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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Frustrada e feliz


A autora lamenta a baixa audiência de Os Maias,
mas comemora a qualidade da série, um marco
na teledramaturgia brasileira

Carlos Graieb

Claudio Rossi

"Fiz alteração de peso no final da série.
O espectador anda sedento de bons exemplos éticos"

Maria Adelaide Amaral vive uma contradição: está desapontada e, ao mesmo tempo, satisfeita. Ao longo de vários meses, a escritora e dramaturga trabalhou num dos projetos mais ambiciosos já feitos na televisão brasileira – a adaptação para a Rede Globo do romance Os Maias, obra-prima do português Eça de Queiroz. Apuradíssima no texto e no visual, a série, que termina na próxima sexta-feira, deixou no entanto de cativar a massa. Sua média de audiência é de 14 pontos, menos da metade do esperado. Daí a frustração. A contrapartida vem da constatação de que a série atingiu momentos de beleza e sofisticação nunca vistos na TV brasileira. Nascida em Portugal há 58 anos, Maria Adelaide mudou-se para São Paulo com a família, ainda criança. Foi operária, balconista, escriturária e pesquisadora da Editora Abril (que publica VEJA). Escreveu peças de teatro e livros – o mais recente, O Bruxo, inspirado no câncer que teve. Para a TV, assinou a bem-sucedida adaptação de A Muralha. "Nunca me passou pela cabeça fazer teledramaturgia para uma elite", disse ela nesta entrevista.

Veja – A teledramaturgia brasileira é bastante consagrada. O que contribuiu para o surgimento dessa boa linhagem de autores de novela?
Maria Adelaide – Acho que o que distingue os melhores teledramaturgos brasileiros é o fato de possuírem raízes em áreas da chamada "alta cultura". Aguinaldo Silva era contista, assim como Doc Comparato. Dias Gomes fazia teatro, mesmo caso de Lauro César Muniz. Manoel Carlos, que eu considero o nosso Tchekov, pela visão profunda que tem da vida cotidiana, sempre foi um leitor e um autor refinado de poesia. Enfim, são pessoas com bagagem cultural respeitável. Isso transparece quando você compara a produção brasileira com a dos outros latinos e mesmo com as soap-operas, as novelas americanas. A novela brasileira forma um capítulo à parte na televisão mundial.

Veja – Eles seriam então os autores de uma boa literatura de massa, de uma literatura de entretenimento que, segundo o crítico e poeta José Paulo Paes, fazia falta ao Brasil?
Maria Adelaide – José Paulo Paes tinha razão. O escritor brasileiro padece da doença da genialidade. Ele só pega a caneta para criar supostas obras-primas. Mas são os autores médios, dispostos a comunicar-se com um grande público, que sustentam uma indústria cultural. E numa indústria cultural pujante é bem mais fácil o autor experimental eventualmente encontrar seu espaço e seu público. O cinema brasileiro padeceu por muitos anos do mesmo problema. Faltaram filmes despretensiosos, menos imbuídos da obrigação de ser geniais. Só agora isso está mudando.

Veja – O final de Os Maias reserva alguma surpresa?
Maria Adelaide – Sim, eu fiz uma alteração de peso. No livro, Carlos Eduardo vai para a cama com Maria Eduarda diversas vezes, mesmo depois de descobrir que ela é sua irmã. Não tem coragem de lhe revelar o terrível segredo, por isso pede ao amigo João da Ega que lhe conte tudo e a despache para a França. É um final cruel, ainda que consistente com o propósito de Eça, que era o de retratar uma sociedade tíbia, corroída pelo ócio. Resolvi alterar esse final perturbador numa concessão à lógica da teledramaturgia. Com um Carlos Eduardo tão fraco, o espectador, que anda sedento de bons exemplos éticos, se sentiria traído, abandonado pelo herói por quem torceu. E torceu mesmo, porque Fábio Assunção representou o seu papel com um ar de dignidade e retidão de caráter que o personagem do livro não possui. Por isso, em minha versão, os dois irmãos só sucumbem à tentação uma vez. Depois disso, Carlos Eduardo é atingido em cheio pela repugnância de seu ato e toma as atitudes que um homem de fibra tomaria. A cena final da série é uma das mais belas que já escrevi.

Veja – Essa mudança vem se juntar a outras, que foram muito criticadas. A senhora acha que cometeu algum excesso na adaptação?
Maria Adelaide – Se eu e minha equipe cometemos algum pecado, foi ser extremamente reverentes com a obra de Eça. Nenhuma das alterações é relevante se comparada com a fidelidade com que seguimos a história e seu espírito, e todas se justificam do ponto de vista da dramaturgia. Eu cortei alguns personagens, ampliei a participação de outros e até incluí na trama figuras dos livros A Relíquia e A Capital, o que deixou muitos queirozianos de cabelo em pé. Entre os personagens que eliminei, por exemplo, está o Conde de Steinbroken, que tem uma função anedótica em Os Maias, mas não contribui em nada para a ação. Quanto ao núcleo de personagens que extraí de A Relíquia, estou com a consciência tranqüila. Ele faz muito sucesso, diverte as pessoas. Os queirozianos me diziam: por que introduzir essa gente se a matéria cômica de Os Maias já é tão rica? Mas seu humor é refinado demais, requer conhecimentos da história de Portugal que nem os portugueses dominam hoje em dia. Essa espécie de ironia é quase inacessível ao público de televisão.

Veja – Por que a audiência de Os Maias foi baixa?
Maria Adelaide – A maior falta de sorte foi não conseguirmos editar o primeiro capítulo da maneira necessária. O programa que foi ao ar não foi o mesmo que escrevi. Eu redigi seis blocos, mas as pessoas viram apenas dois. Isso desorganizou a dramaturgia da série. Mas não se pode apontar culpados. Todos fizeram o melhor, todos queriam atingir um vasto público. A emissora investiu alto numa produção como nunca se viu na TV brasileira. Seria uma injustiça, por exemplo, responsabilizar Luiz Fernando Carvalho, que dirigiu o programa. Dizem que a vocação dele é mais cinematográfica que televisiva, e isso é verdade. Mas sob todos os aspectos ele fez um programa belíssimo. Eu me frustrei com a baixa audiência, não com aquilo que eu vi na tela, que é de uma beleza rara.

Veja – O ibope está sempre em sua mente quando escreve para a televisão?
Maria Adelaide – É um dado importante. Nunca quis fazer teledramaturgia para uma elite. Minha ambição é fazer produtos de alta qualidade que atinjam várias pessoas. Para A Muralha, por exemplo, não me limitei ao livro de Dinah Silveira de Queiroz. Eu adoro pesquisar e fiz leituras extensas sobre a história paulista. Também empreguei uma linguagem difícil, que trazia o sabor de outras épocas. E nem por isso a audiência foi baixa. Quem poderia dizer que A Muralha faria sucesso? O próprio Daniel Filho, diretor do núcleo de produção do programa, dizia que aquele era um produto de risco. Escrevi Os Maias com o mesmo espírito, também pesquisando, também usando um linguajar elaborado. Não subestimo o espectador e, sinceramente, não achava que houvesse riscos desta vez.

Veja – A senhora, hoje, atribuiria a pequena audiência da série a características da própria obra de Eça? Ele ficou datado?
Maria Adelaide – De jeito nenhum. Ele é agradabilíssimo, é absolutamente moderno.

Veja – Eça ou Machado de Assis?
Maria Adelaide – É muito mais fácil adaptar a obra do Eça para a dramaturgia, porque ele fazia concessões ao folhetim, enquanto o Machado de Assis não. Mas, do ponto de vista literário, eu acho que essa é uma questão fastidiosa. Os dois são mestres da língua, têm estilo único e são importantes para as literaturas de seus respectivos países. Para que comparar alhos com bugalhos?

Veja – O que a senhora diria aos que afirmam que Machado aprendeu tudo com Eça, ou aos que dizem o contrário – que Machado foi melhor que o português?
Maria Adelaide – Eu diria que existe, nos meios acadêmicos, a tendência a discutir sempre os mesmos temas e os mesmos autores. Há muita coisa a dizer sobre a história cultural e literária do Brasil. O Ruy Castro, por exemplo, acaba de focalizar, em seu novo livro, o grupo que vivia em torno do poeta Olavo Bilac. São figuras interessantíssimas, como Paula Ney, Artur Azevedo e Emílio de Menezes. Mas o Ruy Castro é jornalista, e fez isso num livro de ficção. Por que os acadêmicos não se debruçam sobre essas coisas? Por que ficar conhecido apenas como queiroziano ou machadiano?

Veja – A senhora é católica praticante. Vivendo entre intelectuais, em algum momento da vida sofreu patrulha ideológica por causa disso?
Maria Adelaide – Nunca. Até porque, nos anos 60 e 70, quando isso talvez fosse possível no meio intelectual de esquerda, eu fiquei afastada da religião institucional. Eu era comunista. Eu não ia à igreja. Mas, no fundo, nunca perdi a fé. Mesmo minha adesão ao comunismo era uma espécie de fé, segundo outro catecismo. E vou lhe contar um segredo: jamais deixei de rezar para o anjo da guarda.

Veja – Seu novo livro fala muito de astrologia. A senhora acredita nos astros?
Maria Adelaide – Quem acredita em astrologia está muito bem acompanhado. Leonardo da Vinci e Fernando Pessoa, por exemplo, acreditavam. Eu sou adepta. Os padres de minha igreja não gostam nada dessa história, mas o que posso fazer? A sedução pelo mistério é uma coisa humana.

Veja – A senhora lê Paulo Coelho e outros esotéricos?
Maria Adelaide – Prefiro que leiam Coelho a Sidney Sheldon. Pelo menos é um brasileiro. Mas não tenho afinidade nenhuma com ele. Detesto todo tipo de literatura esotérica. De modo geral, é literatura de baixo nível. Só a astrologia se salva para mim. Ao longo dos anos, comprovei que ela tem fundamentação.

Veja – Cite alguma.
Maria Adelaide – Um astrólogo previu meu câncer. Ele me disse: "Você tem um nódulo no seio esquerdo. Vá ao médico quanto antes". Eu fui, e era verdade. Meses depois ele fez a mesma afirmação a uma de minhas amigas, e mais uma vez estava certo. A primeira pessoa que fez meu mapa foi um amigo escritor, o Caio Fernando Abreu. Ele me disse que eu ficaria conhecida – e também tinha razão.

Veja – A senhora se submeteu a um tratamento bem-sucedido contra o câncer. Qual a carga simbólica que a doença carrega hoje em dia?
Maria Adelaide – A doença que tive me atingiu no seio. O seio é aquilo que uma mulher tem de mais feminino, é o órgão da nutrição. Nesse sentido, foi um baque. Mas acho que cada vez menos o câncer está investido daquela carga sombria. Eu fazia radioterapia à noite, me encontrava com muitas pessoas que tinham tumores e trabalhavam. Ninguém se sentia estigmatizado, estavam todos lá na sala de espera do hospital conversando, tocando a vida. Não vivíamos numa atmosfera de tragédia. Além disso, tive sorte. Meu câncer era leve e teve diagnóstico precoce. Eu não precisei extrair o seio inteiro. Minha vida afetiva e sexual continuou igual depois da doença, ou até melhor, porque tudo ficou mais claro em minha vida, inclusive os afetos e as amizades. Minha experiência com a doença está em boa parte descrita no romance O Bruxo. Também me considero uma pessoa de sorte por isso: fui capaz de transformar essa miséria em literatura.

Veja – Nos últimos anos, no teatro e na literatura, a senhora se aproximou dos temas femininos, o que nem sempre foi uma característica de sua obra. Por quê?
Maria Adelaide – Porque as mulheres ficaram mais interessantes. O trabalho as transformou. Nas últimas décadas, o desemprego começou a ameaçar as famílias. Enquanto os homens ficavam em casa, mergulhados na depressão, as mulheres foram para a vizinhança vender empadinha, depois foram se educar, depois entraram com força no mercado de trabalho. As mulheres não haviam sido preparadas para enfrentar o mercado, mas se mostraram inventivas e responderam aos desafios com muita rapidez.

Veja – A mulher que fica em casa cuidando dos filhos não é uma pessoa interessante?
Maria Adelaide – A questão não é essa. A questão é que cada vez menos você tem esse tipo de mulher. Mesmo o casamento não é mais uma instituição eterna.

Veja – Uma de suas principais peças, Bodas de Papel, fala sobre o mundo dos executivos. É um tema raro. Por que os autores brasileiros têm tanta dificuldade para falar do mundo dos negócios e do mundo dos ricos?
Maria Adelaide – Eu falei dos executivos porque era casada com um executivo de multinacional. Na primeira leitura que fiz da peça, um amigo escritor ficou escandalizado. Ele disse: "Mas essa gente não me interessa. Eu não vou pagar um ingresso de teatro para ver isso". Essas pessoas não parecem interessantes ao meio intelectual brasileiro. E o intelectual brasileiro conhece muito pouco as classes altas. De modo geral, mete os pés pelas mãos quando tenta retratá-las. O Gilberto Braga, na televisão, é uma das poucas exceções.

Veja – No ano passado houve muita polêmica em torno da novela Laços de Família, por ela tratar de assuntos como prostituição e por trazer atores infantis. As novelas são uma má influência?
Maria Adelaide – As novelas refletem a realidade. É como aquela história do pintor Pablo Picasso. Os nazistas visitaram seu ateliê durante a II Guerra Mundial e, diante do quadro Guernica, que retrata o horror da guerra, perguntaram: "Foi você que fez isto?". E ele respondeu: "Não, foram os senhores". Na verdade, os melhores autores de novela têm usado a teledramaturgia para estimular a vida cívica, não o contrário. Todos nós temos usado a televisão para veicular boas mensagens e até campanhas. Na novela, isso tem muito resultado, porque pega o espectador pela emoção. É mais efetivo que um slogan político ou publicitário. Você mobiliza o corpo e a alma das pessoas.




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