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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O “Brazil”, na visão da revista inglesa The Economist


O que surpreende é a semelhança da fórmula usada pela revista e pelo Times, em artigo publicado há 130 anos

Por Alexandre de Freitas Barbosa*, no jornal Valor Econômico

No fim do ano, a revista inglesa The Economist publicou extensa matéria sobre o Brasil. Com linguajar coloquial, temperado com economês de livro-texto e recheado de entrevistas com gestores de fundos de investimentos e de empresas multinacionais, ex-professores convertidos em banqueiros e consultores estrangeiros, além de um ou outro pé-rapado que deu certo, ficamos sabendo que o Brasil pode chegar lá. A receita parece evidente: menos Estado e mais capital externo; menos intelectuais, mais empreendedorismo.

Lembrei-me então de uma crônica escrita por Eça de Queiroz por volta de 1880 e publicada no livro “Cartas de Inglaterra”. Ele relata como naquele tempo o Brasil ocupara, ao menos por uma temporada, o noticiário europeu, motivado por uma matéria no prestigioso Times. Ainda que revele jamais ter visitado nosso “Império”, já nos estertores, Eça diverte-se com as astúcias do correspondente inglês. Esse, por mais que se quisesse um revelador do mundo nos trópicos, ao salpicar seus comentários ácidos com doses calculadas de economia, história e cultura, não passava de “consciência escrita da classe média da Inglaterra”.

Depois de “vinte de linhas de êxtase” sobre o gigante e sua grandiloquente natureza, não sem ostentar certo ar de patrocínio, já que “todo trabalho aí empreendido para fazer produzir a natureza é dos estrangeiros”, coincidentemente ingleses, algumas “circunstâncias desconsoladoras” eram observadas pelo correspondente de Eça. Uma torrente de dados desfilava como que em procissão, acompanhada de cálculos e comparações mirabolantes. Em seguida, o veredicto sobre o Brasil: “A escassez da população, de rendimento e de comércio são uma prova de que faltam a esse povo algumas das qualidades que fazem a grandeza das nações”.

O sarcasmo de Eça conduz de forma sutil o texto ao seu desenlace: diferentemente dos seus vizinhos sul-americanos, preguiçosos e altaneiros, que desprezam a opinião da Europa, o Brasil pode escolher entre deixar sua riqueza estéril ou multiplicá-la pelo trabalho, desde que sob supervisão dos mais experientes…

Chega a ser surpreendente a semelhança da fórmula utilizada pela também inglesa The Economist ao escrever sobre o Brasil mais de um século depois. O correspondente do século XXI começa igualmente enumerando o nosso vasto potencial composto de esplêndida oferta de água, abundantes florestas tropicais, solo fértil e riqueza mineral.

Apesar disso tudo, diz ele, investidores estrangeiros teriam perdido fortunas na crença do Brasil como país do futuro. Mas isso foi no passado. Agora o país vive o seu melhor momento desde que “um grupo de navegantes portugueses desembarcou em sua costa”. Um calibrado ufanismo permeia o artigo. O Brasil pode fazer parte no futuro próximo das cinco maiores economias do planeta, já que se tornou autossuficiente em petróleo, adquiriu o “investment grade”, se tornou credor do FMI e tem recebido uma nova onda de investimentos externos.

Ressalta que isso se deve, em grande medida, ao “bom senso” dos governos recentes, “em especial o do governo Fernando Henrique, que criou um ambiente econômico estável e favorável para os negócios”. Não fosse a interferência governamental – o país sofre de uma espécie de desconfiança genética pelo livre mercado – e o correspondente não teria pejo em embarcar no conto do “país do futuro”. Somos então brindados com a hipótese de que Lula, O Sortudo, teria se saído bem por não ter feito nada.

Nosso correspondente faz algumas incursões pela história econômica brasileira que são de arrepiar. O Brasil teria ficado estagnado no século XIX – isso não é verdade para a segunda metade, como nos mostrou Celso Furtado há 50 anos – e visto o seu modelo econômico se estilhaçar durante as crises do petróleo (para o correspondente não houve II PND). Mais à frente, somos informados que o Brasil viveu um ciclo de metais preciosos no século XVII e que o boom do açúcar se localizou no século XVIII! Se não quisesse ler o mestre Furtado – disponível em inglês – nosso correspondente poderia ter feito uma rápida busca em alguma enciclopédia virtual.

Não se trata de mera falta de conhecimento sobre o Brasil. O mais grave é que, ao recontar a história econômica brasileira a seu bel-prazer, tal como fizera o correspondente do Times, o escriba da The Economist pôde situar o momento da virada do Brasil como aquele que melhor se casava com o script que trouxe pronto da pátria mãe: “the real miracle happened in 1994, when a team of economists under Cardoso.”

Os investidores externos são encarados como ingênuos aplicadores que veem seu capital se dissolver frente às mudanças macroeconômicas e ao intervencionismo estatal. Ora, qualquer análise minimamente imparcial pode atestar o fato de que no pré-1930, no governo JK, na ditadura militar, no governo FHC ou no de Lula, o único elemento comum – apesar das diferenças de modelo econômico – é o excessivo zelo pelo capital externo, que geralmente corresponde, especialmente quando a economia encontra-se em processo de expansão, assegurando para si elevados níveis de rentabilidade.

Além do Estado brasileiro, tachado de “autodestrutivo”, da Constituição, caracterizada como um “monumento à indexação”, do MST, “promotor de invasões”, e do “jeitinho brasileiro”, nosso correspondente não “gosta” do BNDES, extremamente “nacionalista” e “intervencionista”.

A recente queda da pobreza e da desigualdade é saudada pelo correspondente cristão. Supostamente ela se relaciona com a ascensão de uma mítica nova classe média, com o programa Bolsa Família e o aumento do salário mínimo, processos que parecem surgir de forma espontânea, como que guiados pelo Deus mercado ou pela doutrina das políticas sociais focalizadas.

Para concluir sua incursão sobre o “futuro do país do futuro”, ele decide fazer uso de um pingue-pongue entre o Brasil e os Estados Unidos, do tipo uns são pobres, outros ricos, uns gostam do governo, outros da iniciativa privada.

Como se percebesse a simplicidade da fórmula, ele descobre que o Brasil são dois: um moderno e outro tradicional. O primeiro Brasil, dos negócios e das finanças, deve predominar sobre o Brasil do crime, da impunidade, da burocracia e da pobreza. Essa a conclusão fascinante do seu opúsculo pré-euclidiano.

O ensaio da The Economist sobre o Brasil poderia ser encarado como apenas mais um capítulo do denso volume da história das ideias escrita por “eles” sobre “nós”. O problema é que essas elucubrações do Império – hoje não mais sediado territorialmente – apenas reverberam a cantilena local dos nossos falsos cosmopolitas. Comungam da mesma visão de mundo e dos mesmos interesses materiais.

Por isso, não podemos deixar que o espelho deformado do Brazil afete os destinos do Brasil real, que fala um idioma que já passou de português, possui uma imensa dívida social, tem sede de soberania e apenas desperta – depois de uma longa insônia – para o sonho do desenvolvimento.

*Alexandre de Freitas Barbosa é doutor em Economia Aplicada pela Unicamp e professor de História Econômica do IEB/USP.

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