Desacorçoados com a revelação pela imprensa de evidências irrefutáveis de corrupção no Palácio do Planalto, Lula e seu partido sacam do autoritarismo e atiram na imprensa, que acusam de ser golpista e de inventar histórias. Eles querem um jornalismo melhor? Não. Querem jornalismo nenhum
Os reflexos da sucessão de escândalos que fizeram a lama subir até o gabinete mais próximo da Presidência da República e derrubaram até agora sete funcionários do governo fizeram-se sentir pela primeira vez nas pesquisas eleitorais divulgadas na semana passada. Segundo o instituto Datafolha, a diferença entre os votos da petista Dilma Rousseff e a soma de seus concorrentes caiu 5 pontos porcentuais em sete dias. A queda provocou uma violenta reação do governo. Não contra os acusados de malfeitorias e corrupção na Casa Civil, de onde emanaram os episódios mais cabeludos, mas contra quem os denunciou. Em uma série de comícios e entrevistas, o presidente Lula dedicou a semana a desferir ataques contra a imprensa com uma virulência inédita. Afirmou que os veículos de comunicação “inventam” coisas e torcem “para o Lula fracassar”. Vociferou contra jornais e revistas que destilariam “ódio” e prometeu “derrotar” aqueles que “se comportam como se fosse um partido político”. Foi um passo perigoso.
Nos países democráticos, a liberdade de imprensa não é um assunto discutível, mas um dado da realidade. E nem eventuais opiniões divergentes, exageros e mesmo erros passíveis de arbitragem e punição cometidos por jornalistas podem pôr em risco o direito de informar, o dever de fiscalizar e de alertar para os abusos perpetrados por quem está no poder. Quando um presidente da República tenta enxovalhar a imprensa que o critica e ameaça “derrotá-la” significa que acaba de adentrar no temível pântano da censura - e pouca coisa pode ser mais deletéria do que isso para uma democracia. Ao sujar suas botas nesse lodo, Lula se aproxima do que há de pior na política da América Latina. Trilha o caminho dos caudilhos e ombreia-se com tiranetes do porte de Hugo Chávez, o presidente venezuelano que, para não ver suas próprias contradições expostas, solapou jornais, emissoras de rádio e chegou a fechar o principal canal de TV da Venezuela, a RCTV.
Os ataques de Lula contra a imprensa levaram o jornal carioca Extra, das Organizações Globo, a estampar na sua capa uma crítica tão bem-humorada quanto precisa. Na sexta-feira, o jornal circulou com uma carta de baralho em que Lula aparecia como o Rei. Sobre a extremidade superior da carta, a manchete dizia: “Lula é bonito - Essa é a manchete para quem acha que o papel da imprensa é bajular os donos do poder e, por isso, deve publicar apenas notícias positivas do governo. Denúncias de falcatruas são um abuso, uma forma de conspiração". Na outra extremidade do baralho, escrito de ponta-cabeça, vinha a contraposição: “Bonito, hein, Lula.... - Essa é a manchete para os que acham que o papel da imprensa é fiscalizar os atos de qualquer governo, denunciando os desvios e lembrando que eles não estão acima do bem e do mal”.
A estratégia de tentar controlar a imprensa está no DNA do PT. A primeira investida em larga escala contra o que o partido chama de “mídia” se deu em 2004. Naquele ano, Luiz Gushiken, então secretário de Comunicação do governo, levou a cabo uma tentativa frustrada de criar o Conselho Nacional de Jornalismo - um nome pomposo para esconder uma tentação totalitária. A realizar-se o desejo do PT, o conselho iria “orientar, disciplinar e fiscalizar” os jornalistas. A ideia naufragou assim que foi revelada pela imprensa, mas não morreu nem foi enterrada. Em diversas oportunidades, o PT e o governo petista tentaram relançá-la - repaginada, recauchutada ou disfarçada de “conselhos” - aqueles órgãos que seriam formados por uma certa “sociedade civil” que ninguém jamais conseguiu enxergar fora do arco de alianças do partido e que teriam como função, por exemplo, interferir na programação das emissoras de TV.
Na semana passada, num movimento concertado com os ataques presidenciais, o PT organizou uma manifestação contra o que chamou de “golpismo midiático”. Anunciado no site oficial do partido, o ato convocava os filiados a enfrentar “a onda de baixarias que visa forçar a ida de José Serra ao segundo turno”. A “onda de baixarias”, bem entendido, eram as reportagens que revelaram, entre outros descalabros, que petistas violaram o sigilo de pessoas próximas ao candidato do PSDB, José Serra, e que a família de Erenice Guerra, ex-ministra da Casa Civil e ex-braço direito de Dilma Rousseff, operava um balcão de negócios na soleira da porta do gabinete presidencial. A nota irônica do episódio ficou por conta da atual diretoria do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, que se ofereceu para abrigar a manifestação petista contra... os jornalistas. Talvez tenha sido a forma encontrada por seus diretores de movimentar a desolada sede da entidade, esvaziada por sua irrelevância e falta de representatividade. Entre brados contra a “conspiração da imprensa” disparados pelo presidente do PC do B, Renato Rabello, e discursos em defesa do “controle social da mídia”, feito pela deputada Luiz Erundina, do PSB, chegou-se a uma conclusão que deixou exultantes os participantes: Lula não avançou o quanto poderia no controle da imprensa. Dilma, se eleita, deverá fazê-lo.
Em contrapartida à investida do governo e do PT, um grupo de notáveis se organizou para repudiar os ataques contra a liberdade de imprensa. O grupo incluía, além de representantes históricos da esquerda, como o jurista Hélio Bicudo, um dos fundadores do PT, nomes como o do arcebispo emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e dos ex-ministros da Justiça Paulo Brossard, Miguel Reale Junior, José Carlos Dias e José Gregori. Reunido no centro de São Paulo, no Largo São Francisco, em frente à Faculdade de Direito, o grupo presenciou a leitura de um manifesto em defesa da democracia lido por Hélio Bicudo. Colocado na internet, o manifesto contava com mais de 30.000 adesões até sexta-feira. No Rio de Janeiro, a concentração se deu no Clube Militar, onde 500 pessoas se reuniram para discutir os ataques à imprensa - estiveram lá os colunistas Reinaldo Azevedo, de VEJA, e Merval Pereira, de O Globo.
Os principais candidatos a presidente da República também repudiaram o cerco aos veículos de comunicação. O tucano José Serra, em campanha no Mato Grosso, afirmou: “O que está incomodando este pessoal é o fato de que a imprensa está apresentando notícias que mostram abusos, desvios de dinheiro, nepotismo, maracutaia com dinheiro público, e esta imprensa incomoda os donos do poder. É somente isso. Não há país democrático no mundo sem imprensa livre”. A senadora Marina Siva, do PV, tratou do assunto em uma entrevista coletiva em São Paulo: “O presidente fez uma crítica à imprensa que é contraditória com toda a sua trajetória. Considero fundamental a cobertura da imprensa”. A petista Dilma Roussef apresentou-se bem mais comedida do que seus companheiros de partido: “A imprensa pode falar o que bem entender. Eu, o máximo que vou fazer quando achar que devo, é protestar dizendo: está errado o que disseram por isso, por isso e por isso. Usando uma coisa fundamental que é o argumento”. Dilma também rechaçou a mais explosiva das propostas do seu partido: “O único controle social da mídia que eu aceito é o controle remoto na mão do telespectador”. Se Dilma está sendo sincera em suas afirmações, não se sabe. Mas a ela, que nunca teve a oportunidade de exercer um cargo eletivo, cabe o benefício da dúvida. Já em relação a certos representantes do alto-petismo restam apenas certezas, incluindo a de que, em um eventual governo Dilma, o partido insistirá na estratégia autoritária.
O principal defensor deste projeto é Franklin Martins, ex-sequestrador, ex-jornalista e atual ministro da Comunicação Social de Lula. Franklin é o idealizador da estratégia de consumir o dinheiro público na compra do apoio - disfarçado de anúncio publicitário - de pequenos jornais, rádios do interior, revistas e blogs de alcance semelhante. Caso Dilma vença, seu próximo projeto será cuidar da reforma do arcabouço jurídico que regula o funcionamento das TVs abertas e fechadas, das rádios, dos provedores de internet e das empresas de telecomunicações no Brasil. Franklin pretende criar uma superagência reguladora para o setor. Ela seria responsável pelos aspectos técnicos do setor, mas também - e aqui mora o perigo - teria ascendência sobre os “conteúdos” que ele produz. Eis o pensamento vivo e franco do ministro a respeito do assunto: “Acham que regulação é um atentado à democracia, mas é o contrário: é parte da garantia de competição, de igualdade de direitos, da capacidade de inovação, da massificação dos serviços e do direito da sociedade à informação", embaralha.
Recentemente, Franklin Martins foi autorizado por Lula a viajar para a Europa, tão logo acabem as eleições, para convidar para um seminário representantes de instituições reguladoras da comunicação social da Inglaterra e da Bélgica. Não que o ministro deseje ouvir a opinião de alguém. Ele apenas espera que a presença de representantes de outros países legitime a conferência que tentará, mais uma vez, aprovar o velho programa petista de controle da mídia. O contrapeso à corrente de Franklin dentro do partido é liderado pelo ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, coordenador da campanha de Dilma. Em 2003, ele fez parte da campanha de Lula e foi o fiador da estabilidade econômica no governo. Espera-se que, em um eventual novo governo petista, seja também um fiador da estabilidade democrática.
Ao contrário do que Lula e seu partido querem fazer crer, a liberdade de imprensa não constitui um fim em si mesmo nem visa a preservar a liberdade de expressão para jornalistas ou proprietários de empresas de comunicação. A liberdade de imprensa vai além disso: é um meio para garantir a perpetuação das sociedades livres e democráticas. E não por outra razão é quase sempre a primeira vítima das tiranias de todas as colorações.
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