Começo com uma anedota. O sujeito chega para a mulher e pergunta: --Por 40 milhões de dólares você dormiria comigo? Necessitada, com a mãe doente e o pai desempregado, ela responde: --sim! Aí o cara dispara: --E por 20 reais você dormiria comigo? Indignada, ela retruca: --Que tipo de mulher você pensa que sou!? Ao que ele retorque: --Isso nós já determinamos, agora estamos apenas acertando o preço.
Minha coluna da semana passada, "Vendendo a Amazônia", na qual insinuei que a internacionalização da floresta poderia ser uma solução para o problema do desmatamento, gerou uma pororoca de protestos de leitores, alguns com raciocínios pertinentes, outros apenas mal-educados. Era um texto evidentemente provocativo, e eu não esperava mesmo que passasse em brancas nuvens. Ainda assim, surpreenderam-me o grande volume de palavrões e o reduzido número de missivistas que demonstrou ter lido a peça da forma como a concebi.
Retomo, portanto, o tema com o intuito de desfazer alguns malentendidos. Antes de mais nada é preciso voltar à arquitetura do texto. A soberania sobre a floresta funcionava como um pretexto para discutir o problema do nacionalismo, que era, este sim, o fulcro da coluna. A venda da Amazônia operava apenas, admito-o, como uma apetitosa isca, uma armadilha para levar o leitor incauto até o assunto que eu de fato pretendia debater. Quem puxar pela memória (ou apertar o link acima, o que é mais fácil), terá a oportunidade de constatar que eu jamais disse que a porção norte-noroeste do país será vendida aos gringos. Ao contrário, afirmei com todas as letras que isso não vai acontecer. E não vai acontecer por uma miríade de razões que incluem sua inconstitucionalidade, a ausência, ainda que momentânea, de um modelo de negócios adequado e, principalmente, o tal do nacionalismo, que faz com que a maioria de nós pense com o fígado em vez do cérebro.
E, já que estou falando do que não afirmei na semana passada, aproveito para esclarecer mais algumas coisinhas que nunca disse. Jamais sugeri vender a floresta para a nação A ou B. Como lembrei no texto, muitos países do Primeiro Mundo já destruíram suas selvas originais e seguem com comportamentos ambientalmente irresponsáveis. Entregar-lhes a Amazônia provavelmente significaria apenas atuar com mais zelo e melhores métodos na destruição do bioma.
Como a operação comercial é menos do que uma remota especulação teórica, não me preocupei em descrever um esquema que eu consideraria adequado. Mas, já que me cobram por isso, acho que precisaríamos buscar um modelo de internacionalização no qual uma nação vigiaria com desconfiança os passos da outra, de modo a garantir que ninguém fizesse nada muito dramático. É uma dessas raras circunstâncias em que a paranóia individual transforma-se em virtude coletiva. Um sistema mais ou menos com esse desenho funciona na Antártida, território que segue razoavelmente preservado e desmilitarizado (as bases lá existentes servem apenas para apoiar a pesquisa científica). Pelo menos até aqui, conseguiu-se evitar a mineração e a prospecção de petróleo na região.
Na hipotética venda, precisaríamos também, por óbvio, garantir que os habitantes originais da região, indígenas e não-indígenas, pudessem seguir lá vivendo --e levando alguma coisa nessa história.
Correndo o risco de tornar-me repetitivo, a tal venda não vai acontecer, mas está longe de ser algo que não possamos nem ao menos considerar. Suponhamos, apenas como exercício imaginativo, que o mundo nos oferecesse toda a riqueza existente em troca da floresta. Nesse caso, mesmo para o comandante militar da Amazônia, seria rematada tolice não aceitar. E todas aquelas objeções que os leitores me fizeram a respeito do imenso valor material e estratégico da região, com suas reservas de água doce, minérios e biodiversidade, cairiam por terra, pois nenhum valor em particular pode, por definição, superar a soma de todos os valores.
Isso nos leva à anedota inicial: é tudo uma questão de acertar o preço. E as suscetibilidades podem também ser incluídas na fórmula. Se a palavra "venda" é forte demais, podemos bani-la do vocabulário empregado em nossas transações, substituindo-a por termo menos polêmico. É o caso do MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), previsto no Protocolo de Kyoto, para auxiliar na redução das emissões de gases-estufa. Trata-se de um sistema altamente complexo e não sem controvérsias pelo qual países que estejam estourando suas metas podem abater cotas de CO2 adquirindo "vales-preservação", isto é, investindo em projetos que resultam no seqüestro de carbono atmosférico ou mesmo em emissões evitadas.
É aí que o Brasil teria uma excelente oportunidade. Já que todo o mundo tem interesse em que a Amazônia seja preservada, deveríamos cobrar para fazê-lo. É uma compensação bastante razoável pelo desenvolvimento que deixa de vir por conta de leis ambientais muito restritas. Ocorre que, muito em virtude do lobby brasileiro na ONU, a conservação de florestas ficou de fora do MDL. E isso porque a paranóia nacionalista de militares e itamaratecas nem sequer admite a possibilidade de que países estrangeiros comprem o direito de monitorar o desmatamento na Amazônia. E, convenha-se, o único jeito de o sistema funcionar é se houver atores que possam vigiar e cobrar o cumprimento de um acordo pelo qual estariam pagando. Essa, na opinião de respeitados ambientalistas, seria a melhor chance de conciliar desenvolvimento e preservação. É isso que o nacionalismo tosco nos faz desperdiçar.
E, para não ficar restrito à questão da Amazônia, encerro a coluna de hoje com algumas observações a respeito do homem e seu preço. Receio que, no espírito da piada inicial, sejamos todos pessoas "de vida fácil", isto é que tenhamos o nosso preço.
Nem é preciso definir a espécie como Homo oeconomicus para chegar à conclusão de que o ser humano faz trocas. Capaz de projetar o futuro (ainda que erroneamente), ele está a todo instante tomando decisões com vistas a posicionar-se melhor para enfrentar o que imagina que a sorte lhe reserve. O dinheiro seria então é apenas um modo prático de intermediar essas trocas, estabelecendo valores simbólicos comparáveis. Mas nem é necessário que as coisas tenham expressão monetária. Mesmo o jovem revolucionário ou o santo que dão a vida por um ideal ou pela religião o fazem por atribuir mais valor a seu sistema de crenças do que à própria existência. É uma troca que em algum momento envolve uma tomada de decisão que gostamos de acreditar seja livre e consciente, ainda que em situações que nem sempre controlamos. Foi nesse contexto que Sartre "condenou" o homem à liberdade.
Por algum motivo, entretanto, nos recusamos obstinadamente em colocar a etiqueta de preço em determinados "produtos" como vida, amor, pátria. Isso não significa que não tenham, como se constata, por exemplo, em qualquer recorte epidemiológico sobre doenças preveníveis.
PS - Estarei fora pelas próximas três semanas. Retomo a coluna dia 24 de julho.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas. |
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