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sábado, 6 de março de 2010

Diabetes - Ele vai pegar você?

Obesidade + Diabetes = Diabesidade
A epidemia mundial de obesidade vai provocar milhões de novos casos de diabetes nas próximas duas décadas. A combinação das duas doenças é hoje o maior desafio da saúde no mundo. Como vencê-lo?


CRISTIANE SEGATTO
RICARDO CORRÊA

Foi-se o tempo em que a enorme concentração de gordos era motivo de espanto para os brasileiros que viajavam para os Estados Unidos. A obesidade (em todos os graus e formas) está definitivamente entre nós. No Brasil de 1975, 16% da população estava acima do peso ideal. Hoje são 43%. Esse é um daqueles fenômenos cuja comprovação está ao alcance dos olhos. Passe uma manhã na Praia de Copacabana, na Avenida Paulista ou em qualquer outro cartão-postal do país e conte quantos obesos cruzam seu caminho. O efeito mais evidente da obesidade é estético, aquele que você reconhece de longe. O mais grave é o que você não vê. Ele já ganhou nome: diabesidade. Os obesos de hoje serão os diabéticos de amanhã. Pior que o avanço da obesidade é a epidemia global de diabesidade. O binômio usado para designar a mistura das duas doenças é hoje o maior desafio da saúde pública no mundo. Enfrentá-lo é mais difícil que encontrar uma vacina contra um vírus novo. É preciso mexer no estilo de vida e na cultura, mudar hábitos alimentares e o comportamento de populações inteiras. Não é fácil. “O diabetes vai afetar cada vez mais pessoas e ameaçar economias”, diz Jean Claude Mbanya, presidente da Federação Internacional de Diabetes. “Se não tornarmos acessível um estilo de vida saudável, em pouco tempo o mundo vai gastar bilhões de dólares com as complicações dessa doença.” Nas próximas duas décadas, os novos casos de diabetes vão crescer 54% no mundo, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2030, haverá 438 milhões de diabéticos no planeta. Na América Central e do Sul, o crescimento será ainda mais acentuado (65%). Isso significa que quase 30 milhões de pessoas terão a doença em nosso continente (leia no infográfico).

O Ministério da Saúde estima que existam no Brasil 11 milhões de diabéticos (muitos deles sem diagnóstico). A doença pode começar a afetar o organismo dez anos antes de o paciente desconfiar que há algo errado. “Diabetes junto com obesidade é uma desgraça”, diz o professor José Carlos Pareja, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além dos 438 milhões de diabéticos que a OMS prevê que o mundo terá em 2030, haverá um grupo ainda maior de pessoas que estão prestes a se tornar diabéticas. São os portadores da síndrome metabólica. Ela é caracterizada por acúmulo de gordura abdominal, intolerância à glicose, hipertensão, colesterol e triglicérides elevados. Mais cedo ou mais tarde, 65% dessas pessoas vão se tornar diabéticas.

Refletir sobre as consequências futuras da obesidade tornou-se urgente. Principalmente depois da divulgação de estudos recentes segundo os quais uma pessoa que come em excesso ou fuma pode aumentar o risco de obesidade na geração futura. A hipótese por trás dessa ideia é que o estilo de vida pode ativar ou silenciar genes. Hábitos inadequados poderiam estimular a manifestação de genes que aumentam o risco de obesidade. E, segundo os pesquisadores, essa informação biológica poderia ser transmitida pelo menos à geração seguinte . É mais um fator que pode impulsionar o avanço da diabesidade, cujos danos ao organismo são gravíssimos: falência dos rins, hipertensão, insuficiência cardíaca, AVC, amputações, impotência sexual e cegueira.

O que a gordura tem a ver com diabetes?

A principal fonte de energia do organismo são os carboidratos presentes na alimentação. Eles são encontrados nas massas, nos doces, nas frutas. No aparelho digestivo, os carboidratos são transformados em glicose. Para entrar nas células, a glicose precisa de ajuda. Dar esse empurrãozinho é o papel da insulina, o hormônio produzido no pâncreas. Nos obesos, a insulina tem mais dificuldade para transportar a glicose para dentro das células. Sobra glicose na circulação e o pâncreas reage fabricando mais insulina. Com o tempo, chega à exaustão e não consegue mais fabricar o hormônio .

Cerca de 80% das pessoas que têm diabetes tipo 2 estão acima do peso. Quando o diabético engorda, fica mais difícil manter os níveis ideais de açúcar no sangue. A outra forma de diabetes (tipo 1) tem pouca relação com a obesidade. Ela depende de fatores genéticos e é caracterizada por uma resposta exagerada do sistema imune, que lança um ataque contra o pâncreas do próprio paciente. Apenas 5% dos casos são do tipo 1. O pâncreas desses pacientes não produz insulina. Eles precisam, obrigatoriamente, receber doses de insulina.

Nos últimos anos, houve avanços no tratamento do diabetes tipo 2. Surgiram drogas modernas que tornaram mais confortável a convivência com a doença. Os remédios agem em várias frentes: estimulam o pâncreas a secretar mais insulina, inibem a ação de uma enzima que compromete o bom funcionamento do pâncreas e aumentam a habilidade da insulina de empurrar a glicose para dentro das células.

Nos obesos, a insulina tem mais dificuldade para transportar
a glicose para dentro das células. É o início do problema

Graças à disciplina com que toma os remédios e importantes mudanças na dieta, a administradora de empresas Silvia Maria Daidone Liziero, de 46 anos, tem conseguido conviver muito bem com o diabetes. Diagnosticada em março de 2009, sua doença é consequência do excesso de peso. Silvia é obesa (pesa 90 quilos e tem 1,62 metro) e pertence a uma família de origem italiana. Nunca resistiu às delícias altamente calóricas servidas nos encontros de família. Foi engordando, engordando, até que se tornou diabética. A mesma história se repetiu com as duas irmãs, vários primos, os pais e os avós. “Tenho mais de dez diabéticos na família”, afirma. “Se comprássemos remédio no atacado, acho que faríamos uma boa economia.” A doença não parece ser fruto de um erro genético, e sim de hábitos passados de geração a geração. Silvia decidiu se cuidar para não ter o mesmo destino do pai, que perdeu a visão e morreu de complicações renais decorrentes do diabetes. Toma metformina de ação prolongada rigorosamente (de manhã e após o jantar). O remédio combate o diabetes e reduz o colesterol. Além dele, Silvia usa medicamentos contra hipertensão e colesterol alto. Sua dieta passou por uma revisão geral no último ano. Trocou as massas tradicionais pelo macarrão integral, feito com soja, trigo e aveia. Tornou-se vegetariana. Os doces que comia todos os dias viraram uma espécie de prêmio por bom comportamento. Toma um sorvete ou come um pedaço de chocolate amargo apenas no fim de semana. Não perdeu peso, mas também não engordou. “O remédio está sendo eficaz, e as mudanças de estilo de vida não me trouxeram grandes privações”, diz.



Caio Guatelli
CONVIVÊNCIA PACÍFICA
Silvia no Horto Florestal, em São Paulo, onde faz caminhadas. Ela conseguiu controlar o diabetes com remédios, mudanças na dieta e atividade física. “Vivo bem com a doença”, diz
Como ficar longe da doença?

Ainda não inventaram nenhuma forma mais eficaz de evitar esse mal que seguir a boa e velha receita de vida saudável: alimentação adequada e atividade física. O.k., você deve estar cansado de ouvir esse conselho, mas não existe recurso mais poderoso. Quem segue as cinco regras abaixo, recomendadas pela Sociedade Brasileira de Diabetes, tem grandes chances de nunca ter a doença.

1. Coma alimentos ricos em fibras (frutas, verduras e legumes) e evite descascar itens que podem ser ingeridos com casca.

2. Diminua a quantidade de gorduras (óleo, manteiga, cremes) e de carboidratos (principalmente massas e doces). Prefira alimentos grelhados e cozidos.

3. Reduza a quantidade total de alimentos a cada refeição. Faça várias pequenas refeições ao longo do dia e controle o total de calorias de cada uma delas.

4. Se comer uma sobremesa light ou diet, fique apenas com uma porção. Comer o dobro equivale a consumir um doce supercalórico.

5. Descubra uma atividade física prazerosa e seja disciplinado. Exercícios garantem uma dupla proteção: combatem os quilinhos extras e tornam o praticante mais vigilante em relação ao que coloca no prato.

A obesidade é um importante desencadeador do diabetes, mas não é o único. Os outros fatores de risco são: idade (estar acima de 45 anos); sedentarismo; hipertensão; colesterol e triglicérides elevados; e história familiar.

Há muitos recursos para o tratamento clínico do diabetes. Muitos pacientes, porém, não alcançam o sucesso esperado. “Os remédios ainda não são perfeitamente eficazes”, diz o endocrinologista Antonio Carlos Lerario, um dos diretores da Sociedade Brasileira de Diabetes. “Entre 30% e 50% dos pacientes não conseguem controlar a doença”, afirma. Conviver com o diabetes requer disciplina. É preciso seguir a dieta, não descuidar dos remédios, controlar (com rigor) os níveis de açúcar no sangue e tomar insulina quando necessário. Os índices de glicemia podem variar durante o dia todo, pois flutuam ao sabor das emoções. Basta um momento de nervosismo para o índice subir ou cair abruptamente. Quando isso acontece, a pessoa pode desmaiar. A cirurgia pode ser a solução?

A cirurgia pode ser a solução?

Tantos inconvenientes explicam por que muitas pessoas são atraídas pela promessa de cortar o mal pela raiz por meio de uma operação. Nos últimos anos, os médicos observaram que diabéticos obesos submetidos às cirurgias convencionais de redução de estômago tinham uma melhora impressionante do diabetes. E isso ocorria muito mais rápido que a perda de peso. Poucos dias depois de deixar o hospital, os níveis de açúcar (glicemia) no sangue eram normalizados.

A explicação: quando o cirurgião altera o trato gastrintestinal por meio da técnica de redução do estômago mais adotada no mundo (chamada de derivação gástrica, ou bypass gástrico), ocorrem importantes mudanças hormonais. A cirurgia suprime o hormônio que aumenta o apetite (grelina) e estimula a liberação no intestino de outros hormônios (chamados de incretinas) que contribuem para o aumento da produção de insulina pelo pâncreas. É por isso que muitos pacientes se livram completamente dos remédios.

A cirurgia, porém, não é solução para todos os pacientes. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica revisou as evidências científicas disponíveis na literatura médica internacional e divulgou em novembro um consenso sobre o assunto. Segundo a entidade, a cirurgia só pode ser indicada a diabéticos tipo 2 com índice de massa corpórea (IMC) acima de 35. Para calcular o IMC, basta dividir o peso (em quilos) pela altura (em metros) elevada ao quadrado. Para quem tem IMC entre 30 e 35 e não consegue controlar a doença por outros meios, a cirurgia também pode ser cogitada.

Segundo o consenso, apenas três técnicas cirúrgicas podem ser usadas: a derivação gástrica (ou bypass gástrico), a banda gástrica e as chamadas derivações biliopancreáticas . Todas elas são regulamentadas e usadas há vários anos para a redução de peso e, mais recentemente, para livrar os pacientes do diabetes. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica não recomenda que as pessoas se submetam a outros tipos de operação – a não ser que se inscrevam como voluntárias em estudos científicos controlados e aprovados por comitês de ética em pesquisa. Como voluntárias, elas devem ser operadas gratuitamente e acompanhadas sem nenhum custo em caso de complicações.

Faz quatro anos que cirurgias não regulamentadas são divulgadas no Brasil com a promessa de cura do diabetes. O caso mais conhecido envolve o cirurgião goiano Aureo Ludovico de Paula. Ele operou centenas de pacientes – entre eles o apresentador de TV Fausto Silva e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) – com uma técnica chamada de interposição do íleo. A parte final do intestino delgado (íleo) é deslocada para a porção do intestino mais próxima do estômago. Em congressos e artigos que publica em revistas científicas, Aureo afirma que quase 90% dos doentes ficam totalmente livres do diabetes. É possível, mas a técnica não foi aprovada para uso em humanos em nenhum lugar do mundo. “Não sabemos quais serão os efeitos da interposição do íleo a longo prazo”, diz o endocrinologista Antonio Carlos Lerario, da Sociedade Brasileira de Diabetes. “É preciso ter cautela e lembrar sempre de episódios desastrosos como o da talidomida.” Lerario refere-se à droga que era usada para controlar enjoos na gravidez e foi banida depois do nascimento de milhares de crianças defeituosas.

Em novembro, o Conselho Nacional de Saúde (órgão do Ministério da Saúde) considerou ilegal a técnica oferecida por Aureo. A procuradora Léa Batista de Oliveira, do Ministério Público Federal, entrou com uma ação civil pública contra o médico (pela prática de cirurgia experimental em desconformidade com a legislação brasileira) e o Conselho Regional de Medicina de Goiás (por omissão diante dos atos do médico). Ela recebeu denúncias de 12 supostas vítimas que relataram sete mortes. Aureo disse a ÉPOCA que dispõe de farta documentação científica a seu favor e está preparando sua defesa. “O que eu faço não é ilegal nem experimental.” O assunto está nos tribunais.

Marisa Cauduro
ELE DESCONFIOU
Rangel numa praça em São Paulo. Ele agendou a cirurgia com Aureo e foi até Goiânia. Desistiu na última hora. “Não acreditem em toda novidade médica que aparece”, diz

O episódio demonstra a vulnerabilidade dos brasileiros diante das novidades oferecidas pelos médicos. Quem assegura que uma técnica inovadora divulgada pela mídia foi submetida a estudos rigorosos, realizados dentro da lei? Quem impede um médico de realizar cirurgias não regulamentadas mesmo depois dos alertas feitos por todas as entidades médicas e pelo Conselho Nacional de Saúde? O caso do doutor Aureo demonstra que a principal proteção com a qual os pacientes podem contar é seu próprio julgamento crítico. Sempre que uma novidade parecer boa demais para ser verdade, é preciso desconfiar dela. É essencial ouvir várias opiniões médicas e pesquisar sobre o assunto.

Foi o que fez o funcionário público Edivaldo Rangel, de 52 anos. Diabético desde 1994, Rangel tomava 12 remédios por dia. Sete só para o diabetes. Tinha hipertensão e colesterol alto. As variações nos níveis glicêmicos provocavam suores, tonturas, mal-estar. Pesava 120 quilos (mede 1,84 metro) e não praticava atividade física como deveria. Quando leu uma reportagem sobre a cirurgia de interposição do íleo, Rangel achou que havia encontrado a solução para seu caso. Fez os exames em São Paulo e agendou a cirurgia em Goiâ­nia porque o hospital era mais barato. Desistiu na última hora. “Havia gente demais querendo fazer a cirurgia. Senti que aquilo era uma linha de produção e fiquei com medo”, diz.

Rangel descobriu outro cirurgião que optou por fazer a técnica regulamentada (bypass gástrico) e foi sincero ao dizer que não poderia garantir o resultado. Rangel foi operado em julho de 2009. Alguns dias depois, os índices de glicemia estavam normalizados. Continua tomando metformina (uma das drogas baratas mais usadas contra o diabetes), mas se livrou dos outros remédios contra a doença. O conselho de Rangel: “Não acredite em toda novidade médica que aparece. Pesquise e procure médicos indicados por pessoas de confiança”, diz. Mais magro (está com 93 quilos e pretende chegar aos 90), Rangel se animou a fazer natação. Sente-se mais tranquilo e paciente – e precisa disso. É pai de sete filhos.

Qual é o futuro da cirurgia?

Muitas questões ainda precisam ser respondidas. O efeito da cirurgia dura para sempre? Podem ocorrer efeitos colaterais fatais? A cirurgia é mais vantajosa que o tratamento clínico? Algumas dessas perguntas poderão ser respondidas pelo estudo que está sendo realizado no Rio de Janeiro pelo Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia, ligado à PUC. Sessenta voluntários foram divididos em três grupos e serão submetidos a uma das três estratégias: o melhor tratamento clínico possível, cirurgia convencional (bypass gástrico) ou uma cirurgia experimental chamada de exclusão duodenal.

Nenhuma cirurgia foi aprovada para tratar os
diabéticos magros. Estudos estão em andamento

A maioria dos clínicos e dos cirurgiões concorda que a cirurgia de diabetes (depois de devidamente testada e aprovada) pode ter um grande futuro. Não parece haver uma disputa de mercado entre as duas especialidades. Nem uma guerra comercial entre a indústria farmacêutica e a de produtos cirúrgicos. “Apenas uma pequena parcela dos diabéticos estará apta a se candidatar à operação”, diz o cirurgião Ricardo Cohen, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. “Dizer que os laboratórios querem boicotar o avanço das cirurgias para diabetes é uma bobagem. Para a indústria farmacêutica, nós, os cirurgiões, somos irrelevantes.”

É possível também que no futuro a cirurgia seja indicada aos diabéticos magros. Essa possibilidade está sendo investigada pelo grupo da Unicamp. “Por enquanto não podemos operar diabéticos com IMC abaixo de 30 porque a cirurgia ainda não é regulamentada. Quando as pesquisas terminarem, talvez ela se torne uma boa opção”, diz o professor Pareja. Enquanto isso, os pacientes precisam se adaptar ao melhor tratamento clínico possível.

A tendência atual é medicar o diabético numa fase mais precoce para ajudar a manter as células do pâncreas ativas por mais tempo. Para que o diabético possa ter uma vida normal (e reduzir o risco de complicações), é preciso manter a doença sob controle. Isso significa manter o nível de glicose no sangue, em jejum, entre 80 e 110 miligramas por decilitro. Depois da alimentação, os níveis devem ser inferiores a 140 miligramas por decilitro. É preciso fazer dieta, atividade física, não descuidar dos remédios e usar insulina (caso seja necessário). “Existem muitos recursos para tratar o diabetes”, diz Ricardo Meirelles, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. “O mais difícil é convencer os pacientes a mudar hábitos de vida.” Se os obesos que ainda não são diabéticos resolverem adotar essas mudanças em 2010, lucrarão duplamente: vão emagrecer e conseguir manter o diabetes no terreno das ameaças epidemiológicas que não se concretizam.


A reabilitação do herege
A descoberta de que a dieta dos pais afeta o DNA dos filhos resgata, após 200 anos, a obra do maltratado Lamarck
Peter Moon
The Granger  Collection
VISIONÁRIO
50 anos antes de Darwin, Lamarck já era evolucionista. Mas sua obra caiu no esquecimento

No vigésimo primeiro dia do auspiciosamente denominado mês de Floreal (floração) , na primavera do ano 8 no calendário revolucionário francês (1800 para o resto do mundo) ”, escreveu o biólogo evolutivo americano Stephen Jay Gould, “o antigo cavalheiro, mas então cidadão Lamarck, proferiu a aula inaugural do curso de zoologia no Museu de História Natural de Paris – e mudou para sempre a ciência da biologia, ao apresentar o primeiro relato público de sua teoria da evolução.” Achar uma explicação para a diversidade dos seres vivos foi o motor intelectual do naturalista francês Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet (1744-1829), o Chevalier de la Marck. Lamarck foi o primeiro evolucionista. Em 1802, cunhou o termo biologia para definir o conjunto das ciências da vida. Em 1809, 50 anos antes de Darwin publicar A origem das espécies (1859), Lamarck intuiu em Filosofia zoológica que o principal suspeito por trás da complexidade dos seres vivos era a interação com o meio ambiente, por meio “de forças (externas) que tentam incessantemente complicar sua organização”. Em 1815, Lamarck postulou a existência de um ancestral de todos os animais, do qual descenderiam “diretamente e quase sem nenhum intervalo”. Em 1820, concluiu que a complexidade da vida deveria ser entendida na forma de ramos que se espraiam daquela raiz comum – o primeiro rascunho da “árvore da vida” feito por Darwin é de 1837.

Lamarck não conhecia o processo responsável pela evolução das espécies – a descoberta da seleção natural é mérito de Darwin –, mas seu valor científico é indiscutível. Ou deveria sê-lo. O principal adversário intelectual de Lamarck era Georges Cuvier, o naturalista mais influente da França. Cuvier repudiava a ideia da transformação dos seres vivos. Usou seu poder para destruir Lamarck. “Uma vez admitidos esses princípios (evolutivos) , percebe-se que não bastaria nada além do tempo e das circunstâncias para fazer um pólipo se tornar um sapo, uma cegonha ou um elefante... Um sistema estabelecido em tais fundações diverte a imaginação do poeta”, afirmou Cuvier.

Cuvier obteve sucesso em enterrar a premonitória, e essencialmente correta, teoria evolutiva de Lamarck. A imagem do naturalista que ficou para a posteridade está ligada a sua outra teoria, a errada. Em Filosofia zoológica, Lamarck diz existir outro meio, além da ação das forças externas, para explicar a mudança das espécies. As características adquiridas por uma geração poderiam ser herdadas pela seguinte. O exemplo usado foram as girafas. Seu pescoço seria comprido porque os animais se esticam para alcançar e comer as folhas das árvores. Girafas com o pescoço encompridado em vida teriam filhotes com pescoço maior. Isso não ocorre. Lamarck foi ridicularizado. O lamarckismo virou sinônimo de teoria com conclusões absurdas. Seu autor morreu cego e miserável. De lá para cá, sua obra permanece no limbo. “Em uma das maiores injustiças da história, a desaprovação de Lamarck persiste até nossos dias”, disse Jay Gould.

Em 1815, Lamarck imaginou um ancestral comum a todos
os animais. Darwin publicou a ideia em 1859

Em 2009, comemoraram-se os 200 anos de Darwin e os 150 anos da publicação de A origem das espécies. Só um punhado de acadêmicos celebrou o bicentenário da publicação da Filosofia zoológica. Chegou a hora da revanche. E o destino jocoso cuidou para que a reabilitação de Lamarck não se operasse pela recuperação de seu arbusto da vida, mas graças às girafas.

The Natural Museu Incondon
GLORIFICADO
Darwin influencia o mundo há 150 anos. O sucesso de sua teoria ofuscou a obra dos naturalistas seus antecessores – como o genial Lamarck

Em 1999, a geneticista Emma Whitelaw, do Instituto de Pesquisa Médica de Queensland, na Austrália, alimentou uma rata prenha com uma dieta rica em vitamina B12, ácido fólico e soja. Os filhotes cresceram magros, saudáveis e marrons – apesar de terem um gene para torná-los obesos, com pelagem amarelada e risco de ter diabetes e câncer. A ingestão de vitaminas “desligou” o gene da obesidade. Foi a primeira evidência de que a alimentação da mãe altera o DNA de seus óvulos e os genes herdados pelas crias. “Isto é Lamarck. É a herança de um traço adquirido pelos pais”, diz Whitelaw.

Sabe-se hoje que o lamarckismo também age sobre o Homo sapiens. Em 2005, geneticistas do University College de Londres descobriram que os netos de homens numa cidadezinha sueca que tiveram alimentação farta na infância tinham mais chance de ser diabéticos e viver menos do que os netos dos homens que passaram fome na infância. Em 2006, o mesmo grupo mostrou que pais que começaram a fumar ainda meninos tendem a ter filhos mais obesos do que os filhos de homens que não fumavam na pré-adolescência. Conclui-se que a alimentação e o fumo alteraram o DNA dos espermatozoides, que só começam a ser produzidos na adolescência.

Em 2009, as geneticistas israelenses Eva Jablonka e Gal Raz, da Universidade de Tel Aviv, listaram 100 casos comprovados de traços adquiridos e transmitidos entre gerações de organismos. É o nascimento de uma nova ciência, a epigenética, o estudo das mudanças na atividade dos genes que não envolvem alterações no DNA, mas podem ser passadas às gerações seguintes. “A herança epigenética é onipresente. Os 100 casos são a ponta do iceberg”, diz Jablonka.

Em Evolução em quatro dimensões – DNA, comportamento e a história da vida (Companhia das Letras, 520 páginas, R$ 59), lançado nesta semana no Brasil, Jablonka e Marion Lamb resgatam as “heresias” do maltratado Lamarck para defender a reforma da teoria evolutiva. A epigenética é uma faceta dessa nova visão, mais abrangente que a defendida pelo inglês Richard Dawkins em O gene egoísta (1976). Para Dawkins, a evolução são os genes. Tudo gira em torno deles. Somos meros veículos de sua transmissão. Jablonka e Lamb defendem uma visão que alie genética com epigenética, abrace as influências da cultura e dos genes sobre a evolução humana, incorpore a ação dos vírus (eles pulam entre as espécies, infectando seu DNA) e que associe, de uma vez por todas, Lamarck a Darwin.
O mundo diabético
A obesidade vai produzir milhões de diabéticos nas próximas décadas – casos da doença na população de 20 a 79 anos
Cristiane Segatto. Infografia: David Michelsohn








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