Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).
E-mail: elianebrum@uol.com.br
Twitter: @brumelianebrum
Em abril, um pai levou sua filha à cidade onde viveu boa parte da vida para apresentá-la aos amigos mais queridos. Para receber sua família, foi preparado um jantar caprichado na casa da madrinha do bebê. Como o aniversário do pai aconteceria dias mais tarde, os amigos decidiram lhe dar um álbum de fotos desse acontecimento tão especial e planejado desde que a criança nasceu. E assim, a fotógrafa do grupo a qual também pertenço, dedicou-se a registrar todos os momentos.
Tão logo minha amiga editou as fotos, colocou-as num álbum do Hotmail que pudesse ser compartilhado pelo número restrito de pessoas que haviam participado da festa. Algum tempo depois, ela recebeu um aviso enorme da Microsoft, em inglês, que, resumidamente, dizia o seguinte: “Nós encontramos imagens envolvendo nudez de crianças em sua conta. Se você não retirá-las em 48 horas, seremos obrigados a cancelar esta e outras contas. Esta política busca reduzir os riscos na comunidade online. A Microsoft leva a sério a segurança das crianças. As violações incluem nudez, nudez parcial, pornografia, assédio, comportamento ilegal ou ofensivo”.
Minha amiga demorou alguns bons minutos para encontrar alguma pista sobre o crime do qual estava sendo acusada ao fotografar episódio tão amoroso. Então descobriu: havia pelo menos duas fotos dos pais com o bebê durante o banho. E ninguém ali tinha uma mente tão perversa a ponto de pensar que aquele momento inocente pudesse ser remotamente confundido com algum tipo de pornografia ou ato pedófilo que exigisse providenciar o impossível: um banho de roupa no bebê.
Assustadíssima, minha amiga tirou o álbum inteiro da rede. A situação me pareceu surreal. Mais ainda porque, entre as muitas ironias, está o fato de que a suspeita é uma jornalista que se especializou e se dedicou à proteção da infância e da adolescência nos últimos 20 anos. Por sua atuação nessa área é convidada a dar palestras e oficinas no Brasil e fora dele. E já ganhou prêmios por seu trabalho em Direitos Humanos. De fato, não haveria ninguém mais improvável do que ela de cometer algum ato de pedofilia contra um bebê ou disseminar pornografia infantil na internet.
Na semana passada, a imprensa noticiou que a jornalista Kalu Brum foi censurada na mais poderosa rede social do planeta, o Facebook, após postar uma foto amamentando seu filho. Em 10 de maio, Kalu recebeu a seguinte mensagem: “Olá. Você carregou uma foto que viola nossos Termos de uso e ela foi removida. O Facebook não permite a publicação de fotos que ofendam um indivíduo ou grupo, ou que possuam nudez, drogas, violência ou outras violações de nossos Termos de Uso. Essas políticas são desenvolvidas para garantir que o Facebook continue a ser um ambiente seguro e confiável para todos os usuários, incluindo as crianças que usam o site”.
O caso foi divulgado e debatido no blog Mamíferas. E depois de a foto ter sido retirada do ar, Kalu lançou o “Mamaço no Facebook” – um protesto que incentiva as mulheres, até 20 de maio, a trocar as fotos de seus perfis por imagens em que estejam amamentando, e os homens a trocá-las por fotos das mães de seus filhos nesse mesmo ato saudável.
Os dois casos da internet – que com toda certeza não são os únicos, muito pelo contrário –, fazem soar uma sirene na nossa cabeça. E eu acho que precisamos escutá-la antes que o mundo fique estranho demais. Tanto a Microsoft quanto o Facebook estão agindo “em nome do bem”. E, assim como outras corporações poderosas da rede, têm sido pressionados a responder pelos conteúdos veiculados em seu ambiente virtual pela Justiça de diferentes países. Obviamente as mensagens que Kalu e minha amiga – e muitos outros – receberam são automáticas, geradas sempre que o programa detecta algum tipo de ameaça. Uma proporção maior de pele nua, talvez. Só o Facebook e a Microsoft podem nos explicar os mecanismos utilizados em seu sistema para detectar supostas violações.
O fato é que o programa não tem como avaliar subjetividades. E então imagens de uma mãe amamentando ou um bebê tomando banho sob o olhar embevecido de seus pais são imediatamente censuradas em termos ameaçadores. No mundo virtual, o rotineiro banho do bebê cujas fotos circulam entre amigos e parentes passa a ter o mesmo potencial criminoso do rotineiro banho do bebê que circula entre as redes de pedofilia. Porque, a rigor, a nudez do bebê é a mesma. O que muda é o olhar do espectador. E o uso das imagens.
Embora existam quadrilhas que escravizam ou pagam por fotos de meninas em posições eróticas ou atos sexuais, um pedófilo se excitaria, e um criminoso poderia vender a foto de uma criança de biquíni na praia, construindo um inocente castelo de areia, para uso ilegal. Porque, de novo, o que caracteriza a ilegalidade neste caso são o olhar e o uso.
A saída deveria ser voltarmos a uma espécie de era vitoriana e obrigarmos nossos filhos a tomar banho de mar vestidos porque existem pessoas doentes e outras criminosas no mundo em que vivemos? Ou amamentarmos trancadas em quartos, com vergonha de nossa natureza? Ou dar banho no bebê de portas fechadas, escondidos de todos como se fosse algo feio ou proibido? Acredito que lutamos muito para lidar melhor com nossos corpos e nossas vidas para tal retrocesso.
Mas é algo semelhante o que está acontecendo na internet – um mundo no qual vivemos durante boa parte do nosso dia e pelo qual nos comunicamos com amigos, parentes, parceiros de trabalho e desconhecidos. Um mundo virtual – mas bem real.
Na rede, tudo virou a mesma coisa – e confundi-las me parece muito perigoso. Porque, se começarmos a tratar da mesma maneira uma mulher amamentando seu bebê e um ato de pedofilia, logo não saberemos mais a diferença. E, se não soubermos mais a diferença, não haverá mesmo como prevenir e punir o crime.
O outro ponto que deve fazer a sirene da nossa cabeça tocar ruidosamente diz respeito à Lei. Para criar ou alterar uma lei em um país democrático, é necessário antes que o texto seja discutido e aprovado pelo Legislativo. E, ultimamente no Brasil, pelo vazio e pela indigência desta instância, algumas questões cruciais têm sido debatidas e decididas pelo Supremo Tribunal Federal. No processo democrático, o debate se estabelece na imprensa e nas ruas, as opiniões se digladiam, e o cidadão influencia nas decisões seja pelo seu voto, seja pelo seu poder de manifestação. Do mesmo modo, a polícia precisa de autorização judicial para grampear alguém dentro da lei.
Na internet, não. Há uma espécie de polícia virtual, transnacional e privada atuando em nossas vidas como bem entende. Porque, para esta “polícia”, não somos cidadãos – mas clientes (ou “customers”, já que a comunicação, em geral, é em inglês. Quantos de nós, no mundo inteiro, têm seu cotidiano ligado a marcas como Microsoft, Google, Apple, Facebook, Twitter, etc? Me parece que não temos percebido que vivemos sob suas leis. E uma delas nos diz que o banho de nossos bebês ou o momento da amamentação é pedofilia.
A partir do momento em que vasculham nossos arquivos e recebemos o aviso de que estamos violando sua política de uso, nossa escolha é aceitar o veredicto e retirar as imagens do ar, quando não as eliminam por sua própria conta – ou sermos banidos desse mundo.
Supostamente seria uma escolha estar ou não na rede, usar ou não a mercadoria que oferecem. De fato, cada vez mais deixa de ser uma escolha, já que boa parte da população do planeta não pode mais conceber sua vida pessoal e profissional sem estar em alguns desses conglomerados virtuais.
Como disse Kalu Brum para esta coluna: “Tive de concordar que li e aceitei os termos de uso do Facebook de que a foto feria as regras. Fiquei indignada e por isso pensei em sair da rede. Vejo tantas fotos com pessoas de decote, shorts minúsculos, por que uma foto de amamentação, em que o mamilo nem aparecia, estava sendo retirada? Imediatamente pensei que poderia usar a própria rede social para mobilizar mulheres a trocarem suas fotos do perfil”.
Acho ótimo que alguém tenha decidido reagir e torço para que o “mamaço” organizado por Kalu surta algum tipo de efeito no Facebook. Mas sabemos o tamanho e o poder desta rede com mais de 600 milhões de usuários no planeta – e como é difícil atingi-la ou influenciá-la. Não é por acaso que a manifestação contrária à política da rede social aconteça dentro da rede social, sem que o Facebook perca um único usuário. E é sobre isso que também precisamos refletir.
Assim como Kalu, minha amiga também retirou o álbum de fotos, chocada, e seguiu sob o império da Microsoft. E, possivelmente, se me acontecesse algo semelhante, eu faria o mesmo. Porque preciso usar as redes e não tenho escolha. De fato, sem nenhum direito de defesa ou julgamento, se não acatarmos que o banho do bebê ou a amamentação é pedofilia – porque é isso que aceitamos como verdade quando retiramos as imagens da rede ou continuamos lá depois que são retiradas –, somos banidos do mundo. Como párias.
E é assim que chegamos a resultados concretos como estes: uma das jornalistas mais atuantes na área da proteção dos direitos da infância e da adolescência é obrigada a eliminar um álbum virtual de acesso restrito porque há nele a foto de pais dando banho em seu bebê; uma mãe amorosa tem a foto em que amamenta seu filho retirada da rede social da qual participa. Tudo em nome do bem. E, claro, como muito do que nos tem sido impingido nos últimos anos, com a melhor das intenções.
Até o final do século XX, esta era uma realidade que só havíamos vislumbrado pela ficção. Agora, o futuro chegou. Não há respostas nem soluções fáceis para as questões apresentadas pelo novo mundo. Mas acho que é preciso ouvir a sirene e acordar.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
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