo, mas, na época, já existiam essas maravilhas da televisão, e eu sempre aparecia montado. O professor ensinava à personagem de Glória como se portar socialmente, como pegar uma xícara para beber. Era um personagem engraçado.

Logo após, você participou de A ponte dos suspiros.
Eu era um poeta que vivia em cima de um cavalo, com duas mulheres, uma na frente, outra atrás. Era um devasso, um notívago, um boêmio. Bebia, estava sempre alegre. Era um ótimo personagem. A novela era escrita por um autor com quem, mais tarde, eu faria inúmeros trabalhos e de quem me tornei, graças a Deus, um excelente amigo: Dias Gomes. Ele era perseguido por ser comunista – se bem que a revolução perseguia até quem não era. Por isso, para trabalhar, ele tinha que usar pseudônimo: Stela Calderón. Depois de A ponte dos suspiros, eu fiz outra novela de Dias, Verão vermelho.

Assinada por ele mesmo ou por Stela Calderón?
Por ele mesmo. Éramos eu, Dina Sfat, Paulo Goulart, Jardel Filho.

Você se lembra de seu personagem?
Lembro bem. Era um juiz casado com Heloísa Helena, um papel importante. Nosso filho, João Paulo Adour, se apaixonava por uma negra, filha da personagem de Ruth de Souza. Pela primeira vez, se tratou do problema racial a sério. Até então, havia todo tipo de entrave para evitar que a situação fosse abordada. Verão vermelho era uma novela bonita, passada na Bahia. Em seguida, fiz Assim na terra como no céu, também de Dias Gomes. Eu interpretava um personagem cujo apelido era Gugu. Acho que ele se chamava Otávio Augusto. Não, Otávio Augusto é o ator.


O nome era Rodolfo Augusto.
Isso. Heloísa Helena era minha parceira, contracenávamos muito. Nossos personagens viviam em função do carnaval, do desfile de fantasias de luxo. Eles se preparavam para aquilo durante o ano inteiro. Algumas das pessoas que desfilavam profissionalmente participaram da novela, como Clóvis Bornay. Rodolfo Augusto era homossexual assumido. Acho que foi o primeiro homossexual em novelas. Fui um pioneiro. No teatro, acho que fui o primeiro a aparecer nu, totalmente pelado – de frente, de costas, de tudo quanto era jeito.

Em que peça?
Chamava-se Meu bem, como posso ouvir você com a torneira aberta?. Eu sei que outras pessoas vão rir, vão reivindicar essa nudez, porque a peça não foi tão vista. Havia Hair, em que o elenco inteiro aparecia nu, uns 40 atores.

De que ano é Meu bem?
De 1968, por aí.

Qual foi a repercussão de seu personagem em Assim na terra como no céu?
Sob determinado aspecto, foi muito triste para mim. Eu recebia cachê, não era contratado da Globo, e ganhava mal. Ainda não era muito conhecido, não tinha volume para me impor. Então, era obrigado a ir trabalhar de ônibus e sofria muitas provocações. Eu passava por situações desagradáveis. Porém, sob o aspecto artístico, o personagem foi excelente. Foi uma atitude muito corajosa de um ator que poderia ter ficado estigmatizado e passado a fazer só aquilo, porque geralmente é assim: quando você faz bem um padre, por exemplo, vai ser padre a vida inteira. E não era bem isso o que eu queria. Se eu interpretasse um homossexual e só trabalhasse fazendo isso, eu ficaria estigmatizado. Eu não queria isso. Achava que poderia fazer muito mais. E batalhei no sentido de me proteger como podia. Então, artisticamente, o papel foi excelente, mas, pessoalmente, foi péssimo, porque realmente sofri muito, tive que evitar muitas brigas. As pessoas me provocavam demais. Tempos depois, pensei que deveria mesmo ter passado por aquilo. Fui uma testemunha ocular da história. Participei e vi o que é o ibope. Quem faz o ibope são as pessoas reunidas dizendo uma a outra o que pensam sobre um programa e indicando suas preferências. Esse boca-a-boca é melhor que qualquer publicidade. Eu vi o que significa trabalhar em televisão, vi o que é o imediatismo do veículo, que coloca você lá em cima.

Fale um pouco de O cafona, novela que fez em seguida.
Eu interpretava um hippie que morava numa comunidade junto com Marco Nanini, Carlos Vereza e Djenane Machado – acho que o nome da personagem dela era Esparadrapo. Nós retratávamos os anos 1970, das drogas, da liberação sexual. Naquela época, aconteceu de tudo no Brasil. Havia a influência da música, do rock. Tudo isso era muito bem abordado pelo autor de O cafona, Bráulio Pedroso. A novela foi um sucesso, e tinha um bom elenco: Paulo Gracindo, Tônia Carrero, Maysa. Eu adorava Maysa, mãe de Jayme Monjardim. Éramos muito amigos. Marília Pêra também fazia parte do elenco.

De que modo você construiu o personagem?
A gente só precisava sair à rua para ver o que queria. Meu personagem usava uma barba grande, postiça, e um cabelo imenso, como sintoma de rebeldia. E eu precisava colocar tudo aquilo. O laboratório para a criação do personagem era muito fácil: bastava conversar com os colegas. Hoje em dia, também pode ser fácil, como em A indomada, novela em que fiz um deputado. Só precisei ligar a televisão na TV Senado. Peguei tudo ali. Os laboratórios mais difíceis para criar personagens acontecem quando eles estão escondidos, meio impenetráveis. Às vezes, você tem até que inventar algo parecido. Mas o que está à mostra simplifica demasiadamente – para quem tem senso de observação, evidente. Então, nem para mim, nem para os colegas foi difícil trazer para a televisão o retrato daquela época, a forma de falar, andar, agir, viver.

Logo depois, você interpretou Apolinário, em Bandeira 2.
Também uma novela de Dias Gomes. Acredito que meus melhores trabalhos na Globo foram com Dias. Ele tinha uma confiança extraordinária em mim. Sempre me ligava antes e perguntava: “Ary, você está disposto a fazer uma novela?”. Eu dizia: “Você está disposto a ter seu Ary no elenco novamente?”. E ele: “Claro! Por isso estou ligando. É um personagem para o qual eu sei que você tem humor”. E, assim, nós trabalhávamos em conjunto. Bandeira 2 foi um sucesso, uma novela urbana, ambientada na Zona Norte do Rio. Ao lado da quadra da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, que estava começando, havia um prédio que foi nossa sede durante dez meses. Tudo era gravado em Ramos, em Olaria. Grande Otelo estava no elenco. Paulo Gracindo interpretava o bicheiro Tucão, e Felipe Carone, seu rival, Sabonete. Todos os personagens estavam muito centrados na Zona Norte, no jogo do bicho, na escola de samba. Era uma novela muito interessante. O romance entre os filhos dos bicheiros tinha uma conotação de Romeu e Julieta do subúrbio. Eu fazia par com Eloísa Mafalda. Parece que eu e ela fizemos muitos trabalhos juntos, mas fizemos poucos. Só que demos muito certo, porque a maneira de ser dela, tão simples, de dona-de-casa, combinou com a minha, que nunca fui uma pessoa cheia de frescura e gosto das coisas como são, as mais naturais possíveis. E nós trouxemos isso para o trabalho. Meu personagem era síndico de um prédio e oficial reformado da Marinha Mercante, aposentado no trabalho e na vida de um modo geral. A mulher também. Os filhos haviam se casado, e o casal morava sozinho no prédio, de cinco andares. Apolinário não tinha o que fazer, mas sentia necessidade de mandar. Por isso havia passado a ser síndico, pela própria posição de ter sido comandante da Marinha Mercante. Os dois viviam aquela vidinha, vendo televisão, indo dormir cedo, visitando os parentes. Até que uma família resolvia alugar o apartamento ao lado. Eram José Augusto Branco e Margarida Rey, mãe e filho na novela. A mãe era possessiva, adorava o filho, e porque o adorava tanto queria que ele desfizesse o casamento. Acabou conseguindo. A esposa era Marília Pêra, que interpretava uma motorista de táxi que cantava, com voz grossa: “Sou uma motorista de táxi muito inteligente”. Marília sempre pensou que era contralto. Só agora, depois de fazer tantas aulas, descobriu que é soprano. Mas, coitada, era o que pediam a ela: sempre um tom mais baixo. E Marília sempre querendo dar tons mais altos, o que, evidentemente, acabou conseguindo. Marília é uma grande amiga minha. Ela já deu uma entrevista como esta para o Memória Globo?

Já.
Então, deve ter contado que é praticamente uma das fundadoras da Rede Globo. Fez tanta novela na emissora!

Ela contou.
Tenho o prazer de ser amigo dela desde aquela época. Somos dois aquarianos impossíveis – impossíveis de se conviver demais, mas bons para se ver uma vez ou outra. Marília fazia, então, a taxista, que procurava o ex-marido com muita freqüência. Era um casamento que ainda tinha alguma chance de ser recomposto, se a mãe saísse do meio. Para o síndico, aquela situação estava ficando meio complicada, porque ele achava que os dois tinham o apartamento somente como refúgio para fazer amor. E havia a mãe também. Apolinário perguntava à mulher, enquanto ela fazia crochê: “O que você acha dessa situação?”. E ela: “Você é síndico. Deixe cada um viver à sua maneira. Enquanto não passar do apartamento deles, está tudo bem. Você não tem nada a ver com isso”. Mas ele dizia: “As coisas vão começar a se complicar. Os dois fazendo sexo, e a mãe presente! Isso não é possível num prédio de família”. O tempo foi passando, e Apolinário começou a imaginar coisas. Aquilo despertou sua libido, e ele começou a querer fazer o mesmo com a mulher. Só que a mulher não queria: “Não tem cabimento! Na nossa idade!?”. E ele dizia: “Mas nós podemos fazer de uma forma diferente”. Um dia, a campainha tocou, e a mulher atendeu a porta. Era Apolinário, vestido a caráter: “Carteiro!”. Ela dizia: “Pare com isso! Ficou maluco?! Onde você arranjou essa roupa? Tire isso! O síndico do prédio devia se comportar com mais dignidade”. Ele reclamava: “Você estragou tudo! Tinha que me receber como se não me conhecesse. Daí, eu ia cantar você, e a gente fazia o que tinha que fazer”. E ela: “Mas o que é que tinha que fazer?!”. Noutro dia, ela estava dormindo quando, de repente, a janela se abria: “Bombeiro!”. Era ele de novo, vestido de bombeiro, com a mangueira. A mulher dizia: “Que é isso, Apolinário?!”. E ele: “Não fale o meu nome! Diga que a casa está pegando fogo!”. Ela gritava: “Fogo! Fogo!”. E Apolinário ia para cima da mulher, na cama. Bandeira 2 era uma novela muito boa, e essa era uma de suas tramas. A nossa participação não era pequena. Em todos os capítulos, havia coisas assim, que até ultrapassavam o limite. Eu ainda morava em Copacabana, e um senhor que era meu vizinho, muito bem arrumado, com gravata, paletó – chamava a atenção por se vestir desse modo no Rio de Janeiro, debaixo de um calor desgraçado –, bigode bem-feito, cabelo bem cortado, chegou para mim e disse: “Sr. Ary Fontoura, eu admiro demais o seu trabalho”. Respondi: “Muito obrigado”. E já olhei para ele pensando: “Se um dia eu tiver que fazer uma pessoa bem formal, já sei onde vou buscar inspiração”. Ele continuou: “Eu só queria saber uma coisa, por curiosidade. Os senhores fizeram uma cena de Otelo?”. Na novela, havíamos feito Otelo e Desdêmona. Apolinário e a mulher faziam diversos personagens, para ter relações sexuais e avivar o casamento. O casamento já estava num fogaréu danado, tinha avivado para valer. Meu vizinho falou: “Aquela cena foi tão interessante! O que o senhor utilizou para ficar com o rosto negro como o de Otelo?”. Eu disse: “Foi fácil. Nós usamos uns bastões próprios para isso, mas, como eles não existem aqui, use rolha. O senhor queima uma rolha, passa a cinza no rosto e pronto”. Uns dois, três dias depois, eu desci no elevador com o tal vizinho, que estava com o rosto todo vermelho. Perguntei: “O senhor tem alguma problema?”. Ele respondeu: “Foi a rolha que o senhor me ensinou!”. Simplesmente, ele havia queimado o rosto passando a rolha, porque a tinha passado ainda em brasa. Eu pensei: “Que bom! Essa história é sinal de que a novela está dando ibope”.

Vamos passar a Uma rosa com amor. Você interpretava Afrânio.
Ele era apaixonado por Rosa, personagem de Marília Pêra. Vejam como são as coisas. Eu, que nunca tinha sido galã em novela, fiz esse papel. O autor era Vicente Sesso. Como eu já havia realizado uns trabalhos interessantes antes, pensei: “Meu Deus! Como vou fazer esse papel agora? Só tem ‘sim’ e ‘não’, ‘sim’ e ‘não’. Não tem mais nada”. Eu tinha na mão 31 capítulos de “sim” e “não”, apenas. A descrição do personagem era: Afrânio, um garçom. Decidi: “Tenho que fazer algo para esse garçom aparecer. Se não fizer, como vou continuar trabalhando na Globo?”. Então, coloquei no personagem tudo o que eu achava que devia. Encontrei uma característica para ele: eu o fiz fanhoso. E ficou legal. O personagem ficou muito engraçado, o diretor gostou. Afrânio fazia sua declaração de amor para Rosa com aquela voz fanhosa. Então, eram coisas que fazíamos, funcionavam, e nós íamos em frente. Só sei que, lá pelo capítulo 40 – a novela teve 220 –, eu já havia passado a falar mais coisas, e o personagem começou a aparecer.

Em seguida, você voltou a participar de uma novela de Janete Clair, O semideus.
Janete fantasiava a vida. Ela era ótima.

Você se lembra do nome do personagem?
Acho que nem nome ele teve, não deu tempo. Como não me quiseram, acabei até desprezando o personagem, e não tenho idéia do nome dele. Vou explicar essa história: quem dirigia a novela era Walter Avancini, um dos mais competentes diretores de televisão que este país já teve, e também uma das pessoas mais desagradáveis que conheci. Ele era muito mal-humorado, tinha o fígado na boca, e não acreditava nos atores. Ele tinha sido ator, menino-prodígio, mas não acreditava nas pessoas. Trabalhar com Avancini era um martírio, porque não se podia sentar nos móveis, devia-se tomar cuidado com a roupa. Era um profissionalismo extremamente radical. E, quando Avancini cismava com uma pessoa, ele a maltratava. O trabalho era muito difícil, sobretudo para quem fazia comédia. Quando você faz comédia, quanto mais extravagante se mostrar, melhor é. Você fica desanuviado, e começa a fazer graça, tirar daqui, colocar ali. Porém, se você entra num ambiente carregado, cheio desse tipo de energia, isso atrapalha. Avancini dizia: “Não gosto de comédia. Sei que precisa haver, mas não gosto. Quem faz comédia pode ficar tranqüilo. Dirijam-se! Façam! Pois eu não sei fazer e não gosto”. Para o pessoal do drama, tudo estava sempre muito bem arrumadinho. Já eu, Renata Fronzi, todo o pessoal da comédia, ficávamos de boca aberta, como passarinho no ninho, esperando algo que nunca vinha. Meu personagem possuía uma cobertura na Avenida Vieira Souto, mas morava sozinho, não tinha ninguém na vida, só muito dinheiro. Ele era dono de uma vila, e resolvia ir lá brincar com as criancinhas. Queria era fazer estripulia. Chegava, olhava para um lado, para outro e furava o saco de arroz que havia na porta de uma venda. Eu fazia esse papel vestido de escoteiro – topávamos tudo –, com as crianças soltando balão atrás de mim, se escondendo. Pensei: “Esse personagem vai dar o que falar, porque vai entrar numa novela com um drama desgraçado. Há um sujeito com quatro personalidades, uma mulher com oito. O humor vai servir para desanuviar”. Mas Avancini conseguiu nos tirar da novela. Um dia, chegamos para trabalhar e a vila não existia mais. Os personagens sumiram definitivamente. Janete Clair era especialista nisso. Ela havia entrado na Globo para substituir Emiliano Queiroz, que estava escrevendo uma novela na época da revolução, quando todo mundo precisava de trabalho. A novela se chamava Anastácia, a mulher sem destino, e, como Emiliano tem um coração do tamanho do mundo, os colegas pediam: “Me ponha num papel qualquer para eu ganhar algum dinheiro. Há gente passando fome lá em casa”. Era uma situação difícil. E Emiliano foi criando personagens, criando personagens, até que havia mais de 80, e ele não sabia mais para quem escrever. Então, ele pediu a José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Boni, que, pelo amor de Deus, o tirasse da novela. Emiliano estava desesperado e, ao mesmo tempo, com uma dor moral, pois sabia que, a partir do momento em que saísse, outras pessoas iam deixar de trabalhar. Foi quando Janete Clair entrou e disse: “Vamos colocar todos dentro de um navio, levá-los para uma ilha e criar um terremoto”. Ninguém sobreviveu, a não ser um figurante, que ficou com um machado no ar, esperando que alguém abrisse a porta da casa dele. Todo dia, esse cara falava: “Eu não morri, continuo na novela. Quero uma cena para mim”. Vivia enchendo o saco. Nós dávamos força: “Vá lá e peça mesmo!”. Até que um dia fizeram uma cena para o tal figurante: ele empunhava o machado, desequilibrava-se e morria. Então, voltando a O semideus, Janete, especialista em acabar com 80 personagens, não ia acabar com três, numa novela que era dela própria? Triste passagem. Não fiz a novela inteira. Não deixaram. Fique registrado.

Quais eram as particularidades do texto de Janete Clair?
Eu não me aprofundei muito, embora tenha visto todas as novelas dela. Tratava-se de uma pessoa profundamente simples. Você olhava para ela e pensava: “Essa é a famosa Janete Clair?”. Ela vivia escondida, nas sombras. Mas era uma mulher com uma imaginação extraordinária. Até quando ficou gravemente doente, ela conseguiu imaginar e burlar o sofrimento. Tudo isso passava para o trabalho. Você dizia das histórias que ela criava: “Meu Deus, isso não existe!”. Mas você ia lá no fundo e encontrava as histórias, as encontrava nos sonhos. E as pessoas querem sonhar, têm esse direito. Com Janete, todo mundo sonhava.

Fale de O espigão, mais uma novela de Dias Gomes em seu currículo.
Eu considero um dos meus melhores trabalhos em televisão. Meu personagem,
Baltazar, era um professor de botânica que tinha uma tara: adorava o cabelo das mulheres. Ele era profundamente tímido, e fazia parte da família Camará, que morava num casarão no Alto da Boa Vista, um bairro carioca. Suzana Vieira era minha irmã, e havia ainda Wanda Lacerda, Mauro Mendonça, Carlos Eduardo Dolabella. A família se negava a se render a um grande construtor que queria erguer um Rio de Janeiro inteiro na base do cimento, com edifícios em todos os lugares. Como a família não queria sair, o construtor fazia de tudo para que a casa fosse abandonada – até enxurrada de ratos houve. Mas eles insistiam em ficar, porque suas lembranças se encontravam lá. As esquisitices dos personagens estavam em cada quarto. Era uma família que, quando ia dormir, todo mundo fechava a porta e se recolhia às suas fantasias. Atrás de um armário do quarto de Baltazar, estavam guardadas mechas de cabelo com a data em que ele as havia conseguido. Para se ter uma idéia, o personagem era assim: ele estava assistindo a um filme no cinema e, de repente, reparava no cabelo da mulher ao lado. Ele pegava uma tesourinha que trazia no bolso, olhava para um lado, para o outro, puxava o cabelo da mulher e o cortava. Ela gritava: “Meu cabelo! Tem um tarado aqui!”. Baltazar queria fugir, e o povo todo corria atrás. Como era um homem muito bem posto socialmente, professor universitário, ele não podia se mostrar, tinha responsabilidades. E, no final, de um jeito ou de outro, ele sempre escapava. O espigão é do tempo da ditadura, em que a censura era terrível. Mas era uma novela das 22h, uma faixa de experimentações, um horário magnífico que a Globo tinha, no sentido de experimentar assuntos e de se aprofundar muito mais naquilo que era permitido – e no que não era também. Às 22h, os militares deixavam correr um pouco mais solto. O cinema brasileiro derivou para o pornô, porque pornografia era bom, dava uma amenizada nas pessoas. Tóxico também era bom, pela mesma razão: as pessoas ficavam mais calmas, davam menos trabalho, e o poder se constituía mais tranqüilamente. Na televisão, nós sofríamos tremendamente. Havia pressões de todas as formas, em todos os momentos. Novelas deixavam de ser realizadas porque o censor, ou até mesmo sua mulher, achava que aquilo não podia – eram achismos da época. Mas, em algumas ocasiões, nós tínhamos a felicidade de ver passar algumas cenas. Por exemplo: em O espigão, Baltazar, sem ninguém reparar, cortou o cabelo de uma aluna que estava escrevendo no quadro negro. Ele havia sentido uma necessidade extrema de fazer aquilo. Quando a aula terminou, ele, naquele desespero, pegou o carro e foi correndo para casa. Nem jantou, subiu a escada e foi direto para o quarto. Lá, tirou a camisa e, com a câmera o focalizando do umbigo para cima, fez o movimento de masturbação, com o cabelo da menina na mão. Depois, guardou a mecha, colocando a data e o nome da pessoa. Esse personagem conseguiu sobreviver a novela inteira, naquela época tão atribulada. Para ser exato, o ano era o de 1974. Acho que os censores, em Brasília, ficavam um pouco mais tranqüilos no horário das 22h, e deixavam a novela correr. Em O espigão, havia também outras coisas, que mexiam sobretudo com sexo. A personagem de Suzana Vieira, por exemplo, fazia amor com o marido e filmava tudo com uma câmera acoplada à televisão, que transmitia a cena por uma antena coletiva. O prédio inteiro via. Na manhã seguinte, um vizinho perguntava: “A senhora vai bem?”. Todo mundo ficava feliz com as sessões que o casal proporcionava. Também havia isso na novela, e aparecia.

Em 1975, você participou de Gabriela.
Adaptação do livro de Jorge Amado feita por Walter George Durst. A direção era de Avancini – foi, até determinado momento.

Quem era seu personagem?
Eu interpretava o responsável pelo jornal de Ilhéus, um dos freqüentadores assíduos do bar Vesúvio. Era um papel interessante. No elenco da novela, havia atores como Armando Bogus. Ainda guardo uma fotografia de nós todos sentados no Vesúsio. Hoje, só eu estou vivo. É uma pena, pois era gente muito legal, atores ótimos, colegas que agora servem de base para trabalhos meus. Em Tieta, eu tive o prazer de dedicar meu personagem a Rafael de Carvalho, que trabalhava em Gabriela e já faleceu. Ele interpretava um coronel que prendia uma moça em casa. Ele viajava e ela ficava na janela, não podia sair dali. Era uma escrava. Em Tieta, eu fiz meu personagem muito parecido com o coronel que Rafael interpretou em Gabriela.

Depois de Gabriela, você trabalhou em Saramandaia.
Eu era o lobisomem. Saramandaia foi a primeira novela baseada no realismo fantástico. Já existiam livros, como Incidente em Antares, de Érico Verissimo, que abordavam temas fantásticos. Dias Gomes, autor de Saramandaia, se inspirou neles. Havia Dona Redonda, a mulher que estourava de tanto comer, interpretada por Wilza Carla; o coronel de cujo nariz saíam formigas; e o meu personagem, que não dormia e se apaixonava por uma prostituta, Dina Sfat. Nas sextas-feiras de lua cheia, ele virava lobo. Era uma pessoa muito interessante quando estava nessa fase. É engraçado como as novelas de Dias tinham sexo. Era vibrante. Naturalmente, era a única forma de sobreviver naquela época. Todo o restante estava sufocado. Mas abertura para o sexo sempre existiu. Existiu até demais. Fazia-se muito amor durante a ditadura. Acho que as coisas estão mais difíceis hoje em dia. Antes, era mais fácil.

Como você compôs o lobisomem?
Na minha terra, havia a crença de que determinadas pessoas se transformavam em boitatá. O que seria boitatá? É uma bola de fogo que rola no morro, no matagal, na plantação, e que por onde passa deixa um rastro de queimado. Uma vez, nós almoçamos no pequeno sítio onde minha avó morava e, depois de comer, ficamos todos numa varanda grande, como de hábito, olhando a campina que não acabava mais, a montanha que não sumia nunca e a plantação de milho, que já estava na época da colheita. Um senhor que trabalhava para a minha avó tinha por costume ficar conversando conosco. Mas, nesse dia, ele se sentiu mal e foi se deitar num curralzinho que havia, num paiol. Da janela do curral, saiu uma bola de fogo. Isso às 17h, dia ainda. A bola de fogo saiu e foi rolando, passou pelo milharal, foi indo, indo, indo. Deixou um rastro grande de queimado, depois nós vimos. E começou aquela história: “O senhor fulano é boitatá! Vamos lá ver!”. Quando fomos ver, ele estava deitado em cima do feno, dormindo, quieto, parado. Mas a bola de fogo existiu. De onde veio aquela maldita bola? E não fui só eu que vi, todos viram – tanto que fomos atrás. Havia gente à beça. Lembrando esse episódio, eu pensei: “Ser um homem que vira lobisomem, em plena sexta-feira, é tão parecido com aquele cara”. Eu sempre achei a desgraça muito engraçada. Outro dia, vi uma senhora gorda descer do ônibus, escorregar numa casca de banana e cair parecendo uma almofada, sem que ninguém se importasse em ajudá-la a levantar. Quando decidiram ajudar, quanto mais tentavam erguê-la, mais ela escorregava, porque a casa de banana tinha cismado de ficar no calcanhar dela. Foi uma desgraça, coitada. A mulher devia ter ido direto para um hospital. Mas eu achei engraçado, interessante.

Tragicômico.
Sim. Então, retomando a pergunta sobre o lobisomem, eu me inspirei naquele senhor que trabalhava no sítio da minha avó. Acreditei que era uma bola de fogo.

Você se lembra de alguma cena marcante do personagem?
Eu me lembro de quando Dina Sfat, que era a dona do prostíbulo, descobria que ele tinha algo de diferente e, na sexta-feira, resolvia prendê-lo. Na hora em que ele ia sair para se transformar, meia-noite, ela disse: “O senhor não sai daqui, professor! Vai conversar comigo”. A única alternativa dele foi se atirar pela janela, do segundo andar. Ele caía em pé, se levantava e ia caminhando, até que virava cachorro. Dava uma trabalheira desgraçada.

Como essas cenas eram gravadas?
Nosso maquiador era Eric Rzepecki, um profissional de fama internacional. Eric maquiou Elizabeth Taylor no filme Cleópatra. Ele era polonês, e nos contava histórias ótimas da Europa. Era de uma capacidade extraordinária. Sua maquiagem era profundamente artesanal. Não havia computadores como hoje. O filme 300, por exemplo, é todo por computador, com chromakey. Rodrigo Santoro está com o corpo do tamanho de um boi, tudo aumentado. Vai chegar a época em que os atores não serão mais necessários.

Será?
Do jeito que o mundo vai... Já existe até repórter virtual no Fantástico. Aprimorado, aquilo pode ficar bem interessante. Nós já fizemos experiências desse tipo na Globo. O diretor Roberto Talma fez a experiência de inserir cenários através de computação. Nós trabalhávamos na frente, e os cenários entravam depois, montadinhos. Mas esse é um outro assunto, para outras pessoas. Eu espero que isso só aconteça daqui a 50 anos. Não que eu queira viver tanto, mas é que há muita gente querendo ingressar na profissão, e é preciso dar chance para eles trabalharem.

Além da maquiagem, existia algum efeito?
Era necessário colocar pêlo por pêlo, com uma cola alemã, de borracha. Para diminuir o sofrimento, comecei a dar uma de malandro. Falei: “Vamos botar pêlo somente onde aparece”. Era um processo dificílimo: punha-se um pouco de pêlo, gravava-se um quadro; mais um pouco de pêlo, outro quadro; mais pêlo, um terceiro quadro; e assim por diante, até que se juntavam todos os quadros. O processo era bem artesanal, mas eu virava um cachorro perfeito. Claro que, se você for observar, verá que a movimentação era em câmera lenta. E havia outra coisa: antes da etapa da cola, derramavam um saco de cimento no chão, e eu me espojava no pó, como se um animal estivesse saindo de dentro de mim. Dali surgia o cachorro. Eu ficava todo empedrado, entrava cimento pelo nariz, por tudo que era lado. Ninguém tinha o cuidado de botar um algodão na orelha, nos outros lugares. As gravações eram feitas no bairro de Guaratiba, e não havia onde tomar banho. Geralmente, essas cenas ficavam para o final, e todo mundo queria ir embora por causa dos mosquitos. Eu voltava para Copacabana todo cheio de cimento. Depois de tomar banho, eu podia aproveitar a massa para arrumar um azulejo ou outro.

Fale um pouco mais dos efeitos especiais naquela época.
Fazíamos chuva com regador. Mas Boni não gostava muito dessa história. Dava demissão. A chuva tinha que ser com mangueira de bombeiro. Só que era muito divertido fazer com regador, e nós fazíamos sempre. Derramávamos a água do regador na frente da câmera e ficávamos atrás. Era igual a chuva, perfeito. Depois, a sonoplastia punha trovoada. A verdade é que, às vezes, não havia outra maneira de fazer. Os efeitos especiais eram extremamente rudimentares. Mais tarde é que foram se sofisticando. Naquela época, em cenas de briga, por exemplo, de bofetada, nós apanhávamos para valer. Num quebra-quebra que houve em Gabriela, quando os coronéis mandaram destruir o prostíbulo da personagem de Eloísa Mafalda, Avancini falou para a figuração quebrar todos os espelhos das paredes. Havia figurantes que eram do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), gente que estava imiscuída na Globo para saber o que se falava e o que não se falava. Era um horror. Só podíamos falar bem do governo. Mas, continuando, eu pensei: “Esse pessoal não tem técnica nenhuma. Na hora em que Avancini disser ‘quebrem’, vão começar a quebrar os espelhos de qualquer maneira. Com lasca de espelho para tudo quanto é lado, o que vai ser de nós?”. Combinei com Armando Bogus: “No que começar o quebra-quebra, vamos para debaixo da mesa. E de costas, porque, se entrar alguma coisa, entra nas costas. Na cabeça, não. Assim, ninguém se machuca”. Quebrou-se tudo. Como sempre, Avancini deixou a coisa rolar um pouco mais solta – porque não estava lá dentro. A verdade é que ele queria que tudo ficasse perfeito. Eu é que estou de mau humor com ele hoje.

O que você destacaria na obra de Dias Gomes para televisão?
Quando recebo os capítulos de uma novela, tenho o hábito de destacar minhas cenas conforme vou lendo, uma por uma. Às vezes, nem leio o capítulo todo, porque não dá tempo. Já os capítulos de Dias, nós guardávamos em álbuns ou pastas. Eram verdadeiras obras-primas. As cenas vinham com todos os cortes possíveis e imagináveis, não havia nada sobrando no diálogo. O que estava escrito era o que era para ser dito. As falas se encaixavam na boca de cada personagem. Líamos uma vez e a memória registrava. Eu tenho uma memória difícil, auditiva: tenho que ler, ler, ler muito para decorar. Não sou como outros atores. Antônio Fagundes, por exemplo, olhou, fotografou, decorou. Mas, com Dias Gomes, eu não precisava reler tanto, porque dava uma lida, repetia uma vez e já sabia. Pela maneira como ele escrevia, meu personagem falava pela forma das palavras. Dias era um autor extraordinário. Tinha um humor e um modo de ver a vida fantásticos. Ele era implacável, não perdoava o ser humano. Não que tivesse ódio do ser humano. Dias colocava as virtudes lá em cima, mas também destacava as fraquezas. Politicamente, era um sujeito engajado, quer dizer, tinha uma visão do que queria, dentro do país em que vivia. A visão era a melhor possível, sobretudo para os mais desamparados, os menos favorecidos, que eram seus grandes personagens, os anti-heróis, figuras do cotidiano, que pegavam no pesado. Eram pessoas que demoravam muito para obter o que não tinham, pessoas que se agarravam desesperadamente aos sonhos, o que nem sempre era suficiente. Mas ficava aquela esperança de que, um dia, as coisas aconteceriam. Para os mais crédulos, era sempre um olhar para o céu, um pedido para o santo da sua veneração. Que pena que Dias mandou o taxista entrar na contramão! É realmente um pena. Ele pediu para o motorista virar, fazer uma manobra na Avenida Nove de Julho e acabou morrendo. Enfim, é a vida.

A Saramandaia, seguiu-se À sombra dos laranjais.
Acho que foi a primeira vez em que trabalhei numa novela dirigida por Herval Rossano. Eu interpretava um sujeito de muito boa família que resolvia seguir um circo. Ele se transformava em palhaço e ia embora.

Era uma história parecida com a sua.
Era. Meu personagem era muito triste. Ele tinha um problema seriíssimo: amava uma mulher, interpretada por Monah Delacy, e não conseguia esquecê-la. A família dele era muito opressora. Como um palhaço com tantas mágoas, com tanta dor, era capaz de alegrar tanta gente? Originalmente, À sombra dos laranjais era uma peça de teatro, montada por uma atriz interessantíssima, Iracema de Alencar, sobre a qual as pessoas não falam mais. Ela foi tão importante como Procópio Ferreira, como tanta gente. Mas ficou um pouco esquecida. À sombra dos laranjais foi uma novela muito bonita.

Qual foi sua novela seguinte?
Nina, escrita por Walter George Durst e dirigida por Fábio Sabag. Foi a estréia de Maria Zilda Bethlem. Foi comigo que ela estreou. Em Nina, meu personagem, Fialho, fazia cinema – isso na década de 1920. Era mais um hobby do que uma profissão, mas ele pretendia que fosse uma profissão. Usava os amigos para filmar as cenas que queria, e vivia sempre duro. A mulher arranjava dinheiro para ele. Acho que não há mais registro dessa novela na Globo. Várias coisas se perderam. De Saramandaia, por exemplo, há pouquíssimo material, e era uma novela tão linda em termos de cores.

Aproveitando que tocou no assunto, você acompanhou a chegada da cor?
A cor chegou à televisão em 1972, com a transmissão da abertura da Festa da Uva daquele ano. O presidente estava lá. Acho que era Médici, mas não tenho certeza. Eu me lembro do nome dos presidentes do tempo da revolução, mas não do período em que governaram. Às novelas, a cor chegou em 1973, com O bem-amado.

O que mudou para os atores?
A cor muda tudo, até o impacto das cenas. Eu não sou contra a cor. Acho, inclusive, que é uma coisa boa. Mas uma cena dramática em preto-e-branco tem um impacto; em cores, tem outro. A cor ameniza o impacto, mas embeleza. É como o plástico, que é a grande tragédia do mundo. Depois que o plástico foi criado, as coisas se modificaram. Com o plástico, o mundo ficou mais lindo, mais colorido. Porém, o plástico é altamente nefasto. Eu não quero dizer com isso que a cor na televisão seja nefasta. Não é. Quero dizer apenas que o impacto diminui, fica menos acentuado. Eu prefiro ver filmes dramáticos em preto-e-branco, como, por exemplo, Sindicato dos ladrões, com Marlon Brando. Em cores, o filme teria outras características.

Como foi seu trabalho em Dancin’ days?
Ótimo. Era uma novela de Gilberto Braga. Acho que Daniel Filho e Dennis Carvalho dirigiam. A protagonista era Sônia Braga, maravilhosa. Eu já havia feito Gabriela com Sônia. Em Gabriela, era para a personagem-título ter sido interpretada por Marina Montini, aquela mulata que era modelo do pintor Di Cavalcanti. Boni não queria Sônia Braga de jeito nenhum. Ele achava que o papel tinha que ser feito por uma morena, que simbolizasse o cravo, a canela. Mas Eric Rzepecki deu um jeito em Sônia, pintou-a de toda maneira. Quando levaram a fotografia para Boni, ele perguntou: “Mas que mulher linda é essa?”. E Marina Montini dançou.

Em Dancin’ days, que papel você fazia?
Eu era um sujeito que tinha uma sauna em Copacabana. Ele adorava cachorro, andava com cachorro para todos os lados, e era apaixonado por Júlia, personagem de Sônia Braga. Ele a bancava na esperança de que, um dia, ela entendesse que ele realmente a amava. Mas isso não acontecia, porque ela gostava era de Antônio Fagundes. Quem é figurante jamais chega a galã. Figurante é exagero, coadjuvante.

Depois, você trabalhou em Memórias de amor.
Uma ótima novela, adaptação do romance O ateneu, de Raul Pompéia. O elenco tinha Jardel Filho, maravilhoso. É uma pena que Jardel não esteja mais aqui. Que pessoa admirável, que temperamento, que ator! Ele parecia um vulcão, no trabalho e na vida pessoal. Quando ele gostava de você, ele o olhava de um modo que não havia como não dizer: “Poxa, como sou atraente, como sou bonito!”. Ele botava você no auge. Mas, quando odiava a pessoa, ele a arrasava. Jardel tinha muita força. Deus deu uma força extraordinária àquele homem.

Vocês contracenavam nessa novela?
O tempo todo. Contracenamos em Memórias de amor, em Assim na terra como no céu, em Verão vermelho. Em Memórias de amor, eu era um professor. Naquela época, tínhamos a possibilidade de fazer muitos tipos, personagens com apliques, cavanhaques, perucas, com elementos para composição. A câmera não era tão implacável como hoje, tão detalhista quanto à luz. Atualmente, isso não é mais permitido, porque se faz cinema na televisão. Na verdade, ainda se compõem tipos, mas de uma forma muito mais aprimorada. Eu vivia insistindo para usar perucas, mas ninguém consentia. Eu colocava peruca e Boni me mandava tirar. Na cabeça dele, peruca não funcionava. Mas, em Memórias de amor, meu personagem usaria peruca. Ele era um professor de literatura muito preocupado com seu trabalho. Lia demais e se esquecia das coisas. Pensei: “Vou fazer esse professor como uma pessoa que, de tanto cuidar da parte intelectual, acaba se esquecendo do físico. Ele não se lembra de tomar banho, troca um belo jantar por uma noite de leitura. Vive num mundo de fantasia, e de lá não sai. Ele é descuidado, e usa peruca. Um dia, bota a peruca ao contrário, porque está atrasado. Havia ficado lendo muito à noite e tinha acordado tarde. Nesse dia, os alunos o ridicularizam, e ele passa a ser como um espantalho, uma coisa assim. Todo mundo vai assistir às suas aulas não pelos conhecimentos que ele transmite, mas por sua aparência”. Eu pensava: “Vendo tudo isso, o autor vai criar pelo menos uma cena em que o professor se desespera diante dos alunos e mostra um lado que nunca mostrou”. Eu não sabia o que podia acontecer com o personagem – algo dramático. Em novela, conforme você trabalha, a história vai se abrindo. Até hoje é assim. Não trabalhamos para os autores, trabalhamos mais em função dos grupos de discussão que analisam o nosso trabalho. Um exemplo disso é Paraíso tropical. A novela começou muito bem, mas, como o ibope era menor que o da anterior, acharam que se deveria antecipar o processo de formar núcleos de discussão para colher a opinião dos espectadores. Onde vão fazer isso? Em São Paulo. Por quê? Porque é onde está concentrado o maior público. Então, reúnem dez, 20, 30 pessoas que vêem televisão, e fazem uma enquete. Perguntam: “O que você acha de Ary Fontoura?”. E ouvem: “Uma vez, eu o encontrei na Rua Augusta, e ele nem me olhou. É antipático, igual ao personagem que está fazendo”. Ou perguntam: “O que acha de Camila Pitanga como prostituta?”. E ouvem: “Rebola demais! Novela das 20h, meu filho assiste”. Então, vão decidindo o que modificar em função dos grupos de discussão. O trabalho passa a ser monitorado pelo público. Antes, não era tanto assim, porque os autores seguravam: “Minha obra é essa! Se quiserem, façam; se não quiserem, não façam!”. Hoje, não. A obra não pertence a quem a entrega, pertence ao público, pertence à emissora, que precisa sobreviver, precisa vender. Não dá para brincar. Todo mundo tem que receber seu dinheiro. As pessoas que trabalham nessa área entendem isso, e sabem muito bem o que interessa à organização que as emprega.

Em sua opinião, então, a novela é uma obra aberta?
Para mim, sempre foi. Eu não fecho os meus personagens, vou dando a minha contribuição devagarzinho. O autor está vendo, está escrevendo, e pensa: “Ele me deu uma deixa. Acho que vou aproveitá-la”. Se você fechar o personagem nos primeiros capítulos, adeus. Eu deixei o professor de Memórias de amor em aberto para que o autor aproveitasse. Mas aconteceu o seguinte: gravaram dez capítulos e, quando foram ver, antes de colocar no ar, me chamaram. Eu estava passando o carnaval em Curitiba com minha família. Recebi um telefonema urgente de Walter Avancini: “Venha imediatamente. Nós vamos gravar no carnaval, e você sabe muito bem a razão: sua intransigência em usar peruca. Eu estou desesperado, vou ter que arrumar tudo. Pegue um avião que, depois, nós o reembolsamos”. Vim correndo para o Rio, e refizemos tudo o que tinha sido feito. A peruca desapareceu, como tudo mais que eu havia pensado para o personagem. A sobrevivência conduz você, lhe dá uma capacidade criativa extraordinária. Quando você pensa que seu estômago está se esvaziando e que não vai ter o que colocar lá dentro, honestamente, você se torna criativo. Uma folha de alface é dividida em quatro, um tomate, em várias rodelas, e o seu trabalho passa a existir em função daquilo que os outros querem. Não há outra alternativa.

Numa trama que precisa ser modificada ao longo do tempo, de que forma as orientações para a construção do personagem chegam ao ator?
Às vezes, vêm indicações assim: novela Uma rosa com amor, personagem Afrânio, um garçom. Nem o autor sabia o que faria com aquele homem. Se você é um ator criativo, pensa: “Meu trabalho tem que aparecer de uma maneira ou de outra”. E começa a dar subsídios para o autor através do seu próprio trabalho – para não ficar telefonando, coisa que os autores odeiam. Muitos atores ainda telefonam: “Pelo amor de Deus, o que vai acontecer com o meu personagem?”. Apesar de tudo, a televisão não evoluiu em determinados aspectos. Ela sempre foi uma indústria. Nós gravamos 35 cenas por dia – isso, inclusive, chegou ao cinema brasileiro. Em cinema, antigamente, você filmava uma página e meia por dia. Mudava uma câmera, acertava um ângulo aqui, outro ali, e aquela página e meia era ensaiada, ensaiada, ensaiada. Você ficava 12h, 14h no set só pensando naquilo. Quando chegava a hora de filmar, você estava provido de uma infinidade de subsídios para realizar o trabalho da melhor forma possível. Em novela, se você não chegar quase pronto, não acontece. Como ensaiar 35 cenas, com 70 atores, num expediente que começa às 8h e termina às 20h? É uma fábrica. O apito toca para começar, toca para o lanche, toca para voltar e acabou. Em minissérie, é diferente: o trabalho é fechado. Me parece que ela vem inteira, com princípio, meio e fim. Você já sabe o que vai fazer. Não precisa ter medo. É como em uma peça de teatro. Por que os atores adoram teatro? Porque existe princípio, meio e fim, e porque não haverá uma interferência muito grande. O diretor pode até indicar formas de fazer, indicar rumos, mas será sempre menos do que em uma novela. Uma novela é uma bíblia: cada capítulo tem 45 páginas; 200 capítulos, 9 mil páginas. São dez meses de trabalho. Como organizar isso de tal maneira que você possa fazer a grande cena da sua vida? Você escolhe: “São 35 cenas, e eu vou fazer essa aqui. Essa vai ficar boa”. As outras 34, você faz de acordo com o figurino. Pode ser diferente? Não. Só aqui é assim? Não. Se você for trabalhar no México, na Televisa, a única facilidade que há é o teleprompter. Os atores mexicanos sempre trabalham com um olho no colega com quem estão contracenando e outro olho no texto do teleprompter. Lá, é proibido decorar.

Em 1979, você fez parte do elenco de Marron-glacé, de Cassiano Gabus Mendes.
A novela se passava num bufê. Todos os dramas surgiam a partir dali. Acho que eu era casado com Lady Francisco. Os bufês estavam na moda. Era uma novela rápida, muito bem-feitinha, agradável, e tinha tudo o que estava da moda. Terminava com um desfile de moda, em que um cantor se apresentava, e nós aplaudíamos. As histórias eram muito corriqueiras, do cotidiano. Marron-glacé era bem escrita e divertida. Cassiano era um excelente autor. Em 1980, fiz outra novela dele, Plumas e paetês, também na faixa das 19h, e era a mesmíssima coisa: tudo muito bem-feito, personagens bem construídos, situações variadas. Para o horário das 19h, estabeleceu-se que as pessoas chegavam em casa cansadas do trabalho e gostariam de ver algo mais ameno durante o jantar, queriam se divertir. Mudando um pouco de assunto, eu acho importante dizer que, na minha opinião, a Globo é uma organização extraordinária. Por quê? Vamos pelo lado mais agradável: aquilo que você usufrui do seu próprio trabalho, ou seja, o seu sustento. Nos 40 anos em que estou na emissora, nunca meu ordenado atrasou – em nenhuma ocasião. Mudou o regime, houve problemas seriíssimos, bancos foram fechados. O salário nunca atrasou. É extraordinária a dignidade com que as pessoas têm sido tratadas no tocante a pagamentos, a compromissos assumidos. Isso é bonito de se saber, porque tem um significado muito mais amplo, de valorização do ser humano. É claro que, como em toda grande indústria, em todos os lugares do mundo, há injustiças, há fatores extremamente injustos. Mas o que mais aprecio é essa conduta, essa relação entre empregado e empregador. E aprecio também a vontade de crescer e de fazer o melhor. Não foi à toa que chegamos a ser os primeiros – e somos os primeiros. O nosso know-how em termos de teledramaturgia não encontra paralelo no mundo inteiro. Encontra na BBC, da Inglaterra, mas não com a mesma velocidade, nem com a mesma medida justa das coisas, nem com o caráter tropical, caliente, que a nossa televisão tem. Isso tudo graças aos realizadores, às pessoas que cresceram na Globo, que evoluíram, que transformaram a emissora na grandiosidade que é, respeitada em todo o mundo. Esta é uma declaração muito justa. Eu me sinto confortável em falar, porque ganho muito bem, sempre fui bem tratado. Então, não se trata de uma reivindicação, trata-se de um elogio – de um elogio de coração. E não é puxa-saquismo, porque tenho contrato por muitos e muitos anos ainda. Não preciso de nada.

Logo após Plumas e paetês, você participou de sua primeira novela de Sílvio de Abreu, Jogo da vida.
Eu interpretava Celinho. Ele tocava flauta e era casado com a personagem de Suely Franco. Nossa filha era Maitê Proença, eu acho. Sempre faço confusão com Guerra dos sexos, em que eu também era pai de alguém. Em Jogo da vida, ou era Maitê, ou era Lucélia Santos. Eu era pai de uma das duas. <{Não consegui confirmar.>} Celinho morava em Catanduva, interior de São Paulo. Ele tinha uma amante dos tempos em que tocava flauta na banda de uma companhia de teatro de revista. Acho que a amante era Íris Bruzzi. Celinho é um desses personagens que me dão para criar. Eu fiz um sujeito de hábitos muito simples, que vivia numa cidade pequenina com a família. Não foi marcante. Sílvio de Abreu sempre primou pelo melhor, e o humor era excelente, mas acho que Guerra dos sexos, também dele, foi uma novela muito mais interessante que Jogo da vida.

Em Guerra dos sexos, que papel você fazia?
Eu era Dinorá, um homem que tinha nome de mulher. Ele era marido da personagem de Yara Amaral e irmão da personagem de Glória Menezes.

Como você construiu o personagem?
Acho que nem fui eu que construí personagem nenhum, porque havia um figurinista, Marco Aurélio, já falecido, que tinha o seguinte hábito: para criar a roupa, ele desenhava personagem por personagem. Então, quando você chegava, já vestia o personagem – por fora já estava tudo certo. Marco Aurélio ficava olhando e dizia: “Ponha esses óculos. Agora, essa boina”. Depois que você botava os óculos e a boina, ele chamava o maquiador Eric Rzepecki: “Corra aqui! Ponha um bigode nele!”. Colocado um bigodinho, o personagem estava pronto. Você o compunha de fora para dentro, e não de dentro para fora. No caso de Dinorá, ele só tinha uma peruca. Finalmente, consegui colocar uma peruca. Ninguém queria, mas eu coloquei. Dinorá era nervoso. Quando a mulher estava para dar à luz, ele andava pela maternidade, roendo as unhas e coçando o cabelo. Daí, a peruca virava, ficava com franja. A parte de trás passava para a frente. Alguém comentava, e Dinorá ajeitava a peruca. Isso era muito engraçado, o público adorava. E eu me senti vitorioso, pois consegui fazer um personagem com peruca. Às vezes, temos que batalhar para conseguir algo.

Antes de Guerra dos sexos, houve Paraíso, em que você interpretou o padre Bento.
A novela era de Benedito Ruy Barbosa, e tinha Kadu Moliterno como galã. Bento era um padre que jogava sinuca. Certos personagens, como advogado, promotor e padre, devem ser evitados. Vou explicar por quê. Padre nunca tem cenário. Almoça e janta na casa dos fiéis, reza missa na igreja a toda hora, vai à sacristia, sai à rua para arranjar oferendas para as festas. Resultado: está em todas as locações. Padre Bento me cansou não pelo que o papel requeria, porque o papel era fácil: coloquei um sotaque italiano na voz, que foi o que pediram, e usei um pouquinho do latim que tinha permanecido na cabeça. O que me cansou foi que eu andava para um lado e para outro. Era casamento na fazenda, crisma, batizado. Durante 195 capítulos, o padre esteve em tudo quanto foi lugar, na cidade inteira. Inauguraram o aeroporto do lugar, lá foi o padre benzer. Eu não saía de cena, não parava de trabalhar. Padre, acho que só fiz um em televisão. Pelo que me consta, só esse. Promotor e advogado de defesa também são um problema, porque tudo termina no julgamento final. Então, nos três ou quatro últimos capítulos, o ator tem que falar cada texto gigante. Tem que descrever todo o processo. Haja memória! Você decora em cinco capítulos o que não decorou em 170. Deus me livre! Não, desses papéis não gosto. Médico até que vai.

Que novela se seguiu a Guerra dos sexos?
Amor com amor se paga, uma novela marcante na minha vida.

Você era o protagonista?
Sim, eu interpretava seu Nonô. A novela é de 1984, mas parece que foi feita ontem – ou que está sendo feita hoje. O personagem teve, e ainda tem, uma receptividade muito grande. Se tivesse que mudar de nome, eu me chamaria seu Nonô. Todo mundo me chama assim na rua. Há pouco tempo, estive com uma peça em cartaz em São Paulo, e as pessoas vinham conversar comigo: “Sabe qual é o apelido do meu pai? Seu Nonô. Ele é muito pão-duro. Tranca a geladeira”. A novela era escrita por Ivani Ribeiro, com base em um argumento que tem 350 anos: a peça O avarento, de Molière. Que poderio tem essa história! Até hoje é assim. Foi o maior sucesso popular que tive na Rede Globo e na minha carreira televisiva. Não houve igual.

Qual foi a repercussão da novela?
Não dá para imaginar. Na época, até que não foi tão grande assim, ou eu pensava que não, porque a novela era exibida às 18h da tarde, um horário maldito, em que as pessoas estão saindo do trabalho, estão saindo da escola. É um horário um bocado seletivo. As pessoas pegam o capítulo da metade em diante, vêem um pouquinho. Depois, a novela foi reprisada em Vale a pena ver de novo. Amor com amor se paga foi uma novela das 18h que teve receptividade de horário nobre. Igual, para mim, só Roque Santeiro, vista por 80 milhões de brasileiros no último capítulo.

Você destacaria alguma cena marcante de Nonô?
Cenas de Nonô? Foram 155 capítulos, e ele era um personagem que não saía de cena. Essa novela já tinha sido feita antes na TV Tupi, mas sem a receptividade que teve na Globo. Na Tupi, chamava-se Camomila e bem-me-quer, e era escrita pela mesma Ivani Ribeiro. Eu me lembro de uma passagem interessante de Nonô: ele adotava um menino de rua. Todo o tesouro de Nonô ficava num aposento secreto, ao qual o personagem tinha acesso por uma entrada falsa. Ele apertava um botão, a música de fundo subia e a biblioteca dava passagem a um lugar em que só ele entrava, onde estava guardado tudo o que tirava das pessoas. Ele era dono da cidade inteira, era avarento, só pensava em dinheiro. Mas tudo começava a mudar com a vinda do garoto, porque ele quebrava a casca de Nonô, que passava a fazer tudo pela criança. O menino descobria o tesouro, e só os dois brincavam no aposento secreto. Então, vendo o que acontecia na casa, e ajudado pela empregada, o garoto começava a chantagear Nonô. Para não contar onde estava o tesouro, o menino pedia que Nonô não maltratasse mais os filhos, insistia para que ele melhorasse e, assim, ia construindo um novo ser humano. E Nonô tomava consciência disso. Nesse ponto, a novela e a peça diferem, porque, na peça, o personagem continua avarento. Na versão de Ivani, ele se humanizava, e o menino ia embora. Trocava Nonô por uma camisa do Flamengo. Esse foi um grande momento do personagem e da novela. Vou contar como aconteceu. O diretor era Jayme Monjardim, num de seus primeiros trabalhos de direção. Ele sempre procurava fazer o melhor, mas me pegou numa fase muito estressada. No quarto mês de novela, eu liguei desesperado para Ivani Ribeiro e pedi que ela diminuísse meu papel, porque não estava mais agüentando, de tanto que tinha que decorar.

O que Ivani respondeu?
Ela disse: “Em toda a minha carreira, é a primeira vez que alguém me liga para diminuir o papel. As pessoas ligam para aumentar”. Eu falei: “Não agüento mais, estou insuportavelmente estressado. Eu não durmo mais, não me alimento bem, estou com problema de úlcera. Não consigo dar conta do texto”. A novela vinha em blocos de 15min, como na TV Tupi, quando não havia como emendar, como editar. E tocava a fazer: primeiro bloco, eu trabalhava todo; segundo bloco, trabalhava todo; terceiro bloco, trabalhava todo. Todos os personagens visitavam Nonô, e Nonô visitava todo mundo. Não dava. Então, me tiraram aquilo de que eu mais gostava, que eram as externas em Teresópolis, região serrana do estado do Rio. Eu adorava ir para lá, onde ficava três dias da semana, com aquele frio. Aquilo me renovava. Quando voltava para o Rio para gravar as cenas de estúdio, eu estava muito melhor. Mas me tiraram aquilo. Mesmo assim, agüentei até o final. Na cena da despedida do menino, porém, Jayme Monjardim me pegou num momento em que eu estava muito nervoso, muito tenso, fora do meu normal. Eu disse a ele: “Jayme, o texto tem uma página. Eu vou ter que chorar na despedida, vou ter que contar a história toda. Pelo amor de Deus, coloque umas quatro câmeras aí na frente, tudo o que nós tivermos, para eu fazer de primeira e não precisar voltar”. Era o fim do dia, e eu já havia gravado não sei quantas cenas. Jayme falou: “Está bem, Ary, vamos fazer”. O cenário era cheio de prataria, de bijuterias, de aparelhos de televisão. Tudo o que Nonô tirava das pessoas, ele incorporava ao seu tesouro. Fiz a cena com o microfone parado lá no alto e com as câmeras todas. Acho que foi uma das melhores cenas que fiz na vida. Veio construída do fundo de mim. Eu estava cansado, meu estado físico não dava para nada e minha vida particular estava toda complicada. Estava tudo dando errado. Eu estava iniciando um relacionamento, gostando de uma pessoa, mas não podia vê-la, porque não conseguíamos nos encontrar. Era uma pessoa muito exigente. Eu pensava: “Por que, de repente, tudo caiu em cima de mim?”. Foi por causa daquela cena. É loucura, mas, às vezes, temos o direito de ser loucos. Botei toda a culpa na cena. Nonô tinha feito uma amizade tremenda com o garoto, havia proporcionado a ele uma vida diferente, o tinha tirado da rua, trazido para um lar, dado do bom e do melhor. Toda a sua estrutura de ser humano havia se modificado. Aquilo me amoleceu totalmente. Eu, que não chorava nunca, que sorria por dentro quando via as pessoas chorando, estava sendo tocado por uma criaturinha que havia chegado e realizado tudo aquilo. E eu fiz a cena. Um dos câmeras começou a tremer. Ele estava chorando. Eu nunca havia presenciado um silêncio como aquele dentro do estúdio. Se uma mosca voasse, qualquer ruído, se ouviria. Nunca tinha visto tanto respeito por um ator que estava fazendo seu trabalho no final de um dia cansativo. Todo mundo morava longe, queria ir embora para o seu lar. Nunca tinha visto um profissionalismo tão grande como naquele momento. Quando terminou, eu ainda continuei um pouco na cena, para dar tempo de corte, caso quisessem fazer alguma coisa mais. As lágrimas brotaram, todo o sentimento veio. No final, o estúdio inteiro aplaudiu. A gravação demorou 10min, de uma enfiada só. Eu estava cansado. Então, Jayme chegou no estúdio: “Ary, tenho uma má notícia para lhe dar. A cena não valeu”. Falei: “Não valeu? Mas são 10min de cena! Quanto tempo não valeu?”. Ele disse: “Não valeu desde o princípio”. Eu quis saber: “E por que você não cortou?”. Jayme respondeu: “Porque deixei você ensaiar”. Perguntei: “E você acha que vou conseguir repetir tudo isso com a mesma emoção?”. E ele: “Você é que sabe”. Falei: “Eu é que sei não. Sou um ator dirigido, nunca vejo um trabalho meu, mas quero saber onde está o erro da cena. Em cento e tantos capítulos, é a primeira vez que vou ver uma cena minha. Honestamente, eu quero ver, porque, de acordo com minha autocrítica, que não é das melhores, mas que hoje apareceu de maneira mais forte, eu fiz uma cena muito boa, que não vou conseguir repetir. Então, pelo amor de Deus, me deixe ver a cena”. Vi a cena. E qual era o defeito? No alto, aparecia um microfone, prateado, pequenino, redondo, perto de uma taça de cristal e outra de prata. Perguntei: “Esse é o defeito?”. E Jayme: “É”. Eu disse: “Ah, não, me desculpe. Boa noite! Tchau!”.

E a cena valeu?
Não sei até que ponto Jayme me perdoou, mas eu não o perdoaria se tivesse que fazer a cena novamente. Se um microfone aparece, é um defeito técnico. Só que apareceu logo no início, e Jayme poderia ter parado a gravação. O problema foi que viram apenas no final, na revisão. Mas repetir só por causa do microfone? Então, a cena não valeu nada? Às vezes, é preferível que valha uma cena suja do que uma cena muito limpinha, com tudo certinho, com tudo valendo para a equipe técnica – mas não valendo para o ator. No cinema, na televisão, sempre trabalhamos para que a imagem esteja perfeita, porém nossa emoção some. Chico Anysio diz: “Eu não gosto de repetir as cenas, porque me foge a primeira emoção”. E é verdade. Emocionar-se e emocionar os outros é a grande batalha do ator.

Um ano após Amor com amor se paga, você trabalhou em Roque Santeiro.
A novela fez um sucesso extraordinário. Parou Portugal quando foi exibida lá. Eu estava em Lisboa. E parou o Brasil também. Como eu já disse, o último capítulo foi assistido por 80 milhões de brasileiros. Nos 50, 60 anos que tenho de carreira, nunca fui visto por tanta gente. Roque Santeiro era escrita por Dias Gomes e por um autor maravilhoso que surgia, Aguinaldo Silva. Infelizmente, os dois se desentenderam em alguns pontos, aos quais não tivemos acesso. Ambos são excelentes. Talvez tenha havido um choque, mas só tivemos acesso ao resultado – ao fantástico resultado de Roque Santeiro, uma novela de dois grandes autores.

Em 1986, você fez Hipertensão, de Ivani Ribeiro.
São tantas novelas. Se somar, são 40 e poucas. Hipertensão tinha Cláudio Corrêa e Castro, Paulo Gracindo e eu. Nós interpretávamos três velhos que andavam à procura da filha, personagem de Maria Zilda Bethlem. Foi a estréia de Antonio Calloni na Globo. Ivani Ribeiro era uma excelente autora. Em termos de qualidade e na forma de ser, era muito semelhante a Janete Clair. Elas eram as rainhas dos ganchos para o dia seguinte. Novela é despertar no espectador o interesse de assistir no dia seguinte. Quanto mais ganchos, maldades e problemas houver para solucionar no outro dia, melhor. Sempre dá certo.

Conte um pouco de Bebê a bordo, novela de 1988.
O autor era Carlos Lombardi. Eu tinha um ótimo papel, e contracenava com Dina Sfat. Foi o último trabalho dela, que faleceu de câncer. Meu personagem era Nero, um ator desempregado que vivia do passado. Ele tinha envelhecido, não tinha se renovado através do tempo. Havia continuado um ator exagerado, vaidoso, sempre almejando retomar a carreira. Acho que o personagem poderia ter sido mais aprofundado, mas a novela era muito bem escrita. Lombardi é um bom autor. Eu o conheço desde os tempos de Vereda tropical, que ele escreveu junto com Sílvio de Abreu. Depois, naturalmente, Lombardi se emancipou e teve oportunidade de mostrar ainda mais seu trabalho. Em seu gênero, ele é imbatível.

Em Tieta, você interpretou o coronel Artur da Tapitanga.
Eis um personagem pronto, calcado no livro Tieta do agreste, de Jorge Amado, com todos aqueles coronéis. Foi quando fiz a homenagem a Rafael de Carvalho, em quem me inspirei para compor o personagem. Tieta era uma excelente novela, na qual a mão do autor, Aguinaldo Silva, estava muito presente. Ele é muito imaginativo, um sujeito formidável. Aguinaldo inventou uma série de coisas, como as rolinhas, meninas a quem o coronel Artur dava abrigo em troca de favores sexuais. A idéia era inspirada nas Mil e uma noites. Uma das rolinhas, que tinha sido marcada pelo coronel para ser possuída por ele, contava histórias e conseguia fazer o velho se interessar por aquilo. Assim, se reeditava uma espécie de Sherazade, personagem das Mil e uma noites. A continuação das histórias sempre ficava para o dia seguinte. As coisas nunca aconteciam. Até que a rolinha conseguia fugir com o rapaz de quem gostava, e o coronel ficava louco da vida, quebrava a fazenda toda. Ele percebia no que havia se transformado: um fantoche na mão da menina. O coronel tinha comprado a garota e, para ele, era como na história de João e Maria, em que a bruxa manda a criança botar o dedinho por baixo da porta para ver se ela está engordando ou não, porque quer comê-la. O coronel Artur esperava a rolinha crescer, olhava para os peitinhos dela, para o corpo, pegava nela: “Já está quase no ponto!”. A novela era forte. Foi um ótimo trabalho. É possível fazer excelentes adaptações de obras consagradas. Se analisarmos a teledramaturgia no Brasil e no mundo, veremos que, da literatura, surgiram grandes trabalhos. Não que as pessoas não possam inventar – uma novela também é um livro que se escreve.

Vamos passar à década de 1990, com Araponga.
O autor era Dias Gomes, e o diretor, Cecil Thiré. Eu interpretava um general do exército reformado que, não tendo mais o que fazer porque a ditadura havia acabado, resolvia ser síndico do condomínio onde morava. O general transformava os funcionários numa tropa, e havia um anão que andava com ele o tempo todo. Havia também um canhão enorme no jardim. O personagem era um militar que sempre tinha querido fazer uma guerra e nunca tinha feito. Ele fazia, então, uma guerra particular, uma intervenção dentro do condomínio, se metendo na vida de todo mundo. Era formidável.

Como foi sua participação na minissérie Agosto?
Eu fiz uma cena só, no papel de um advogado de porta de cadeia que não tinha uma das pernas. Foi uma participação rápida, mas gostei muito.

Fale de seu trabalho em A viagem, outra novela de Ivani Ribeiro.
Eu interpretei um personagem que se diluiu com o tempo, por causa de um mau encaminhamento inicial. A viagem era uma novela eminentemente espírita, e meu personagem, Tibério, era muito estranho, vivia falando sozinho. Todo mundo pensava que ele era louco, mas havia um espírito que o acompanhava, tipo um anjo da guarda. Então, inventei algo que pegou. Eu falava: “Quieto!”. Ficava estranho e, ao mesmo tempo, engraçado. Com o correr do tempo, as pessoas começaram a enxergar um pouco de humor demais naquilo, como se fosse algo que quisesse ferir a religião, ou coisa parecida. Talvez, para os espíritas, aquilo não fosse tão bom. Tibério, então, passou a ficar sentado diante de uma mesa, fazendo orações e vendo o personagem de Cláudio Cavalcanti receber espíritos. O meu personagem foi embora.

O que aconteceu? Você mudou o personagem?
Eu não mudei, mudaram. Pediram para não fazer mais aquilo, e eu não quis saber de explicações.

Tibério ficou até o final da novela?
Ficou, mas fazendo outras coisas. Como o professor de Memórias de amor, eu o havia elaborado para ser diferente. É ruim quando você começa um trabalho, imagina algo de que todas as pessoas gostam e, de repente, tem que parar. Parece que lhe tiraram alguma coisa. Você perde o tesão de fazer, a verdade é essa. Passa a fazer o que determinam. Nem sempre dominamos o processo. Quando você é dirigido, tem que se submeter. A visão não é mais sua, é do diretor. Você é um instrumento na mão dele.

Em seguida, houve Engraçadinha... Seus amores e seus pecados.
Como em Agosto, foi uma participação rápida. Interpretei o dono de um bar na beira da Praia de Guaratiba, onde um menino era desvirginado.

Depois, você atuou em Vira-lata.
Foi uma novela que só fiz até a metade. Eu falei um pouco mal do autor, Carlos Lombardi, alguns colegas me deduraram e meu papel acabou. Eu sempre digo para todo mundo, inclusive para Lombardi: não achei legal. Mas tudo bem. Eu posso estar dando a impressão de que sou um pouco rebelde. Não sou. Eu gosto da minha profissão, e procuro fazer o melhor. Sou um operário. Se eu fizer um bom trabalho, será bom para mim, para a organização em que trabalho, para o autor. Não há uma divisão clara. Talvez o ator apareça mais, porque o autor fica um pouco escondido. Mas é o autor quem escreve, e as honras do papel geralmente se devem a quem escreve. Tem base. Uma casa é o alicerce, não é o telhado. Eu procuro trabalhar pela organização, por quem escreve e por mim, pela minha profissão. Quanto mais ibope o programa der, melhor será para todos. Acho que não dá para estacionar. Eu tenho mais de 70 anos de idade, mas não tenho cabeça de 70. Trabalho muito e estou cheio de planos. As pessoas me perguntam: “Até quando você vai realizar todos esses planos?”. Não falo em datas. Até quando der, eu vou. A verdade é que não me entrego. E o resultado é excelente. Aconselho as pessoas a agirem do mesmo modo. Acredito que estou na melhor idade.

Em A indomada, você interpretou o deputado Pitágoras, um político corrupto. Como foi a experiência?
Meu sentimento negativo em relação à política se refletiu tremendamente nesse trabalho. O personagem já veio do autor com um perfil definido. Acho que Aguinaldo Silva pensa igual a mim. E tem que pensar, porque uma pessoa razoável entende as coisas como elas são. Foi muito fácil compor Pitágoras. Lembro que, um dia, o falecido diretor Paulo Ubiratan me chamou: “Temos um ótimo papel para você”. Ubiratan faz uma falta danada. Não só ele como outros colegas que se foram, mas especialmente ele. Ubiratan emendou: “O papel é ótimo, mas não sei se você vai conseguir fazer”. Falei: “Belo começo!”. Ele disse: “O personagem tem sempre um charuto na mão”. Eu disse: “Pode desistir de mim para o papel! Eu parei de fumar. Desde 1983, não ponho um cigarro na boca”. Ubiratan insistiu: “Mas vai ser um charuto de mentira”. Perguntei: “O charuto é tão importante assim para o personagem?”. E ele: “É!”. Falei: “Então, tchau!”. Ele disse: “Espere. Não é tão importante. Vamos negociar”. Estava começando a virar aquela coisa do tempo da censura, em que se trocava um palavrão por outro, e o censor achava legal. Trocaríamos o charuto pelo quê? Então, Ubiratan disse: “Vamos tirar o charuto!”. Falei: “Ótimo!”. Ubiratan me descreveu o personagem: “Nós havíamos pensado em uma figura inspirada em Winston Churchill”. E eu: “Churchill no agreste? Quem entenderia?”. Ubiratan continuou: “Vamos botar Churchill lá no fundo do personagem. E, quando houver possibilidade, num grande centro ou com pessoas que tenham uma cultura razoável, mostramos que Churchill é o ideal de Pitágoras”. Perguntei: “Mas será que é o ideal?”. Ubiratan explicou que o personagem se baseava em um político que havia fretado um avião para ir à cidade do interior onde mantinha seu curral eleitoral. Lá, ele seria recebido com festa, porque havia sido presidente do Brasil por um dia ou coisa parecida. O que eu fiz? Liguei na TV Senado e criei o personagem.

E deu certo?
Com as notícias diárias sobre política, eu completei o personagem. No aspecto amoroso, Pitágoras tinha uma trama tão boa quanto no político. Ele amava a personagem de Eva Wilma, que também era ótima. Os dois personagens eram ótimos. Fisicamente, eu estava com um porte maior, o que dava certa opulência ao deputado Pitágoras. Colhi tudo na TV Senado. Até sobrou material. A indomada era bem escrita, bem-feita, caprichada. Foi a melhor novela de 1997. Ganhei um prêmio de melhor ator por Pitágoras. Como é o nome daquele prêmio concedido por Silvio Santos?

Troféu Imprensa.
É. A Globo permitiu que eu fosse recebê-lo.

Que novela você fez em seguida?
Meu bem querer. Eu interpretava um delegado que queria se aposentar, estava cansado da vida, não via mais razão para nada. Era um bom personagem, casado com Laura Cardoso e dominado por Marília Pêra, uma tirana. Fui dominado por Marília com muito prazer.

E Vila Madalena, como foi?
Novamente houve um problema com o autor, desse vez Walter Negrão. Lá pelas tantas, eu não tinha mais o que fazer. Meu personagem trabalhava num cinema que ia fechar e se transformar num supermercado. Ele tinha em casa rolos e mais rolos de filmes que haviam marcado sua vida. Alguns, ele tinha surrupiado, outros, comprado. Todo o seu dinheiro era empregado nisso. À noite, na solidão da casa em que vivia, ficava revendo a obra de Fellini: Noites de Cabíria, A estrada. Acho que Negrão exagerou um pouco. Ele quis demonstrar que era profundo conhecedor de cinema, mas isso não encantava como história. As pessoas não se ligavam nesse tipo de coisa. Ficava um pouco chato, monótono, dirigido para uma pequena elite cinematográfica. E, porque não era uma trama abrangente, o cinema foi abaixo antes da hora, e as histórias todas se diluíram. Então, me arrumaram dois sobrinhos, um deles interpretado por Suzana Werner. Ela estava estreando como atriz, vindo de uma bem-sucedida temporada como apresentadora de um programa de TV a cabo. O outro sobrinho era interpretado por um menino que também estava começando. Formou-se um núcleo muito frágil, com umas histórias bobas, de boate, que não caberiam dentro da cabeça do meu personagem, um homem que tinha outra finalidade na vida. Ele gostava de ler, gostava de cinema. Eu comecei a ver que aquela tentativa estava dando certo para os meninos, mas não para mim. Também me arranjaram um envolvimento amoroso com uma mulher que tocava piano, interpretada por Rosamaria Murtinho. Mas essa trama, que poderia ter sido boa, também não deslanchou. O resultado foi que Jorge Fernando, que dirigia a novela, acabou me perguntando: “Ai, meu Deus, Ary, o que faço com você?”. Respondi: “Mande meu personagem passear, viajar, mande embora. Tire da novela, sem dó nem piedade. Para mim, é muito mais conveniente sair da novela do que ficar patinando nela. Não tem nada a ver eu ficar lhe pedindo encarecidamente que se lembre de mim, que me dê um close sem fala alguma. Não quero mais”. Mas as coisas chegam deturpadas aos ouvidos dos autores. Então, pensei: “Sabe o que mais? Vou encerrar novela por aqui!”. E parei de fazer novela.

Mas no ano de 2001, em Porto dos Milagres, você voltou como Pitágoras.
Aguinaldo Silva me disse: “Gostaria que você fizesse uma participação afetiva”. Participação afetiva é algo que se instituiu agora. No cinema, o ator realmente não cobra quase nada, mas, em televisão, ele ganha o mesmo dinheiro que numa participação não-afetiva. Ainda assim, é melhor fugir das participações afetivas. Aguinaldo explicou: “Eu quero que Pitágoras volte, quero que ele visite a cidade de Porto dos Milagres”. Falei: “Está bem, eu vou fazer para você. São quantos capítulos?”. E ele: “Só três”. Foram mais. Aguinaldo se encantou, e eu fiquei. Acabei fazendo par com Arlete Salles. Quando entrei, a novela já estava com cento e tantos capítulos, e eu fui até o final. Era o mesmo personagem, só que envolvido numa trama diferente.

O que achou de participar do Sítio do Picapau Amarelo?
A proposta do programa é a melhor possível: a formação de público novo. Eu topei imediatamente. Antes do Sítio, porém, eu participei de Sai de baixo, no qual fiquei por um ano. Lamentei profundamente que tivesse acabado, pois era divertidíssimo de fazer. Sai de baixo era um programa que todo mundo achava ruim e todo mundo via. Então, estava de bom tamanho. Fazíamos toda vez a mesma coisa, e o público adorava. Nós também nos divertíamos. Era uma loucura, um gênero livre, que adoro fazer, como uma peça de teatro, com público assistindo ao vivo. O ambiente de trabalho era fantástico, com pessoas inteligentes, agradáveis. Não existia qualquer tipo de preconceito, e nós embarcávamos naquilo. Além disso, depois da gravação, havia a maravilhosa noite de São Paulo. Todos saíamos para comemorar, porque cada programa era uma vitória – ou uma desgraça. Era bom demais. Mas cortaram a nossa, ou foi Miguel Falabella que se cansou de fazer Caco Antibes. Ele se cansou de fazer, acabou. Falabella era a alma do programa, sem dúvida alguma. Então, fui para o Sítio do Picapau Amarelo, que nunca foi bem amparado por quem esteve à frente da grade de programação. Entrou no meio do programa infantil Bambuluá, como se fosse um anexo dele. No princípio, era bem escrito, preservava intacto o espírito da obra de Monteiro Lobato. No segundo ano, já mudaram o elenco, e começaram a aparecer umas coisas estranhas. No terceiro ano, me mandaram embora. E era o que eu queria. Eu ia pedir, mas me mandaram antes.

Você saiu do programa em 2005?
Foi. E, em 2006, não fiz nada na Globo. Fiquei fazendo teatro, viajando com Marido de mulher feia tem raiva de feriado. É uma das peças mais bem-sucedidas de que participei. Fomos a 34 cidades, sempre muito bem recebidos pelo público. Um sucesso. Em São Paulo, a peça estreou em outubro de 2006, no Teatro Procópio Ferreira, com casas absolutamente lotadas. Recebemos um amparo absoluto da Globo, que, muito justamente, resolveu dar uma mão ao teatro. Acho que foi uma das grandes coisas acontecidas na emissora. Marluce Dias [assessora da presidência] está empenhadíssima em que o teatro receba esse amparo. Ela entendeu a problemática, enxergou além. Antigamente, os anúncios das peças entravam nas paralelas, momentos em que não há publicidade. Agora, entram em horários determinados, e até durante o Jornal Nacional. Os espetáculos chegam às cidades muito bem amparados, sob a tutela da Rede Globo de Televisão. E isso está dando resultado. Faço aqui este registro. É algo bom para todos.

Quando surgiu o convite para participar de Chocolate com pimenta?
Eu fazia o Sítio do Picapau Amarelo. Walcyr Carrasco, o autor de Chocolate com pimenta, já havia escrito para o Sítio. Ele criou o papel, e o diretor Jorge Fernando me pediu para fazer uma participação de 15 dias na novela. Na Globo, há um problema: quando você está em um programa, não pode participar de outro. Mas consentiram que eu participasse. Só que o personagem agradou tanto que, quando morreu, resolveram que ele continuaria aparecendo como espírito. Foi assim durante a novela toda. E foi bom. No Sítio, eu tinha uma gravação hoje, outra dali a dois meses. Dava para conciliar bem. Minha participação em Chocolate com pimenta me rendeu coisas boas. Agora [abril de 2007], estou na nova novela de Walcyr. Será a primeira vez em que vou fazer uma novela inteira dele. Já começamos a gravar.

Fale de seu personagem.
Ele se chama Romeu. É um camarada solitário, que nunca se casou. Na juventude, teve um grande amor, Julieta, mas as famílias se opuseram à ligação dos dois. Ou seja, é Romeu e Julieta da terceira idade. Os protagonistas dessa trama somos eu e Nicette Bruno. Os dois personagens vão se encontrar depois de muito tempo, e o que estava adormecido vai, inevitavelmente, vir à tona. Pretende-se que o romance entre eles pegue fogo. Acho que esse casal que Walcyr criou tem vários aspectos interessantes – e não por ser inspirado em Romeu e Julieta, porque isso não tem nada a ver. Ser original, hoje em dia, é fazer à sua maneira o que outros já fizeram. Sem dúvida, não há mais nada novo. Por isso é interessante premiar as pessoas que ainda têm algo dentro de si e fazer esse paralelo entre o amor de ontem e o de hoje, sem criticar, mas comparando, por exemplo, a delicadeza de antes com a de agora, mostrando o que é amar hoje em dia, o que é considerar as pessoas, mostrando como o mundo está indo. Acho que tudo isso será abordado na novela, porque Walcyr é um sujeito que observa as mudanças. Ele é muito religioso, tem crenças que são absolutamente irredutíveis. A obra dele é interessante por isso, porque sempre deixa uma esperança. Walcyr é muito generoso. Sua generosidade é ampla, e faz com que ele se constitua num ser humano maravilhoso.

O nome da novela já está definido?
Sim, Sete pecados – que são os pecados capitais. Basicamente, a novela vai contar a história de um sujeito que é puro, mas que deverá passar pela experiência desses pecados que estão por aí. Esperamos que dê resultado. Vamos pecar um pouco.

Em sua carreira teatral, que trabalhos você destacaria?
Ah, muita coisa! Tive uma fase boa de 1983 a 1987, quando o Teatro dos Quatro era subvencionado pela Shell, e havia dinheiro para fazer grandes espetáculos. Participei das montagens de Rei Lear, de Shakespeare; Assim é, se lhe parece, de Pirandello; e Sábado, domingo e segunda, de Eduardo De Filippo. Foram ótimos espetáculos. Fiz também um marco na história do teatro brasileiro, Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, e participei da primeira montagem de Ópera do malandro. A primeira montagem era uma comédia com música, e não uma comédia musicada como a versão dirigida recentemente por Charles Möeller e Cláudio Botelho – que era muito boa, por sinal. Eu estive envolvido em belos espetáculos no teatro.

E no cinema?
No início de 2007, terminei de filmar A guerra dos Rochas, com direção de Jorge Fernando. Na história, eu sou mãe de Diogo Vilela, Marcello Antony e Lúcio Mauro Filho. Minha personagem é uma viúva muito velha, abandonada pelos filhos, que não tem para onde ir. Apesar de tudo, é uma velha muito boa, uma mãe maravilhosa. Mas ela é atrapalhada, provoca confusões e, por isso, não é tão bem-vista. Nesse papel, fiz o seguinte: valorizei a mulher. Eu já valorizava, mas valorizei mais ainda. Ficou combinado que eu faria tudo o que Jorge quisesse, seria dirigido por ele, e não veria nada antes do filme pronto. Jorge vivia dizendo: “Venha ver”. Mas eu não ia. Só queria ver depois de pronto. Deu muito trabalho, uma coisa incrível. Era preciso colar fio por fio da minha cabeleira. Durante os primeiros 10min de filme, por causa da minha caracterização, não se consegue saber que sou eu. E qual era a exigência? Eu não tinha que viver uma mulher? Então, deveria me abster de tudo que era meu e passar a constituir tudo que era ela. Meu lado feminino – lado que existe, claro, em todos os homens – deveria entrar em mim. Qual era a mágica? E o tempo para isso ser feito? E a questão dos horários de filmagem? Eu, que sou um notívago de marca maior, que só vou dormir às 2h da manhã, tinha que acordar às 5h, para chegar no set e fazer, durante 2h, a minha maquiagem. Tive que tirar toda a sobrancelha. Para isso, foram 4h de sessão. Eu saí com a cara inchada, e fiquei três dias sem enxergar direito. Para andar na rua, eu botava óculos, porque tinha outras coisas para fazer. Eu usava seios postiços. Marilia Carneiro, uma excelente figurinista, descobriu que botar alpiste numa meia de homem cria uns seios perfeitos, que podem ser modelados como se quiser. Tive também que raspar o meu corpo todo. Só agora os pêlos estão começando a nascer de novo. Precisei raspar as pernas até o alto, porque, numa determinada cena, a personagem era agarrada por um cara dentro do banheiro. A barba, eu fazia com cera quente. Me estraçalhei nesse papel. E o que aconteceu? Comecei a dormir mais cedo, regularizei meus horários. Eu tinha que andar de salto alto. Era uma mulher de 70 e tantos anos, mas a idade até que não foi problema, só precisei me arcar um pouco. Outra coisa: eu tinha que sentir que aqueles meninos eram meus filhos e que eu era mãe deles de verdade. Houve uma cena minha com Marcello Antony em que Jorge Fernando deu a seguinte orientação: “Marcello, deite no colo dele. E você, Ary, comece a alisá-lo”. Eu senti uma sensação tão estranha com a cabeça daquele menino pedindo proteção no meu colo! Eu já era a mãe. Senti que os meus seios, em vez de alpiste, tinham leite. Eu tinha que viver uma mulher, e não fazer uma mulher. Fazer uma mulher seria fácil. Arranjava uma voz e pronto. Mas não era uma sátira, era para ser verdadeiro. Nunca entendi por que me convidaram para o papel. Era para ele ter sido de Fernanda Montenegro, mas ela não aceitou porque estava filmando Cem anos de solidão em Londres. Depois de consultar todas as velhas do teatro brasileiro, vieram a mim. Fui indicado pelo louco do Daniel Filho, que disse em seu livro: “O Ary Fontoura que eu conheço é um ator que possui a seguinte característica: quando você não tiver ninguém para fazer um papel, chame-o. Você não vai se arrepender”. Isso para mim é muito bom, me garante trabalho, mas não sei até onde é verdade. Quem assistiu disse que o filme é bom. Agora, vamos ver até que ponto consegui me livrar da personagem. Só sei que tive um pesadelo muito engraçado. Nós filmávamos na praça do Alto da Boa Vista, e eu sonhei que Hitchcock estava lá, orquestrando umas pombas para o filme Os pássaros. De repente, ele dizia: “É lá!”. E era de lá que eu vinha, de braços abertos, com aqueles peitos cheio de alpiste. Não dava outra: os pássaros vinham e me consumiam. Acordei todo suado, e pensei: “Meu Deus, nunca mais vou conseguir tirar aquela droga de sutiã. Vou ficar com ele a vida inteira”. Isso acontece. Bem, aconteceu comigo.

Você tem outros exemplos de influência do personagem na vida do ator?
Uma vez, um repórter foi assistir a Hamlet no TBC. Era de tarde, e ele resolveu ficar por lá para fazer uma entrevista com Sérgio Cardoso. Anexo ao TBC, havia um barzinho chamado Nick Bar. No intervalo da matinê, Sérgio se sentou numa banqueta e pediu uma taça de vinho. Ele estava vestido com uma malha preta, caracterizado como Hamlet. O repórter falou: “Eu não sabia que, como pessoa, você tinha os mesmos trejeitos que Hamlet”. Sérgio respondeu: “Mas eu não sou pessoa aqui. Dentro de mim, está Hamlet. Não tenho tempo de sair do personagem para fazer a próxima sessão. Se eu sair, como vou entrar?”. Dá para compreender? Quando você se envolve demasiadamente com um personagem, começa a ter características dele, trejeitos. Há personagens que pedem mais, e há outros que pedem menos. No segundo caso, você desliga a chave tranqüilamente e volta a ser igual a todo mundo, o que eu adoro. Vai a supermercado, jogo de futebol, anda por aí sem seguranças do lado. É respeitado quando a televisão é ligada ou o pano se abre, e, depois, é igual a todo mundo – que é o que a gente é.

Que pessoas foram importantes em sua trajetória profissional?
As mais importantes para mim foram as que se constituíram no público que me assistiu, sem demagogia. Eu sou o que sou graças ao público. Sempre digo isso e agradeço. Se não houvesse ninguém que comprasse um ingresso para me ver, eu não seria conhecido. Se não houvesse ninguém que ligasse a televisão e gostasse do meu trabalho, eu não existiria. Então, devo o meu trabalho ao público. Quando começo qualquer coisa, penso em primeiríssimo lugar no público. Tenho o maior respeito pelo público. No teatro, então, nem se fala. Afinal, é um contato imediato. Durante a minha carreira, houve pessoas que me ajudaram, que me deram a mão. Houve, claro, pessoas que acreditaram no meu trabalho – prefiro dizer assim. Mas nunca tive a vida facilitada demais. Tudo o que consegui até agora, tudo o que sou foi produto de trabalho. Não tenho nenhuma mágoa por isso. Se eu tivesse nascido em berço esplêndido, onde nada me faltasse, onde tivesse tudo, talvez não fosse a pessoa que sou. O tipo de trabalho que desenvolvo é muito voltado para os anti-heróis. São esses que me interessam. Não desprezo as pessoas que já venceram, que estão lá no alto, eu as aplaudo, mas elas não se constituem na raiz, no cerne do meu trabalho. O meu trabalho é baseado nas pessoas mais humildes. Eu gosto de ir lá no meio do povão, cutucar aquilo para ver o que sai. As pessoas que me interessam são aquelas em formação, as que estão numa batalha incrível pela vida, e que supervalorizam viver. Mas eu tenho, sim, colegas que me deram conselhos, que me ampararam, que me indicaram para uma infinidade de trabalhos. Seria até uma injustiça citar nomes aqui. Eu poderia dizer: “A minha família!”. Mas ela só me apoiou quando comecei a aparecer em televisão. Foi aí que todos os conceitos dos meus familiares mudaram. Antes, não. Antes, achavam: “Ele tem jeito para a coisa, mas isso não é profissão”. O incentivo nunca veio. Veio sempre outra coisa: “Nós estamos lhe dando um bom conselho. Essa não é uma profissão legal, não é o que queríamos para você”. Meu pai falava: “Eu queria que você tivesse um diploma como todos os seus irmãos. Seria a única coisa que teríamos dado a você”. Com isso, ele queria dizer: “Apesar da nossa humildade, da vida que temos, não de pobreza, mas de dificuldades, nossos filhos estudaram, se formaram”. Fui até o quinto ano da universidade. Eu nunca havia desapontado ninguém. Minha mãe estava com o vestido pronto para dançar valsa comigo; meu pai, com o smoking já passado para me ver receber o diploma. E eu não dei isso a eles. Na universidade, não estudei nada, passei em brancas nuvens. Teatro foi o que mais estudei. Levei a sério minha profissão. Não há diploma que pague. Fiz o principal, e deu resultado. Posso me considerar um vitorioso, caso contrário não estaria aqui. Para que fazer o registro da memória de uma pessoa que não significa nada? Mas sou vitorioso porque batalhei, lutei, acreditei no que queria. E não há outra saída na vida. Não adianta um bolso cheio de dinheiro e uma frustração. Nós temos que fazer aquilo que queremos. Hoje, minha família me aplaude. Não tenho diploma, mas tenho prêmios pendurados em lugares estratégicos da casa. Nunca, porém, trabalhei pelos prêmios. Acho que o prêmio maior é outro: o reconhecimento. Esse não vem em estátua.

Como você avalia o trabalho de buscar preservar a história da TV Globo e de seus profissionais?
Uma vez, tirei Ricardo Waddington do estúdio para avisar a ele que uma colega nossa, uma grande atriz, estava fazendo um papel menor, parecia uma figurante. Era uma pessoa que já havia recebido a maior comenda que este país oferece a alguém. Se Ricardo não tivesse recebido apoio de alguém com uma memória como a minha, ele não teria tratado bem a atriz. Ele teria sido uma passagem negativa na vida dela. Mas não foi. Então, tudo isso é muito importante. Se você começa a trabalhar num determinado lugar, se você se dedica a alguma coisa, tem que conhecer a história disso. É impossível trabalhar no teatro sem conhecer elementos mínimos da profissão. Seja qual for a profissão, é assim. Qual é o grande problema deste país? A memória é rejeitada, relegada a um plano absolutamente inferior. O que dizer deste projeto? Nossa, aplaudir – e muito! –, porque ele tem um significado extraordinário. Gerações e gerações terão acesso a essas informações, o que é de fundamental importância. Só lamento não ter dito mais. Infelizmente, isso não é possível – ou este projeto viraria a memória de Ary Fontoura. Quantas pessoas não citei, quantos fatos deixei de relatar! Não porque não me lembrasse, mas porque não era o momento. O espaço é relativamente pequeno, embora, ao mesmo tempo, seja grande, extraordinário. Acho que é possível sentir isso nas entrevistas realizadas até aqui. Quem se nega a fazer um relato como este e contar da sua vida, contar da sua participação, não está dando sua contribuição. Lamento ter demorado dois anos para conceder esta entrevista.

Sphere: Related Content
26/10/2008 free counters

Nenhum comentário: