Trajetórias opostas das novelas 'Cordel Encantado', que aposta na fábula, e 'Insensato Coração', que mostra o 'Brasil como é', sugerem um desgaste do realismo que domina o principal horário da dramaturgia da Globo
Cauã Reymond é protagonista da novela 'Cordel Encantando', da Globo (Divulgação)
Insensato Coração, a novela das nove da Globo, deve ser esticada em uma, até duas semanas. A novela-minissérie das seis, Cordel Encantado, também terá sua duração ampliada: dos três meses inicialmente previstos, passará a cinco. Diferentemente da trama vespertina de Thelma Guedes e Duca Rachid, porém, a história de Gilberto Braga e Ricardo Linhares não ganhou tempo por seu bom desempenho no Ibope. Os autores devem sua hora extra ao atraso de Fina Estampa, folhetim de Aguinaldo Silva originalmente marcado para 17 de agosto. Atraso que é, inclusive, ruim para a Globo. Enquanto a fábula de Cordel Encantado obtém boa audiência para a faixa das seis, de 26 pontos ou mais na Grande São Paulo, Insensato Coração, com sua tentativa de crítica social, pena para decolar no Ibope, com média entre 32 e 35 pontos, baixa para o horário.
As duas novelas obedecem à tradição dos seus horários. As tramas das seis sempre buscaram a leveza, e as das nove, o realismo. Mas suas trajetórias opostas sugere que esse realismo, que vem pautando há décadas o principal horário da dramaturgia brasileira, sofre de estafa, se não está esgotado. A repetição da fórmula ajuda a explicar o seu desgaste. Mas há outras causas. Para o sociólogo Eurico Santos, da Universidade de Brasília (UnB), lidar com transformações no casamento ou no relacionamento entre pais e filhos – exatamente os temas focados por Braga em Insensato Coração – já impõe um fardo às pessoas no dia-a-dia. A novela reproduz essas tensões, mas não de maneira particularmente iluminadora. “As pessoas estão saturadas de realismo”, diz.A resistência ao realismo que predispõe negativamente o telespectador ao folhetim das nove é também o que torna a novela das seis, uma fábula com elementos de literatura de cordel e contos de fada, atraente para quem a vê.
A questão, é claro, não é simples. Para entender as diversas razões que respondem pelo sucesso ou pela pífia performance de cada uma das tramas, o site de VEJA ouviu especialistas e preparou uma série de reportagens. Confira:
Cordel Encantado’: a vitória da fábula
Boa audiência da novela das seis da Globo,uma super-produção com estética cinematográfica, mostra a força das tramas de época e, principalmente, da realidade de fantasia feita para consumo e entretenimento
A novela Cordel Encantado encontrou uma fórmula mágica. Nela se misturam elementos de contos de fadas, toques de misticismo, reis medievais e cangaceiros nordestinos. A tecnologia também tem um papel importante: o folhetim é uma super-produção, com toques verdadeiramente cinematográficos. E o público reagiu bem. Há menos de um mês no ar, Cordel Encantado registra uma audiência média de 26 pontos e picos de 28 - resultados excelentes para o seu horário. Na grade de programação da Rede Globo, o horário das seis sempre foi reservado às novelas amenas, que acenam com uma fuga da realidade. Cordel Encantado obedece a essa tradição, ao mesmo tempo em que a renova de maneira notável. É o tipo de façanha que não se alcança todo dia. Como se disse, uma fórmula mágica.
Cordel Encantado conta a história da princesa Açucena (Bianca Bin), do reino de Seráfia do Norte. Ela foi separada do pai quando bebê durante uma viagem ao Brasil, devido ao plano da divertida vilã Úrsula (Débora Bloch) de fazer de sua filha a futura rainha. Na cidade de Brogodó, onde é criada por uma família adotiva, ela se apaixona por Jesuíno (Cauã Reynold), filho – também apartado – de Herculano (Domingos Montagne), o rei do cangaço. Essa mistura de cangaço e realeza num universo atemporal, digna de Ariano Suassuna, conduz o espectador à fantasia. “Ao unir a corte europeia ao sertão nordestino, a novela trabalha aspectos da imaginação popular”, diz Mauro Alencar, autor de A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil (Senac).
A combinação de referências, entre as quais se incluem também os contos de fada e o cordel, forma de literatura popular nordestina, leva o espectador a fantasiar - sem contar a feliz coincidência com o casamento real, que aumenta o clima fabuloso da trama. Propõe a ele uma ruptura com o realismo, gênero que vem dando sinais de esgotamento no horário das nove. Esses mesmos elementos de cordel e fábulas remetem a formas de viver que não se questionam, porque já estão dadas há anos – e até há séculos. Num tempo em que até as relações familiares mais básicas passam por transformações, esse contato com o passado e a tradição - ainda que num pequeno intervalo no final da tarde - pode ser uma espécie de bálsamo.
Imaginário – As referências ao cordel estão por toda a trama. A história de Açucena, uma princesa perdida que descobre quem realmente é quando o rei de uma localidade distante vem procurá-la, é recorrente nas histórias de cordel. Segundo Aderaldo Luciano, coordenador editorial da editora Luzeiro, especializada em cordéis, a identificação do público com a novela se dá porque são personagens do povo – sempre vistos com certa benevolência pelo espectador.
Outro fator de sucesso, levantado por Esther Hambúrguer, professora de audiovisual da Universidade de São Paulo (USP), é o a mitologia em torno do cangaço, que ajuda a despertar o interesse do público. “O cangaço é uma referência forte na cultura nordestina e está espalhada por todo o país”, afirma. Os cangaceiros são presença fundamental no cordel, em que são representados como heróis. “A novela retoma a valorização do cangaço na cultura brasileira.”
História da história – Não menos importante para explicar o bom desempenho da novela das seis é o talento da dupla Thelma Guedes e Duca Rachid. Embora retrabalhem temas antigos, por vezes arcaicos, fixados no fundo do imaginário social, elas conseguem injetar vivacidade nas tramas. Colegas são unânimes em elogiá-las.
Cordel Encantado é a terceira parceria das autoras. A novela passou cinco anos na gaveta, à espera do aval da produção da Globo. Quando a dupla apresentou à emissora a sinopse da trama, o canal estava se decidindo a dar um tempo nas novelas de época. Haviam acabado de ser exibidas Alma Gêmea (2005) e O Profeta (2006) e Desejo Proibido (2007) estava a caminho – todas ambientadas na primeira metade do século XX.
O remake de O Profeta, trama espírita de Ivani Ribeiro exibida pela primeira vez nos anos 1970, foi, aliás, a inauguração da parceria entre Thelma e Duca. Uma estreia bem sucedida: com média de 32 pontos no Ibope, ela chegou a empatar com Paraíso Tropical, que na época estava no ar no horário das nove. Cordel Encantado faz algo semelhante, passando em audiência a novela das sete, Morde & Assopra.
Depois da mística O Profeta, a emplacou mais um sucesso no horário das seis, Cama de Gato, espécie de conto de fada moderno estrelado por Camila Pitanga e Marcos Palmeira. Ali, alcançaram 24 pontos de média no Ibope, número que agradou à Globo. Com Cordel Encantado, a emissora sorri ainda mais. É a vitória da fábula.
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