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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

#dilma : “Erenice Guerra não estava preparada para assumir Casa Civil”, diz filósofo


Leandro Kleber
Do Contas Abertas
Em meio a escândalos envolvendo membros do primeiro escalão do governo federal, o professor de ética da Universidade Estadual de Campinas e filósofo Roberto Romano falou ao Contas Abertas. Ele afirma que “a Casa Civil é um lugar altamente perigoso para qualquer ocupante”, devido ao regime presidencial brasileiro, e que se José Serra ou Marina Silva forem presidentes no futuro, eles também enfrentarão esse problema. “Para assumir o cargo de ministro-chefe da Casa Civil, é preciso ter capacidade diplomática, firmeza jurídica e uma integridade muito grande. A carta escrita por Erenice Guerra um dia antes de sua queda mostra que ela não estava preparada para um cargo dessa complexidade”, avalia. Confira a entrevista na íntegra.
CA: Como o senhor avalia o caso envolvendo a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra?
Romano: Em primeiro lugar é preciso uma resposta institucional e depois pessoal. Institucional o fato de que a Casa Civil é o centro nervoso do relacionamento entre o Executivo e o Legislativo e, portanto, por onde passam todos os projetos do governo, todas as propostas de lei e, inclusive, todos os vetos possíveis do presidente da República em relação ao que vem do Congresso. Neste caso, surgiu a frase, desde a época Sarney [presidente da República em 1988], “é dando que se recebe”. A Casa Civil se transformou em um instrumento muito importante para negociar o apoio do Congresso, fornecendo meios para a aprovação de projeto, verbas e nomeações.

Por outro lado, a Casa Civil funciona como uma espécie de proteção para o presidente da República. Como o relacionamento com o Congresso é de mão dupla, a Casa Civil consegue aprovação de suas políticas, mas com isso precisa autorizar o pagamento de débitos. Por outro lado, o presidente sempre é posto na parede por deputados e senadores. Desde a época do Sarney, passando pelo período Itamar, depois Fernando Henrique e, agora, Lula, você tem essa situação em que o presidente da República se torna refém dos seus compromissos com o Congresso. A Casa Civil é, então, um ponto nuclear para que ele se proteja de uma abordagem ou cobrança direta.

Quanto mais fisiológico o presidente da República, mais fisiológico vai ser o exercício da Casa Civil. O Fernando Henrique foi acusado, inclusive no caso da reeleição, de ter feito um mensalãozinho para conseguir a aprovação do projeto. Mas a média do trato do Fernando Henrique com o Congresso não passou por esse fisiologismo escancarado que o Lula assumiu, em companhia dos seus neo aliados – Sarney, Renan Calheiros e toda essa gente. A taxa de fisiologismo aumentou porque os aliados no Congresso também são experts nessa tarefa.

A Casa Civil mostra um defeito fundamental do Estado brasileiro, que é a super hegemonia do Executivo sobre o Legislativo, mas que não é uma hegemonia absoluta. Ela precisa ser adquirida seja por concessões ou meios heterodoxos do ponto de vista de se conseguir os tais votos favoráveis, a famosa base aliada de governo. Então, no caso do aspecto institucional, é um lugar altamente perigoso para qualquer ocupante, porque fica entre duas frentes, duas ordens de interesse, que muito dificilmente se coadunam. São interesses do presidente e do Congresso.

Para exercer o cargo de ministro-chefe é preciso ter capacidade diplomática, firmeza jurídica e uma integridade muito grande. Isso se mostrou muito complicado no caso do José Dirceu. A ministra Dilma, ao invés de assumir essas negociações diretamente, como fez Dirceu, delegou, inclusive à própria Erenice Guerra. Como já surgia no horizonte a possibilidade de sair candidata, desde que ela foi escolhida como ministra-chefe, Dilma diminuiu muito [a participação nesse processo]. Mesmo assim, houve muitas queixas de ministros e parlamentares da base aliada sobre a rispidez dela e pelo fato de não ter o dom fundamental para o cargo, a diplomacia.

Já na questão pessoal, quando alguém chega a esse cargo, passa a mediar a relação da Presidência da República com os demais poderes. Eu me referi anteriormente ao Congresso, mas na verdade o mesmo problema ocorre com o Judiciário. As contas do Judiciário passam por negociação na Casa Civil para chegar à Presidência. Quando não há uma pessoa que seja absolutamente diplomática, que seja também ao mesmo tempo capaz de ter um juízo seguro e uma prática segura do ponto de vista jurídico, o desastre acontece como ocorreu com o Dirceu e com a Erenice. É impossível imaginar alguém que esteja na mediação com o Legislativo e com o Judiciário fazendo essa troca de parentalha e de favores.

No caso da Erenice Guerra, somou-se o perigo do cargo, que podemos dizer assim: “um fio permanentemente desencapado, que precisava ser tocado com luvas de borracha”. E ela pôs a mãozona, tanto do ponto de vista institucional, como do pessoal. Essa carta que ela produziu no dia anterior à queda, com o timbre da Casa Civil, sem consultar o setor jurídico e o superior dela, que é o presidente da República, dando uma declaração política atacando o candidato da oposição dizendo que ele era aético e derrotado, mostra que ela não estava preparada para um cargo dessa complexidade.

Ela não soube distinguir a função de ministra da função pessoal, não soube distinguir a sua pessoa de militante com a pessoa que ocupa um cargo. Neste caso, infelizmente, ela copia o mudus operandi do chefe dela, que também não sabe diferenciar entre ser presidente da República e ser chefe do Partido dos Trabalhadores, como disse muito bem o Fernando Henrique Cardoso, ao afirmar que Lula se comporta como chefe de facção e não como presidente da República.

Essa discussão institucional é importante porque é um problema permanente. Se o Serra ou a Marina forem presidentes no futuro, eles vão ter esse problema porque é do regime presidencial brasileiro. Há duas pautas: a pauta do presidente, que é a pauta nacional, e a pauta do Congresso, que é a das oligarquias regionais. E essas pautas têm que ser resolvidas de algum jeito porque se não o presidente cai.

Isso foi muito bem equacionado, no sentido péssimo, no governo Sarney. Já o Collor não tinha como resolver isso porque era de um partido absolutamente insignificante e não empolgou o PMDB. O Itamar ficou por um período pequeno e muito combatido e o Fernando Henrique teve que amargar o pão que o diabo amassou para poder compor a tal da base aliada de governo. Tinham brigas do PFL com o PSDB a toda hora.

CA: Nos últimos anos, a Casa Civil da Presidência da República foi palco de escândalos como o do Waldomiro Diniz (suposto envolvimento com bicheiros), o mensalão (suposta mesada para parlamentares) e agora o da Erenice Guerra (suposto lobby), entre outros. Como evitar que a Casa Civil fique vulnerável a isso?

Romano: O primeiro ponto é a urgentíssima aprovação do projeto sobre a regulamentação do lobby, que é de autoria do [deputado] Carlos Zaratine, do PT. Isso interessaria a toda a oposição, a todo o setor que tenta um controle mais efetivo da movimentação junto às autoridades públicas. O projeto do Zaratine é bom. Tem alguns defeitos que acho sanáveis como, por exemplo, prever um ano para as pessoas se desincompatibilizarem do cargo, o que é muito pouco. Imagine alguém que trabalhou no Banco Central um ano depois. Ele ainda terá todas as referências, tudo certinho.

Mas a regulamentação do lobby é fundamental. Neste caso, por exemplo, se existisse a regulamentação, em primeiro lugar um filho de ministra que usou da sua qualificação de filho para conseguir algo estaria fazendo lobby ilegal. E a própria ministra poderia se tornar culpada. Se existisse a profissão do lobby, as pessoas estariam cadastradas, registradas e teriam o direito de conversar com ministros do Supremo, com o presidente da República. Isso deixaria claro à mídia e à opinião pública sobre o que está sendo pressionado. Agora, essa história de senador telefonar para ministro às 2h da manhã: “olha, aquele projeto”. Isso só coloca o presidente da República ou na defensiva ou na ofensiva no sentido péssimo da palavra.

O segundo ponto que me parece importante é acabar de vez com o privilégio de foro dos políticos. Assim, atenua-se essa tarefa de lobista que todo senador e deputado pode cumprir. Diminuiria a pressão desses deputados sobre a Casa Civil e o presidente.

O terceiro ponto que considero importante é que as contas do governo sejam cada vez mais postas diante dos olhos dos cidadãos. Porque se não houver todos esses mecanismos, evidentemente não se pode imaginar que isso pode acabar. Os escândalos aparecem um depois do outro, às vezes com um intervalo muito curto. O problema é que nós temos um sistema crônico de corrupção. Agora mesmo, enquanto estamos conversando, tenho certeza que tem gente roubando, gente metendo a mão na coisa pública. É muito difícil quebrar um sistema inteiro. Por isso, medidas como essas atenuam essa facilidade de deputados e senadores funcionarem como lobistas.

CA: Em uma entrevista ao Contas Abertas na virada de 2009 para 2010, o senhor garantiu que este ano seria marcado por escândalos. Diante do quadro que temos, parece que o senhor acertou. Por que, naquela ocasião, o senhor fez a previsão?

Romano: Eu devia ter metido a mão na boca, porque isso [a situação atual] é muito ruim (risos). Os problemas passados não foram resolvidos. Neste caso do lobby, é evidente que quando você está para mudar o governo, mesmo que continue o mesmo partido no poder, os negociadores vão mudar. Então, todo mundo vai correr para assegurar aquilo que já está garantido. Era evidente que fatos desse tipo ocorreriam.

O desgaste do Estado brasileiro é notório. É preciso que haja um ajuste da máquina de Estado, que foi elaborada no século XIX e se desgastou, não está atualizada. Há uma burocracia que é ao mesmo tempo imensa e pequena para as necessidades. Gasta-se muito com funcionalismo público, ao mesmo tempo em que não se gasta intensivamente e qualitativamente. Por outro lado, há esse desequilíbrio das contas públicas do município e até da federação. Isso não foi resolvido. O fluxo de impostos continua indo diretamente ao poder central e para sair dele e chegar ao município, nós conhecemos bem quais são os procedimentos. Tudo isso fazia prever que a situação seria essa, infelizmente.

CA - Pesquisas recentes mostram que a campanha presidenciável de Dilma Rousseff não foi afetada pelas crises da Receita Federal e da Casa Civil. O senhor acredita que a sociedade brasileira está anestesiada e que hoje esses fatos já estão banalizados?

Romano: Procurei, durante mais de 30 anos, um livro que li quando era estudante chamado “a manipulação das massas pela propaganda política”. (...) Esse livro, do autor Serge Tchakhotine, da social democracia alemã, mostra a preocupação quanto à eficácia da propaganda nazista. Ele tentou modificar essa eficácia utilizando também métodos eficazes de contrapropaganda. Mas a social democracia, muito burocratizada e dogmatizada, não o escutou, achou que era bobagem e que eles tinham de fazer discursos estatísticos, convencer a população de que a política deles era melhor [do que a dos concorrentes]. Nas regiões onde os métodos que o autor propôs foram utilizados, a social democracia ganhou.

O elemento central do livro é que de cada 100 pessoas, no máximo dez têm condições de crítica diante de um “estupro” de propaganda. Essa é a tese dele. Por outro lado, ele propõe métodos para modificar essa situação de massas. Desde o primeiro dia do governo Lula, a população, a própria mídia e a universidade são submetidas a uma maciça dose de propaganda. Deu certo para a eleição, “Lulinha paz e a amor”, “pai do povo”, pobre e tal. O Lula tem um “Physique du Rôle”, como se diz na França. Ele sabe encarnar o personagem. É um artista da política.

O primeiro governo dele foi de propaganda. Com essa propaganda maciça e com essas alianças absolutamente impensáveis no antigo programa do PT, ele conseguiu atravessar a crise do mensalão e conseguiu também se reeleger. E esse segundo mandato também tem sido de propaganda contínua. Inclusive atingindo até mesmo a credibilidade científica de instituições como, por exemplo, o IBGE. Às vezes é muito complicado aceitar aqueles dados que vêm de lá.

O governo Lula é um governo de propaganda. Essa eleição não está sendo decidida, em termos eleitorais, agora. Está sendo decidida desde a primeira eleição do Lula. No caso da sucessora nomeada há pelo dois anos, a propaganda está sendo maciça. Ele pegava a Dilma no bolso e levava ao Rio Grande do Sul, ao Amazonas e não sei mais para onde inaugurar obras inexistentes e tudo mais. É um governo que tem um senso do marketing e uma capacidade de “estupro”, como diz o Serge Tchakhotine [autor do livro citado], absolutamente fantástico. E tem uma assessoria que o João Santana [marketeiro da Dilma] não é para brincar. O que estamos vendo é o resultado de oito anos de intoxicação de propaganda, com eficácia muito grande.

CA: A alta popularidade do presidente Lula e o bom momento econômico que o país vive fazem com que o cidadão despreze questões éticas, já que outras áreas há desenvolvimento?

Romano: É uma coisa meio complicada. Se você observa a câmara de comércio exterior do Brasil, verá que os prognósticos não são nada lisonjeiros. Nós não estamos exportando produtos de valor agregado, e sim commodities. Voltamos à velha história do Brasil, do ciclo de exportação de matérias primas. Se analisar esse dado, percebe-se que a economia não é tão maravilhosa como se diz.

Segundo ponto: o investimento brasileiro em ciência e tecnologia continua em patamares muito semelhantes aos tradicionais. Portanto, não há possibilidade de modificar qualitativamente a produção brasileira. Então, o que está acontecendo? Existem massas consumindo produtos importados, baratos, mas não ligados a uma mudança qualitativa do modo de produção brasileiro. O máximo que se tem de investimento em tecnologia é via Embrapa, via institutos biológicos, etc., no aprimoramento da soja e coisas assim. Mas não há uma complexa modificação da estrutura industrial. Pelo contrário, há uma tendência de desindustrialização.

O terceiro ponto é a qualificação econômica dessa famosa classe média. Eu acho um pouco estranho que economistas competentes aceitem a determinação de classe média para alguém cuja renda não vai além de R$ 1,5 mil. É algo complicado. Eu não sou economista e não quero quantificar em terreno alheio, mas boa parte desse “feel good” é também propaganda.

Eu acho que os intelectuais, muitas vezes e por vários motivos, deixam de falar a coisa certa, por receio político e por ter medo do seu isolamento. Quando você está nessa situação, em que um poder ou governo está em maioria de popularidade, é muito difícil criticar. Você pode se isolar, perder recursos de pesquisa, etc. Mas é o dever ético de todo intelectual, especialmente em situação de maré montante e autoritária, não ser omisso.



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