Os bastidores da maior das vitórias do Fenômeno: superar uma lesão rara e seríssima que tiraria qualquer mortal dos campos. Qualquer mortal, menos ele.
R, de recuperação por Daniel Piza fotos João Wainer |
R, de recuperação No vestiário do Milan, com o joelho estourado, Ronaldo chorava: “Por quê, por quê?”. Acomodado na cadeira de rodas, achou que a cura serviria apenas para jogar pelada e andar de bicicleta. Mas o craque tinha um santo forte: o fisioterapeuta que flexionava sua perna até durante o sono |
O estádio está cheio, em festa; é dia de jogo importante. Os árbitros e todos os jogadores estão no gramado à espera do apito inicial. Todos, menos um. O vazio no círculo central atende por um nome, que a torcida espera com ansiedade, por sua capacidade de dar ou mudar o tom de uma partida: Ronaldo. Só falta ele para o jogo começar. Onde o craque está? A cena descrita aconteceu, mas foi num sonho, num quarto de hospital, numa das primeiras noites após o fatídico 13 de fevereiro de 2008, quando Ronaldo, com a camisa do Milan, teve ruptura total do tendão patelar esquerdo ao saltar para cabecear a bola. E o sonho foi do próprio Ronaldo. Ali, combalido por mais uma lesão seriíssima, que evocou do planeta mais uma vez a convicção de que sua carreira acabaria, o maior artilheiro das Copas teve um sonho. Quando acordou, a realidade era bem mais dura. O joelho inchado, a perna incapacitada de dobrar, o monstro cinza da desistência à porta do quarto. Alguns dias depois, Ronaldo teve alta e foi levado de cadeira de rodas até o auditório do hospital para dar um tipo de entrevista coletiva que jamais imaginou que daria de novo. E desta vez, ao contrário do ocorrido em 2000, ele não declarou que “o guerreiro está ferido, mas não está morto”. Declarou que o guerreiro estava cansado, com o corpo surrado, pedindo arrego, dando sinais de que a aposentadoria era o mais provável. Nem um – nem um – jogador de futebol teve tantas contusões graves quanto Ronaldo. A ruptura do tendão patelar é raríssima no esporte mais popular do planeta; só é vista, e mesmo assim de vez em quando, no esqui profissional. Duas rupturas de tendão patelar, uma em cada joelho, é fato mais remoto ainda. Mesmo assim, Ronaldo voltou de cada uma delas. Enfrentou as dores e os desânimos do tratamento e enfrentou, talvez com maior dificuldade, a descrença geral, salvo exceções que cabem nos dedos de uma mão e Ronaldo sabe quais são uma a uma. E voltou. De forma ainda mais especial, os retornos de Ronaldo também não são nada corriqueiros. No do fim de 2001, quase levou a Inter de Milão ao “scudetto” tão esperado, que lhe escapou em jogo contra a Juventus sobre o qual pairam até hoje suspeitas pesadas; e, na Copa de 2002, fez nada menos que oito gols, sendo dois na final contra a Alemanha. Como resultado, foi eleito, pela terceira vez, o melhor do mundo pela Fifa. Nisso, aliás, Ronaldo também é único: só ele tem três prêmios da Fifa e duas Bolas de Ouro, o mais prestigioso título individual da Europa (Zidane tem apenas uma). E olhe que ficou sem atuar quatro dos 15 anos de sua carreira. No retorno de 2009, Ronaldo começou surpreendendo com a escolha: decidiu jogar no Brasil e pelo Corinthians. Depois de muita especulação – além, é claro, das dúvidas, das acusações de ser “jogada de marketing”, das piadas de todo tipo – ele enfim estreou, apenas um ano depois da contusão (não os 18 meses da outra), e num jogo contra o Itumbiara, numa ocasião e num gramado que não parecia combinar com sua classe. O atacante que Jorge Valdano disse ter “uma Ferrari nos pés”... correndo numa pista de rali? No jogo seguinte, aconteceu: Ronaldo entrou no clássico de maior rivalidade da maior cidade do país do futebol, deu dribles e chutes e, aos 47 minutos do segundo tempo, fez de cabeça o gol do empate, comemorado como se fosse outro título mundial brasileiro, não apenas corintiano. Sim, tem coisas que só ele faz. Só ele quinze gols em Copas; só ele duas vezes melhor do mundo aos 21 anos; só ele vitorioso sobre duas lesões de patelar e outras tantas mais; só ele autor de gol no Real Madrid pelo Barcelona e no Barcelona pelo Real Madrid, e no Milan pela Inter de Milão e na Inter de Milão pelo Milan etc. Mas esqueça o glamour de tantos troféus, o sentimentalismo sobre tantos retornos, a incrível onda de aclamação que se seguiu à sua volta para a terra natal. No escuro de um quarto de hotel, com a perna latejando de dor, os sonhos só vêm por teimosia. No vazio de uma academia de ginástica malequipada, sem nem mesmo água quente no chuveiro, como a do Flamengo, não há festas em castelos e comparações com Pelé. Na solidão de um dos três rostos mais famosos do mundo, a cada sessão de fisioterapia, a cada jogo visto pela TV, não tem ninguém falando em heroísmo. O que tem é trabalho doloroso, que muitas vezes parece despropositado. Ainda mais para quem já ganhou dinheiro para garantir três gerações de Nazário de Lima e para quem todas as portas e mulheres se abrem. “Se o cara não for focado, não gostar realmente do que faz, ele não consegue”, diz o fisioterapeuta Bruno Mazziotti, 31 anos, há seis trabalhando com Ronaldo. Foi Mazziotti quem ouviu de Ronaldo o sonho do estádio lotado e precisou responder várias vezes durante meses a frase “Você vai voltar” a cada vez que o craque perguntava: “Você acha que eu vou voltar?”. No vestiário do Milan, com Kaká ao lado, Mazziotti viu como Ronaldo ficou abalado. Ele saiu de campo chorando, repetindo “de novo, não”, perguntando-se “por quê, por quê?”, enquanto todos lhe pediam calma, embora houvesse ainda a especulação de que ele teria rompido também o ligamento cruzado anterior (o que não se confirmou). No trajeto para o hospital de Paris, onde até dormiria no corredor, Mazziotti conseguiu ser mais articulado: “Só tem um ser humano que pode provar isso para o mundo, que pode retornar de novo, e esse ser humano é você”. Em outros momentos, a conversa passava pela religião. Que Deus é esse que pune tanto um profissional tão talentoso, que nunca fez mal a ninguém e tantas alegrias trouxe? – eis o que Ronaldo poderia se perguntar. E Mazziotti dizia para que ele pedisse mais forças, “ombros mais fortes”, e não se queixasse dessa “carga maior”. Ronaldo, que fala sempre “Fica com Deus” aos amigos e familiares toda vez que encerra um telefonema, desde então passou a fazer três vezes o sinal da cruz ao entrar em campo. Mas o que lhe dava forças mesmo era o futebol. “Voltei por meu amor ao futebol”, diz Ronaldo. “Não existe outra razão”, acrescenta, já em tom irritado com os que afirmam que seu interesse é publicitário, como se ele precisasse aparecer mais do que aparece. Para Mazziotti, Ronaldo disse que não queria voltar se fosse para ter dores. “Um incomodozinho sequer e eu largo tudo”, ameaçou. Mazziotti replicou: “O.k., então vamos fazer um trato. Eu deixo seu joelho zerado, mas aí você volta”. Ronaldo ainda brincou: “Eu posso mentir para você”. E Mazziotti: “Então assim não vale”. Ronaldo em vários momentos pensou que a cura poderia ser útil apenas para andar de bicicleta com seu filho Ronald, ou jogar uma pelada de vez em quando. Mesmo quando as coisas tinham melhorado muito, o fisioterapeuta perguntava ao craque para qual time iria e Ronaldo rebatia: “Eu ainda nem sei se vou voltar”. Nos primeiros três meses, diálogos como esse se repetiriam. Mas na maior parte do tempo o clima era o oposto: Ronaldo trabalhava e trabalhava, querendo e acreditando em sua volta. Mais do que boa disposição física, ele mostrou mais uma vez seu poder mental, sua capacidade de concentração, sua força interior. As mesmas qualidades que exibe em campo. Sinais de que tudo poderia correr bem existiram desde o começo. No pós-operatório, o joelho inchou menos do que oito anos antes. Espertamente, Mazziotti percebeu que o segredo – o que chama de “evolução conceitual” da fisioterapia – era trabalhar muito logo no começo, para encurtar a recuperação lá na frente. Eram sete, oito horas diárias de esforço desse que um dia chamaram de “ex-atleta” e “ex-profissional”. Mazziotti flexionava a perna de Ronaldo até mesmo quando ele estava dormindo. O contato com o aparelho acordava o jogador, que resmungava: “Lá vem você de novo com esse negócio”. E em seguida ele fazia tudo, quase sempre de bom humor. Ele sabia, com sua vasta experiência, que Mazziotti estava certo ao dizer: “A natureza não dá saltos. Cada dia é uma vitória”. Uma vez por mês Ronaldo ia a Paris fazer exames de ressonância e verificar os tecidos e as articulações. No segundo mês, já fazia 100% do arco de movimento da perna. No quarto mês, o resultado foi tão bom que o cirurgião Gerard Saillant o dispensou dos controles dos dois meses seguintes. No sétimo, teve a alta definitiva. Estava 70% melhor do que deveria estar; até já corria e jogava tênis com Mazziotti. Mesmo nas férias de duas semanas de julho em Ibiza, quando foi flagrado num barco, barrigudo e fumando, Ronaldo trabalhava todo dia numa academia, fortalecendo a musculatura da perna. Em agosto, já era procurado pelo Manchester City para atuar ao lado de Robinho e outros brasileiros. Em outubro, já treinando no Flamengo, era um atleta recuperado, precisando apenas emagrecer, readquirir condição cardiorrespiratória e voltar a treinar com bola. Em dezembro, assinou com outro clube de massa, o Corinthians, e em fevereiro de 2009 estava pronto para estrear de forma competitiva. Ou seja, Ronaldo não apenas voltou, como voltou antes do previsto. A cada jogo foi aumentando sua participação – em tempo e em eficiência – para que chegasse às semifinais do Paulistão perto dos 100%. No correr das semanas, amarga quase 50% mais de carga de trabalho do que os colegas. E é desse jogador que dizem que não gosta de treinar? Na Europa, especialmente na nacionalista Espanha, a fama de que os brasileiros são “baladeiros” assombra todos os jogadores. Mas Raúl, Zidane ou Beckham não iam a menos baladas e, na hora dos treinos, faziam o mesmo que quase todos os jogadores europeus fazem: duas horas por dia, em geral com exercícios de força e alguns movimentos táticos. O que ajudou Ronaldo a ter tantas lesões foi o descaso com suas características específicas, tanto na Espanha como na Itália. Mazziotti resume: “Ele tem muita potência para pouco freio”. Sua massa muscular hoje é de 84 quilos, distribuídos em 1, 84 metro de altura; seu peso ideal é 89 quilos, com 3,8 quilos de peso ósseo e 10% de taxa de gordura. Os tendões não são mais frágeis do que os de outros atletas, mas têm dificuldade para suportar essa carga muscular num jogador de alta velocidade, que dribla em ziguezague – ora como se fosse um esquiador – e é capaz de fazer um arranque em que percorre 30 metros em 3,4 segundos. Essa gloriosa união de força, velocidade e ginga, ironicamente, foi também seu karma. Ronaldo não tem muita capacidade aeróbica e engorda com facilidade quando não está treinando, como aconteceu às vésperas da Copa de 2006. Mas ele tem alto índice de fibras musculares rápidas, e elas pedem o tratamento adequado no momento em que se machuca; além disso, tem um histórico de distúrbios articulares. Nem Real Madrid nem Milan souberam respeitar alguns dos prazos e fazer os exercícios específicos que Ronaldo precisava, até porque suas ausências eram sempre sentidas pelo time e pela torcida. Isso explica em parte o sobrepeso em tantas situações desde 2005, sua última temporada cheia. É um jogador de tiros curtos, que corre nos momentos em que precisa, logo não pode ser tratado como um Cafu. Reequilíbrio muscular é a chave. Foi na medicina esportiva brasileira, curiosamente, que Ronaldo encontrou esse balanço entre treinamento comum e especializado. O que Ronaldo sabe sobre fisiologia, por sinal, o leitor não pode supor. “Eu digo sempre que ele está no quinto período da faculdade, prestes a se graduar”, diz Mazziotti. A idade e a musculatura fazem diferença, e só um observador cruel pode querer que ele tenha a mesma agilidade e leveza dos tempos do Barcelona. Mas ele agora caminha para a reabilitação total, o que significa poder dar arranques e realizar toda sua técnica – que ainda há quem não perceba que é muito mais do que velocidade e pontaria. O estádio está cheio, em festa; é dia de jogo importante. Os árbitros e todos os jogadores estão no gramado à espera do apito inicial. Todos, menos um. O vazio no círculo central atende por um nome, que a torcida espera com ansiedade, por sua capacidade de dar ou mudar o tom de uma partida: Ronaldo. Só falta ele para o jogo começar. Olha, lá vem o craque. |
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