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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Vai-se andando…

Poucas expressões são tão caracteristicamente portuguesas como o "vai-se andando…"
Poucas expressões são tão caracteristicamente portuguesas como o "vai-se andando…" e poucas traduzirão tão fielmente essa espécie de resignação com que temos vivido ao longo dos séculos e que nos tolhe os movimentos. Há um pequeno diálogo entre Carlos da Maia e o poeta Alencar, numa das muitas grandes obras que Eça de Queirós nos deixou, que ilustra bem esse nosso traço:
- Acho-te com boa cor, Alencar!
O poeta foi amável também, um pouco d'alto, passando os dedos no bigode:
- Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos dás essas Memórias homem?
- Estou á espera que o país aprenda a ler.
- Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, ele ocupa-se da Instrução pública... Olha, ali o tens tu, grave e oco como uma coluna do Diário do Governo...


Raramente estamos, fazemos ou acreditamos. Vamos estando, vamos fazendo ou queremos acreditar, nunca ou quase nunca satisfeitos, sempre ou quase sempre à espera de algo ou de alguém que faça o que é preciso. Os governos e os políticos são os Gouvarinhos dos tempos modernos. Eles que façam… Mas acho que já todos percebemos (ou vamos percebendo?) que "eles" não fazem. Ou porque não sabem, ou porque não querem ou porque não podem. Na melhor das hipóteses, vão fazendo, o que significa, na prática, elaborar planos e anunciar algumas intenções ou medidas a adoptar (ou, como agora se diz, implementar) que, independentemente do respectivo mérito e da existência de capacidade para as concretizar, têm o condão de provocar de imediato uma enorme vozearia e debates apaixonados.

Tudo ou quase tudo o que alguém se propõe fazer para debelar os intermináveis problemas que estão a transformar o nosso país num atoleiro esbarra num sem-número de objecções que condicionam à partida qualquer perspectiva de mudança. Ora porque não há dinheiro (o que é verdade), ora porque viola a Constituição (o que também é quase sempre verdade), ora porque põe em causa direitos adquiridos ou legítimas expectativas (o que é mais discutível, mas é por todos entendido como uma verdade sacrossanta sempre que os direitos ou expectativas em causa são os de cada um).

Indiferentes à realidade, postos em sossego "naquele engano da alma, ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito" de que nos fala Camões a propósito da linda Inês, lá vamos andando na expectativa de que a fortuna esteja demasiado ocupada a resolver o problema dos gregos e dos irlandeses e se esqueça de nós.

Sabendo que dificilmente será desta que nos decidiremos a fazer o que é preciso (que é tão simples quanto isto: viver de acordo com as nossas possibilidades, tirando daí as respectivas ilações em termos de despesa - pública e privada -, de recurso ao endividamento, de salários e de carga fiscal), analistas e comentadores lembram com cada vez maior frequência a iminência de vermos entrar pela porta esse Adamastor dos tempos modernos que é o Fundo Monetário Internacional. Desconfio que essa ameaça apenas preocupa verdadeiramente alguns. A esmagadora maioria dos portugueses continuará a "ir andando" e pouco estranhará voltar a cruzar-se na rua com aquela senhora que já por cá andou a arrumar uma casa desgovernada. Assim como assim, não será a primeira vez e lá fomos sobrevivendo…

Daqui a uns anos estaremos mais pobres, mas com a casa arrumada. Não à "nossa maneira" e, certamente, sem muito daquilo que gostaríamos de ter e que nos foi dito estar constitucionalmente garantido. Aí sim, vamos poder recomeçar a discutir quantas linhas para o TGV "vamos fazer", quais as novas pontes, aeroportos, portos e auto-estradas que o país reclama, se estamos ou não em condições de manter o serviço nacional de saúde que desenhámos há 30 anos, se a "justa causa" é mais justa do que o desemprego e, quem sabe, se será desta que a prometida convergência com a Europa se vai realizar. Até lá, vamos andando, enquanto esperamos que o País aprenda a ler…


Advogado
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