William Maia
Se estivesse vivo, Ayrton Senna teria completado 50 anos no último domingo. Sua trágica morte deixou o país desconsolado, em estado de choque. Multidões foram às ruas de São Paulo acompanhar o cortejo que levou o corpo do ídolo ao seu descanso final. O tema da vitória e a Canção da América de Milton Nascimento foram os hinos de 1994.
Tenho poucas lembranças daquele dia, também um domingo, ainda era muito pequeno. Só sei que aquela foi a primeira vez que vi meu pai chorar. Lembro de vê-lo atônito em frente à televisão e não compreender bem como ele poderia chorar por alguém que nunca havia visto na vida.
Tragédias como essa têm o poder de tocar e mover as pessoas, tirá-las de seu estado natural de passividade, dar a elas uma sensação de pertencimento e união difíceis de explicar.
Mas, se por um lado a comoção popular têm a capacidade de despertar solidariedade e fraternidade; por outro, pode trazer à tona aquilo que há de mais primitivo e irracional em cada um de nós.
Aqueles que comemoraram a condenação do casal Nardoni tocando o tema da vitória de Senna aceitariam uma absolvição?
Nesta segunda-feira (29/3), completam-se exatos dois anos do dia em que a menina Isabella Nardoni foi atirada do 6º andar do prédio em que o pai e a madrasta moravam. Na noite de sexta-feira, já adentrando a madrugada de sábado, seus algozes, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, foram considerados culpados por um júri formado por iguais e um juiz de direito os sentenciou a longas penas. “A justiça foi feita”, nas palavras da mãe de Isabella, Ana Carolina de Oliveira.
Enquanto o juiz Maurício Fossen lia a sentença, transmitida ao vivo pelo rádio, rojões estouravam em frente ao Fórum de Santana. O tema da vitória, que automaticamente remete à imagem do capacete amarelo e dos punhos cerrados de Senna, dessa vez era a trilha sonora de um cenário medieval.
Não era só por justiça que a multidão que estampava a foto de Isabella em suas camisetas gritava. Em ritmo de funk, eles pediam: “Pega lá, pega lá, pega lá, o casal pra nós linchar (sic)”. Berros de “joga pela janela” e “cadeira elétrica neles” também eram facilmente ouvidos. Só faltaram as tochas, as foices e uma forca na frente do tribunal.
O que definitivamente não faltou foram carros de TV, câmeras, um emaranhado de cabos, fotógrafos e jornalistas, muitos jornalistas —incluindo o autor destas linhas.
O advogado Roberto Podval, alvo de frequentes hostilidades da massa ensandecida —inclusive tentativas de agressão— não conseguiu provar a inocência do casal. Era mesmo uma tarefa difícil. Mas propôs uma reflexão importante ao perguntar aos jurados: Será que chegaríamos ao mesmo resultado [a condenação dos réus] se a cobertura da imprensa tivesse sido diferente?
O promotor Francisco Cembranelli garantiu que não, que os réus já chegaram condenados ao julgamento não pela mídia ou pela sociedade, mas pelas provas.
É provável que Cembranelli tenha razão. Mas aqui cabe uma outra pergunta: a sociedade —ou a parte dela que ficou vidrada na TV, no rádio, nos jornais e na internet por cinco dias, e que aguardava há quase dois anos uma resposta para aquele crime bárbaro — aceitaria um resultado diferente? Uma absolvição, caso os jurados não tivessem ficado 100% convencidos da culpa dos réus?
A julgar pelo número de pessoas que correram atrás do camburão que levava o casal Nardoni de volta à prisão, mesmo após terem sido condenados dentro da lei, é difícil acreditar.
A defesa já adianta que tentará anular o júri. Se existirem razões júridicas para tanto e o Judiciário reconhecer que os réus tem o direito de serem julgados novamente, qual será a reação da massa?
É absolutamente compreensível que um caso atroz de violência como o de Isabella gere revolta e provoque nas pessoas uma sede por justiça. Mas foi exatamente para aplacar esse impulso de conseguir a justiça pelas próprias mãos que as sociedades conferiram ao Estado o monopólio do uso da força, criando um órgão imparcial —o Judiciário— para mediar os conflitos sociais.
Nesse contexto, o papel da imprensa não pode ser desconsiderado. Desde o início, por possuir características únicas, o caso Isabella tomou dimensões gigantescas. Os defensores da cobertura feita pela imprensa nos últimos dois anos, dizem que o jornalismo apenas entregou aquilo que o público demandava.
O jornalista Carlos Eduardo Lins e Silva, ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, tem uma visão relevante sobre o tema: "Será que o jornalismo sério precisa mesmo entregar o que o público quer, ou diz querer?". Para ele, além de atender à demanda do público, o jornalismo precisa liderar. "É preciso haver uma troca entre o meio de comunicação e seu consumidor para que o jornal atenda os desejos dos leitores, mas também ajude a melhorar a qualidade desses desejos".
Na época da morte de Isabella, o Rio de Janeiro passava por uma grave epidemia de dengue. O número de mortos passou de 100 no Estado, grande parte delas, crianças. A tragédia do edifício London ofuscou a catástrofe da saúde pública no Rio.
Na semana que passou, os olhos do país estiveram concentrados no pequeno fórum da zona norte de São Paulo. Enquanto isso, chegou a 16 o número de crianças mortas por falta de UTI no Maranhão.